sábado, 8 de fevereiro de 2020

Um mamífero escapuliu do zoológico



Se tiver um carrão importado
você terá outros rabos.
Não sei se esta frase navegava
na parte mais festiva do meu cérebro,
ou se era projetada pelo outdoor da esquina,
ou se ouvira certo dia
num melancólico
suspirar  do Beiço.
Convenci-me de que depois de certa idade
o que nos mantém de pé e olhando pro horizonte
é a ilusão de que algo bom surgirá, num flash,
como por exemplo nossa "cara metade".
Enquanto o marido averiguava as coisinhas
que o frentista fazia no caminhonetão,
sentada no banco ao lado do banco do motorista,
séria e gostosa e contemplativa
e de ray-ban,
ela parecia olhar pra mim.
Estava sentado a uns dez metros
e duvidava de que tivesse alguma curiosidade,
embora seja tipo raro de mamífero
que vive escapulindo do zoológico.
Eu a perdoo por ela não saber
que estou por dentro de outras coisas
além do cheiro da fumaça do óleo diesel
e do glifosato e do 24d que regam nossas terras vermelhas.
Ela não fazia ideia de que por aqui
tudo se espalha e inala e se compra e vende
fazendo crescerem humanos e animais
e plantações de trigo e soja.
Ela não sabe que cansei de cheirar
refis que chapam pernilongos
e o barulho do ventilador me deprime
nesse cafofo com tapetes paralisados pelo pó.
Para sua integridade psíquica,
eu a perdoo por não saber que sonho me entorpecer da maresia
que vem do mar aberto do litoral sul do Brasil.
Ela me fitava e devia pensar qualquer coisa,
algo prático,
tipo o que fazer pra se livrar do "mala",
como se virar sem um casamento
com menos grana e status.
A merda é conseguir evitar
o sentimento de culpa
por ter desejos de liberdade,
por não se adaptar definitivamente
a uma relação afetiva que pague impostos à civilização.
Se ela viesse ter comigo
eu diria que viver
é estar impregnado 
de desejos e frustrações.
Diria: Acredite no amor,
mas não apenas nesse daí.
Eis-me aqui, gavião solitário,
contemplando espécimes raras e comuns
e tristes e cheias de dúvidas
assim como eu.

(B. B. Palermo)

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