sábado, 28 de março de 2020

Não vou mais ler obituário de jornal


Montar a asa delta dos pulmões,
percorrer outros lugares, sonhar
avistar novo amor, novo lar,
novo pet, e repelir, com sofrimento,
velhos sonhos e vomitar 
em banheiros fétidos dos botecos 
aqueles medos. 
(Ah, diriam vocês,
lá vem ele com Nietzsche
 e o velho eterno retorno...).
Fodam-se, todos.

Deixei de lado papel e caneta
e poemas e caminhadas,
tive atração por flores e
garotas de maquiagem farta e,
nessas bebedeiras,
uma recaída romântica
levou-me de encontro
ao impulso automático
do imbecil Cadelão.

Restou o previsível,
o de sempre,
e agora as mãos se atrapalham
e tremem
na companhia agitada
de etílicos baratos.
Foi o suficiente pra dama
literatura
se afastar e me trair e apostar
noutros boyzinhos.

Ideias em quarentena,
pé fora do lugar,
coração despido,
num misto de fome e sede,
vou pela avenida
e me deparo com esse carnaval
fora de época,
isso depois de grampear e
lacrar minha pobre arte
nuns envelopes
e entupir a caixa do correio.

Homem que ultrapassa as nuvens.
Asas coladas com cera
o conduzem até pertinho do sol
para então despencar.
Nenhuma linha, nem cartas
para amigos ou editores
ou leitores imaginários.
Nenhuma inspiração,
a imaginação já era.

É o que dá não suportar o verdadeiro
e relativo amor e o medo de morrer
sem realizar o que não sei ao certo.

Não posso parar
vou parar de morrer
não vou mais ler
obituário de jornal.

Belchior não morreu,
e estou vazio de ideias.
Neste momento estou morto,
não passo de prédio em construção.
Sou todo tijolos e ferro e massa e
som e movimento e...
um radinho pendurado
num guindaste, no sétimo andar,
desse prédio qualquer, me chama.
A música toca e embarco num sonho.

Sigo meu caminho,
porém, em sua alucinação,
Belchior grita de lá:
"Você não sente nem vê
mas eu não posso deixar de dizer,
meu amigo, que uma nova mudança
em breve vai acontecer..."

Estou sóbrio e trêmulo e,
portanto, de mau humor,
então grito de cá:
"Foda-se, Belchior,
deixe-me respirar e silenciar e
me afastar desses vermes e vírus e
imagens e vozes que despencam
desses abismos de concreto...".

Eis que o FDP grita de volta:
"Relaxa, Cadelão,
aprenda comigo,
'tenho sangrado demais,
tenho chorado pra cachorro,
ano passado eu morri,
mas esse ano eu não morro'".

(B. B. Palermo)

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