segunda-feira, 8 de junho de 2020

Cadelão do gás



Eu queria enfeitar meu poema
com singelas metáforas,
afastado o que puder
das dores do mundo.
Mas não, preciso garantir meu leite
no bar
e, vejam só, aqui estou, ofegante,
fazendo entrega de gás.

Desconto, todos querem desconto,
e repetem que os tempos estão difíceis.
Não posso fazer concessões,
são ordens do patrão.
Então desconto no poema,
mergulho ele na lama
meu amor se alimenta do ódio
vivemos de tapas e safanões.

Eu queria escrever uma mistura de sentimentalismo ingênuo
com autoajuda,
pois renderia alguns trocados.
Queria ser alquimista dos sentimentos elevados,
chover flocos de algodão-doce nesta humilde cidade.
Eu queria escrever poemas tão bonitinhos e mágicos
que transformassem putas em madames.
Mas não! eu preciso ir correndo levar o gás,
que a patroa grita, nervosa,
a empregada não pode atrasar o almoço,
e minhas botinas estão emporcalhadas
e ela manda tirar na entrada
pois carregam a sujeira do mundo
e ela mora num lugar puro e superior.
Inconformado, eu fico quieto,
pra não ferir seu monogâmico tédio,
é uma burguesinha de merda
que bebe vinho de 70 reais a garrafa,
e que pede desconto no gás.

Eu queria escrever um poeminha metafórico,
como se fosse um pônei de filhinho de rico,
que acaba de sair do pet shop.

Os puteiros estão quebrados e pedem
desconto.
As igrejas me empurram Deus com 60 dias de prazo
pra entrada do dízimo
e pedem desconto no gás.
Desconto! Desconto!
Quem nada ganha com isso é meu poema
carente
de efeitos especiais.

O fogão da funerária precisa funcionar,
está morrendo gente e lá estou,
macacão surrado e botijão nas costas,
faço uma reverência ao finado,
pálido e impassível no caixão,
enquanto me dirijo até a cozinha,
pra dar minha singela contribuição:
garantir o café e o chimarrão desses vivos
que finalmente elogiam o morto.

O melhor lugar do mundo pra deixar meu gás
é numa boca de fumo.
Me tratam bem, não me pedem pra tirar
as botinas sujas,
até convidam pra um baseado.
Eis um templo sagrado da cidade.
Eis o paraíso, o mais visitado e o mais proibido.
A cidade necessita do gás como do pó.

Eu queria escrever poemas enfeitados,
mas tenho que correr o dia inteiro
pra dar energia a esses lares,
e ainda tenho que arranjar uns trocados
pro bêbado do bairro fazer sua combustão,
e naufragar na cachaça e compartilhar
comigo a gangrena prazerosa
do seu vício.
Ontem bateu o desespero:
seu pai morreu.
Deus morreu.
Meu poema ressuscitou da lama,  
divide comigo a Santa Ceia,                 
e estamos manchados de vinho.

(B. B. Palermo)

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