Divido o acesso à internet com meu vizinho. Assim, a conexão e comunicação com todo o planeta é facilitada.
Já minha comunicação com meu vizinho é de respeito silencioso, amparado pelos limites dos horários sérios, diurnos e noturnos. Tanto ele quanto eu temos dezenas de amigos virtuais, porém quase não conversamos entre um lado e outro das grades que separam nossas casas.
A crônica de Rubem Braga "Recado ao Senhor 903", escrita no ano de 1953, chama a atenção para a distância afetiva que nos separa dos outros, mesmo sendo nossos vizinhos.
O texto mostra como pavimentamos com a solidão a rua que circulamos diariamente. Mesmo aceitando o preceito de que VIVER é CONVIVER.
Se a quase sessenta anos atrás a sensibilidade do cronista foi tocada, a respeito do "valor" que nos atribuem e que atribuimos aos outros, como está a situação hoje?
As redes sociais, que acessamos com cada vez mais facilidade e frequencia, nos conectam com o mundo. Abrimos janelas e janelas virtuais. Inclusive janelas que escancaram nossa privacidade. Essas janelas todas são democráticas, pois possibilitam que manifestemos nossa opinião.
Paradoxalmente, se as redes sociais (produtos da tecnologia) nos aproximam, elas ao mesmo tempo nos separam. Enfim, estamos todos conectados, mas não nos comunicamos.
Parece que a tecnologia está empurrando cada um de nós ao isolamento e afastamento dos outros.
Se Rubem Braga estivesse vivo, ele veria como sua crônica é atual. O eixo central é o mesmo: em vez de criar laços afetivos com os outros, nos enclausuramos - será por que todos são iguais, ninguém é interessante e blá, blá, blá??
Isso certamente explica a busca desenfreada de apoio espiritual nas igrejas e na auto-ajuda. Um grande negócio, espertamente explorado pela mercantilização.
RECADO AO SENHOR 903 - Rubem Braga
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador do prédio, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a lei e a polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada, e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas - e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.
Muito legal! gostei muito, o final é um sonho, um sonho tão desejável... Há tantas festas, tantos amigos, tanta gente por aí e eu aqui com tantos finais de semana em plena solidão... uma solidão de festa com cara de festa, com gosto de festa, com música de festa, com amigos que festam, com risos que festejam... solidão de amigos que riem, que falam, que são sinceros, que se vistam, solidão de gente que passa e dá bom dia, que sorri, que olha nos olhos, que aceita o outro...
ResponderExcluiré essa solidão que é preciso acabar!
Abraços,
Ju