quarta-feira, 10 de junho de 2020

Nego bom não se mistura


Sou Cadelão romântico, mas não me critiquem, não ergam as patinhas, não sou tão bobo assim. Tenho certeza de que ela deu mole, juro que não é viagem de meus neurônios enferrujados. Mas não vou narrar para vocês a conversa surreal que tivemos no privado.
No dia de seus 20 e poucos, postou no Face: "Ela amadureceu... Agora ela sabe o que quer" - junto com aquela foto de atrair garotões ensandecidos. Imagina, quer pregar a moral de que agora ficou madura, não vai mais fazer as tais burradas.
Gente, vi esse filme dezenas de vezes, em dezenas de cinemas. Sei como operam essas criaturinhas lindas e frágeis. Babei, sim, com aqueles olhos verdes, e os contornos daquela  boca chupando bergamota e imaginei-a olhando-me demoradamente e insinuando "vai encarar, Cadelão?".
Admiro seu amor pelas crias, de pais diferentes, e que todo mês ela puteia fazendo estardalhaço nas redes sociais, porque os imbecis atrasam o pagamento da pensão.
Fico imaginando possibilidades, como seriam nossos encontros. Enquanto isso, nada de inspiração para teclar, aí eu entorno mais um gole de ceva. Não a conheço pessoalmente, mas estou convicto de que acrescentaria um tanto na sua vida. Sério, dar-lhe-ia visão de mundo, cultura, abriria sua mente para coisas mais nobres, além de conduzi-la em direção à nova garota, que jura que amadureceu. Ah, além disso eu a faria transcender o desejo de se apaixonar e dar pra uns garotos babacas e meses depois aparecer chorosa e barriguda.
São motivos singelos mas suficientes para logo correr pro bar e encher a cara. Apanho a carteira e a razão, numa atitude desesperada, me sacode, e invoca o sujeito reto que fui há alguns séculos atrás. Aí, boto música barroca pra tocar. Meu déficit de atenção me arrasta até o banheiro. Olho para o espelho, numa derradeira tentativa, e digo pro cretino que aparece do outro lado "tu prometeu que hoje não...".
Adoro bar, mas há um medo de aglomeração, ainda mais com uma gente estranha circulando entre as mesas de sinuca. Sempre chega algum maluco meio alto, que está voltando de alguma festa, ninguém duvida que abraçou alguns pesteados, e se aproxima e quer apertar a mão de todo mundo.
No banheiro do boteco, acendo a luz com o cotovelo, evito tocar a maçaneta, empurro a porta com o pé e, depois de mijar, não dou a descarga nem chego perto da torneira. Ao retornar esfrego as mãos com farto álcool gel e depois cheiro demoradamente e aí, sim, desfila diante dos olhos o sentido da vida.
O dono do bar, o Maneta, faz questão de mostrar quem é que manda no pedaço. Na faixa dos 50 anos, ele diz: "A nossa geração é só por Deus! Nós somos velhos, não temos mais que curtir esses Creedence e Scorpions e Pink Floyd. Vamos curtir Mano Lima e Baitaca, e deu...". Penso, mas não digo, "sim, tu tá certo, seu bobinho, nossas patroas não querem mais foder, só querem igreja, e veja lá...". Maneta é bom em jogar pra cima e repetir e se alegrar com versos de algumas músicas. "Nego bom não se mistura". "Não tá morto quem peleia". "Não podemos se entregar pros home".
Fazer o que, ele é o dono do bar, da conexão de wi-fi, do noty e da caixa de som, é ele quem controla os freezers abarrotados de cerveja gelada. Tá bem, tá bem, ele não controla a dona gastrite que quer virar úlcera, que quer virar câncer, e ele sabe disso e bebe e fuma como um ressuscitado. E nós, vermes, rastejamos por essas espeluncas, enchendo a cara para espantar a deprê e a solidão.
E quase sempre aparece um daqueles empresários que exibe a carteira e uma dúzia de cartões de crédito e diz que poderia dar um golpe de milhões com empréstimos, e os da turminha em volta concordamos que é o momento, e digo que isso é mais justo do que praticar pequenos estelionatos e foder ainda mais uns empresários falidos. Sim, é dar um único golpe, certeiro, nesses bancos imperialistas e sugadores do Estado, que não dá pra ficar satisfeito em viver no futuro com a merreca de uma aposentadoria. Fico empolgado com a ideia e gesticulo, "é isso, eis a melhor saída, é o momento de fazer algo bem no estilo de Robin Hood". Mas o meu amigo empresário diz que, se der um golpe, vai curtir a via no Paraguai. Percebo o quanto sou bobinho, sensível com as camadas mais pobres da população, pensando na distribuição de renda e tals...
Vida que segue. Os cretinos não me dão bola, estão agora discutindo futebol.
Um gato preto sobe no muro, ali ao lado, e fica me encarando. Minha máscara que está no bolso começa a queimar, é hora de voltar para casa. Ao pedir a conta, chegam no bar o doctor Biza e o Damo do cachorrinho. Doctor pediu um litrão, acendeu um cigarro, disse que vinha de uma consulta e queria ouvir a opinião do poeta sobre umas coisas muuuuito importantes. Mas essa já é outra história.

*Esta é uma historinha de ficção. Por favor, controle teu alcoolismo e FIQUE EM CASA.

(B. B. Palermo)

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