segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Ensaio



A vida é um ensaio.
Ensaiamos, como faz
       a orquestra
o tenor, o ator...

Ensaiamos até dormindo
e, acordados, deliramos os sonhos.

Mas de tanto ensaiar
pra não fazer feio
nos acostumamos a repetir
repetir sem improvisar...

Se quando crianças
os ensaios eram como passeios
          na roda gigante,
hoje os ensaios são como
concurso de vestibular.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Os diferentes estilos - Paulo Mendes Campos


Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de todos os modos possiveis um episódio corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.


Estilo interjetivo
Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!




Estilo colorido
Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.




Estilo antimunicipalista (ou estilo Rigoniano)
Quando mais um dia de sofrimentos e desmandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas, esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujos arredores falta água há vários meses, sem falar nas freqüentes mortandades de peixes já famosas, o vigia de uma construção (já permitiram, por baixo do pano, a ignominosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele foco de epidemias. Até quando?




Estilo reacionário (ou estilo Edsonlimesco)
Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram nesta manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de bêbado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como se já sabe não bastasse para enfeiar aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.




Estilo então
Então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providencias necessárias. Aí então eu resolvi te contar isso.




Estilo áulico
À sobremesa, alguém falou ao Presidente que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente que um de seus auxiliares telegrafasse em seu nome à familia enlutada. Como lhe informassem que a vitima ainda não fora identificada, S. Ex., com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas apreciadas blagues.




Estilo schmidtiano
Coisa terrivel é o encontro com um cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos eram azuis, olhos para a festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo morto. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte, este rio um pouco profundo caluniado de morte.




Estilo Complexo de Édipo
Onde estará a mãezinha do homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o amamentou, ela que o embalou em seus braços carinhosos?




Estilo preciosista
No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua da Estrela-d´Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla sinuosa e murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.




Estilo Nelson Rodrigues
Usava gravata cor de bolinhas azuis e morreu!




Estilo sem jeito
Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de Rui e o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimentos são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma tragédia. Não sei escrever, mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste. Ah, se eu soubesse escrever.




Estilo fofoca
Imagina você, Tutsi, que onte eu fui ao Sacha´s, legalíssimo, e dormi de tarde. Com o tony. Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como a Teresa, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão nervosa! Logo eu que tenho horror a gente morta!




Estilo lúdico ou infantil
Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vitima por baixo nao trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.




Estilo concretista
Dead dead man man mexe mexe mexe Mensch Mensch MENSCHEIT




Estilo didático
Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; c) teologico. Policial:o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teologico: o homem em Deus. Policia e homem: fenômeno; alma e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores vêem.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Doidos

Doidos e apaixonados, passamos o dia um na cabeça do outro. Vivemos assim, um na soleira do outro. Para alcançarmos as horas, um no calcanhar do outro. E sonhamos bocados, um par perfeito pro outro. E olhamos vitrines, um presente pro outro...

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Janela sobre o mundo II



Na parede, ao lado dos carrinhos do supermercado, está escrito:
é proibido brincar!

Na parede de um boteco de Ijuí, pode-se ler:
é proibido cantar!

Nem tudo está perdido:
ainda tem gente que canta,
ainda tem gente que brinca!

sábado, 29 de outubro de 2011

Janela sobre o mundo


A parteira tem a cara de um bebê chorão.
Há um teclado nos dedos do escritor.
Brilham algemas nos olhos do policial.
Há cifrões nos olhos daquele avaro.
Saltam pratos da boca do esganado.
O caçador tem no olhar o medo de sua caça.
O torturado rouba o sono do torturador.
O cão passeia com a elegância do seu dono.
Os amantes têm um só e mesmo relógio.
Papudo rouba a palavra de todo mundo.
Papudo fala com barulho e agora é carroça vazia.

O poeta entra no espelho e se despede.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Lustres e parafusos - Celso Gutfreind


Em meio às tristezas (salvo o canto do sabiá em meu quintal) dos últimos dias, encontrei um verdadeiro oásis quando li o texto abaixo, do Celso Gutfreind,  e vi o filme O segredo dos teus olhos.

 


LUSTRES E PARAFUSOS


“A minha empatia não suporta desumanidade nas políticas públicas.”


Salvador Célia



Noite dessas, sonhei com o Scliar. O clima era obscuro, mas dava para ver claramente. Ele vestia camisa azul, terno, gravata. Pedia ajuda no conserto de um lustre. Apertamos dois parafusos, e acendeu-se a luz.


Passei a manhã sem vontade de interpretar o sonho. Sentia-me feliz de vivê-lo, e pronto! Foram alguns instantes com o Scliar, a implicar-me com o seu pedido, e isto valia mais do que qualquer explicação. Estava em Fortaleza e fui dar uma volta. Na Beira-Mar, havia um monte de prédios luxuosos e muita gente dormindo na rua. Então me lembrei do poema O Bicho, do Manuel Bandeira e da prosa do Emile Zola.


Também do quadro Guernica, do Picasso, e pensei que estes caras reacenderam o mundo onde andava mais apagado. Daí a imaginá-los apertando parafusos para ativar um lustre, foi um passo. E davam-se muitos, perto do mar. Voltei a pensar no sonho como forma de resgatar a aventura humana.


Mas a presença do Scliar era viva e também parecia maior. Embalado pelo Bandeira e o Zola, repassei algumas cenas em que vi a arte acudir a vida. Numa delas, trabalhava no abrigo de crianças abandonadas pela dificuldade de mulheres serem mães, e homens, pais.


Tínhamos contado a história dos três porquinhos e agora propúnhamos um teatro. Meus colegas e eu acreditávamos que, se uma criança ouve histórias e aprende a encená-las, ela adquiriu a capacidade de lidar com a vida e com a morte. Havíamos providenciado um punhado de palha, outro de madeira e uns tijolos. Estava tudo ao alcance de nossos protagonistas. Os três meninos seguiram o roteiro da primeira cena e se despediram da menina-mãe.


Disseram que iam embora, porque desejavam conhecer o mundão, palavra deles. Já se preparavam para fazer de conta que construíam as casas quando a menina, de repente, recriou a sua personagem e proibiu os filhos de saírem. Era agora uma mulher enorme com o olhar atento para acolher demandas, colocar limites e desempenhar o papel principal de mãe que ama. Permaneceram todos juntos, longe do texto original e perto de quem mais queriam. Tinham ido ao reino da imaginação, de onde costuma voltar-se fortalecido para a realidade.


Arte em vida, parafuso apertado, lustre aceso. A possibilidade de reinventar a própria casa, consertar o mundinho real até que ele seja maior ou, pelo menos, conforme precisamos. Era o que pensava, mas o reflexo do sol no vidro dos prédios alcançou os mendigos bocejando. Então, parei de explicar e voltei a sonhar com o Scliar.


Zero Hora, quinta-feira, 27 de outubro de 2011.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Bolhas de sabão...




Amanhã assombrarás a minha casa para falar de si.
Serei todo ouvidos, outra vez.
Na caderneta vou anotar as queixas, lamúrios e, se puder, tentarei desafogar os teus segredos.

Tens muito a dizer, até espantar o silêncio.
Um muro gagueja tua fala, vou derrubá-lo.

Marcas profundas nos apavoram, dispersarei
os fantasmas com voz suave e calma.

Assumirei a missão. Ser teu anjo da guarda.
Abrirei todas as trancas que estrangulam
teu desejo que se cala.

Hoje eu cansei.

A vida anda rasa, desfilam idiotas,
doidos por tolices.
Cansei da fertilidade normal,
bestial, previsível.

Cansei da criação corriqueira, cloacal...
Sim: tenho saudade do tédio poético,
                                                 musical,
da solidão que busca no algodão das nuvens
                          e nas bolhas de sabão
o amor irmão, que tem tesão
pelo re-criar!

domingo, 23 de outubro de 2011

Em código - Fernando Sabino


Fui chamado ao telefone. Era o chefe de escritório de meu irmão:
- Recebi de Belo Horizonte um recado dele para o senhor. É uma mensagem meio esquisita, com vários itens, convém tomar nota: o senhor tem um lápis aí?
- Tenho. Pode começar.
- Então lá vai. Primeiro: minha mãe precisa de uma nora.
- Precisa de quê?
- De uma nora.
- Que história é essa?
- Eu estou dizendo ao senhor que é um recado meio esquisito. Posso continuar?
- Continue.
- Segundo: pobre vive de teimoso. Terceiro: não chora, morena, que eu volto.
- Isso é alguma brincadeira.
- Não é não, estou repetindo o que ele escreveu. Tem mais. Quarto: sou amarelo, mas não opilado. Tomou nota?
- Mas não opilado - repeti, tomando nota. - Que diabo ele pretende com isso?
- Não sei não, senhor. Mandou trasmitir o recado, estou transmitindo.
- Mas você há de concordar comigo que é um recado meio esquisito.
- Foi o que eu preveni ao senhor. E tem mais. Quinto: não sou colgate, mas ando na boca de muita gente. Sexto: poeira é minha penicilina. Sétimo: carona, só de saia. Oitavo...
- Chega! - protestei, estupefato. - Não vou ficar aqui tomando nota disso, feito idiota.
- Deve ser carta em código ou coisa parecida - e ele vacilou: - Estou dizendo ao senhor que também não entendi, mas enfim... Posso continuar?
- Continua. Falta muito?
- Não, está acabando: são doze. Oitavo: vou mas volto. Nono: chega à janela, morena. Décimo: quem fala de mim tem mágoa. Décimo primeiro: não sou pipoca, mas também dou meus pulinhos.
- Não tem dúvida, ficou maluco.
- Maluco não digo, mas como o senhor mesmo disse, a gente até fica com ar meio idiota... Está acabando, só falta um. Décimo segundo: Deus, eu e o Rocha:
- Que Rocha?
- Não sei: é capaz de ser a assinatura.
- Meu irmão não se chama Rocha, essa é boa!
- É, mas foi ele que mandou, isso foi.
Desliguei, atônito, fui até refrescar o rosto com água, para poder pensar melhor. Só então me lembrei: haviam-me encomendado uma crônica sobre essas frases que os motoristas costumam pintar, como lema, à frente dos caminhões. Meu irmão, que é engenheiro e viaja sempre pelo interior fiscalizando obras, prometera ajudar-me, recolhendo em suas andanças farto e variado material. E ele viajou, o tempo passou, acabei me esquecendo completamente o trato, na suposição de que o mesmo lhe acontecera.
Agora, o material ali estava, era só fazer a crônica. Deus, eu e o Rocha! Tudo explicado: Rocha era o motorista. Deus era Deus mesmo, e eu, o caminhão.

do livro Para gostar de ler, Vol. 4. Editora Ática.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

AS FLORES NÃO FALAM


Pode ser uma perda de tempo perguntar se as flores falam por si, ou se sua beleza depende de nosso olhar para elas. Na música do Cartola, "As rosas não falam", uma estrofe diz: "Queixo-me às rosas, mas que bobagem/as rosas não falam/simplesmente as rosas exalam/o perfume que roubam de ti, ai...".
O que representam as flores em nossa vida? Imagino que o que vale é nossa relação com elas. O cuidado que temos com nosso jardim. Disse-me uma amiga: "Cuide do teu jardim. As borboletas sempre voltam para apreciar um jardim florido". Na hora interpretei seu comentário como uma obeservação a respeito de como me mostro aos outros. Nosso jardim é nosso retrato.
Uma piada que li no jornal Zero Hora de hoje ilustra isso:
"A família está reunida, olhando antigos álbuns de fotografias. Lá está  a foto de um jovem belo e elegante. A Mariazinha vira-se para a mãe e pergunta:
- Mamãe, quem é esse homem tão bonito?
- É o seu pai, Mariazinha.
Então a menina chega mais perto da mãe e fala bem baixinho:
- E quem é esse gordo, careca, feio e chato que mora aqui com a gente?"

O valor das flores se dá pela humanidade (nem sempre romântica?) que depositamos nelas.
Poderíamos afirmar que as flores retribuem o nosso carinho para com elas emprestando-nos sua beleza. Mas isso só vale se nós o notamos.
Independente dos motivos (muitas vezes "inconscientes") que temos para ir ao seu encontro. Podem ser esquisitos, estranhos, jogos de vaidade, simples negócios...
O mais importante, talvez, não seja atribuir um caráter divino à beleza das flores. Temos a tendência de colocar nas mãos de Deus o que não conseguimos explicar, por exemplo o mistério, o belo. Ou não é nada disso: quem sabe - ao captarmos a beleza de algo, seja uma música, um poema, um quadro, uma flor - estejamos conversando com Deus... Ou Deus está chamando nossa atenção, para que relaxemos, nos afastemos um pouco das nóias corriqueiras.
Se o  momento de nossa contemplação da beleza é divino, então esse é o momento em que conversamos com Deus.
Assim, a linguagem que Deus utiliza para conversar com a gente é a estética. No desabrochar de uma flor, na melodia de uma canção, no canto de um sabiá, Deus está nos chamando para fazer "arte".

A história abaixo, A penitência das flores, de Heloisa Seixas, mostra uma relação surpreendente do personagem com as flores. O pano de fundo é uma história trágica de amor (irrealizado, interrompido). O velhinho vende as flores para pagar seus pecados.


A PENITÊNCIA DAS FLORES - Heloisa Seixas

Ontem, voltei a vê-lo. Elegante, como sempre, discreto em seu terno escuro, o colarinho branco impecavelmente limpo contrastando com a pele morena, a gravata-borboleta cor de sangue. Na cabeça pequena, os cabelos muito brancos, cortados baixinho. Nas mãos, morenas também e um tanto calosas, a cesta de flores. Não trazia rosas de várias cores dessa vez, apenas vermelhas. Cada uma delas envolta num pedaço de papel laminado, tendo junto ao cabo um raminho verde que me pareceu avenca.
O velhinho que vende flores.
Há muito não o via. Mas sempre que o encontro, devo confessar, renova-se o impacto. E dessa vez mais ainda - porque ele estava diferente. Assim que entrou no restaurante, notei-o muito circunspecto, mais do que de hábito, e vi que trazia nos olhos escuros uma chispa de tristeza. Fiquei olhando-o, enquanto oferecia suas flores, na varanda do restaurante. Uma mesa ruidosa, onde oito pessoas pareciam celebrar alguma coisa, ocupou-se dele por uns instantes, as mulheres esticando os braços para tocar os botões, escolhendo os mais bonitos. Enquanto isso, o velhinho, que nessas horas costuma ser falante, estava mirando através do vidro da varanda, os olhos perdidos na noite.
Nesse instante, o garçom, meu conhecido - e que sabe do meu interesse por aquele vendedor de flores -, chegou a meu lado e disse:
- Está fazendo trinta anos hoje.
- É mesmo?
- É - respondeu o garçom, ele próprio um senhor, trabalhando naquele restaurante há mais de vinte anos.
- Como você sabe?
- Ele me disse, ontem. Às vezes conversa comigo. A senhora não notou como ele está estranho?
- É verdade - respondi, baixando a voz, porque o velhinho deixava a varanda e se aproximava de minha mesa. O garçom, discreto, se afastou.
Chegando junto a mim, o vendedor estendeu sua cesta, sem dizer palavra. Havia uma ponta de sorriso congelada em seu rosto, mas os olhos tinham um brilho insano. Ele me olhou como se me varasse. E compreendi que o garçom dissera a verdade. A história eu já conhecia. Só não sabia que, naquela data exatamente, fazia trinta anos que acontecera. Aquele velho, um homem bem-nascido, que tinha posses, um dia, por ciúmes, matara a mulher que amava. Fora preso, cumprira pena e, ao ao sair da prisão, tornara-se vendedor de flores. Assim, expiava seu pecado.
Tirei uma rosa da cesta e ergui, com uma mesura, como quem faz um brinde.
- Às flores - disse.
E ele sorriu. Em sua loucura, sabia, tanto quanto eu, que as flores eram sua penitência. E sua redenção.

do livro Contos mínimos, editora Bestseller.

domingo, 16 de outubro de 2011

Bilhete - Mario Quintana


Se tu me amas, ama-me baixinho
não o grites de cima dos telhados
deixa em paz os passarinhos
deixa em paz a mim!
se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...


(do livro Nariz de vidro, Ed. Moderna).

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Recado ao meu vizinho


Divido o acesso à internet com meu vizinho. Assim, a conexão e comunicação com todo o planeta é facilitada.
Já minha comunicação com meu vizinho é de respeito silencioso, amparado pelos limites dos horários sérios, diurnos e noturnos. Tanto ele quanto eu temos dezenas de amigos virtuais, porém quase não conversamos entre um lado e outro das grades que separam nossas casas.
A crônica de Rubem Braga "Recado ao Senhor 903", escrita no ano de 1953, chama a atenção para a distância afetiva que nos separa dos outros, mesmo sendo nossos vizinhos.
O texto mostra como pavimentamos com a solidão a rua que circulamos diariamente. Mesmo aceitando o preceito de que VIVER é CONVIVER.
Se a quase sessenta anos atrás a sensibilidade do cronista foi tocada, a respeito do "valor" que nos atribuem e que atribuimos aos outros,  como está a situação hoje?
As redes sociais, que acessamos com cada vez mais facilidade e frequencia, nos conectam com o mundo. Abrimos janelas e janelas virtuais. Inclusive janelas que escancaram nossa privacidade. Essas janelas todas são democráticas, pois possibilitam que manifestemos nossa opinião.
Paradoxalmente, se as redes sociais (produtos da tecnologia) nos aproximam, elas ao mesmo tempo nos separam. Enfim, estamos todos conectados, mas não nos comunicamos.
Parece que a tecnologia está empurrando cada um de nós ao isolamento e afastamento dos outros.
Se Rubem Braga estivesse vivo, ele veria como sua crônica é atual. O eixo central é o mesmo: em vez de criar laços afetivos com os outros, nos enclausuramos - será por que todos são iguais, ninguém é interessante e blá, blá, blá??
Isso certamente explica a busca desenfreada de apoio espiritual nas igrejas e na auto-ajuda. Um grande negócio, espertamente explorado pela mercantilização.

RECADO AO SENHOR 903 - Rubem Braga

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador do prédio, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a lei e a polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada, e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio.

Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".


E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

Poetinhas, contenham-se!

  Não caminhava sozinho, estava rodeado de uma legião de capetas, rindo, zombando. Vestiam branco e jogavam pro alto seus cantos vindo...