sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Telmo, vê aí uma torrada com ovo e uma sukita



Chego no bar sem muita esperança. Quero apenas uma mesa num canto pra observar e anotar umas coisinhas. Se possível afastado da multidão, sem exagerar no ódio ou amor, sem estar deprê ou eufórico. A vida está tranquila porque não coloco nela grandes esperanças. Pratico o que li em algum lugar: "Jamais se desespere, meu brother".
Ela apareceu carregando uma sacola e uma mochila. Vi que estava faminta e sem grana. Fiquei sensível:
- Senta aí. Você tá com fome? Pago um lanche. Tá tudo bem na tua vida?
Largou as coisas no chão, sentou e falou:
- Vou colocar as coisas na mesa. Aí vai ter TV e rádio, até a RBS, a Globo. Eu não sou boba... Que que eu tô ganhando pra vocês ficarem falando de mim? Ficam aí fazendo quadrinhos, historinhas... Eu tenho 40 anos. Eu entrego nas mãos de Deus. Eu só tô esperando a minha hora pra colocar as patinhas na mesa e abrir o jogo. Nem polícia, nem juiz, nem assaltante, não vai se salvar ninguém.
Dei corda, pra ver onde queria chegar.
- Eu sou a filha do Fernandinho Beira Mar? Nem ele foi falado assim... Faz 2 anos... Me chamam que eu vou contar. Você acha certo os outros ganharem dinheiro às minhas custas? Que juiz, que fórum, que delegacia, quem poderia fazer essa sem-vergonhice? Eu não tenho onde dormir, o que comer, muitas vezes eu não tenho onde guardar meus cacos. Eu ando pelo mundo afora assim e tô na boca do povo.
- Hum... Você tem filhos?
- Meus filhos estão bem, graças a Deus.
- E onde estão? Com quem moram?
- Um casal de filhos tá com a tia. A outra tá com a avó. A outra tá com outra tia. A outra com minha mãe... A outra é bem casada, graças a Deus... Entendeu? Só não põe a família no meio. Eles estão na deles e eu na minha. Não quero que venham me pisar, porque eu tô sozinha no mundo.
- Mas... E por que você está sozinha?                                  
- Tô sozinha porque eu não quis ele. Aí ele fica falando... Foi o egoísmo dele que me deixou longe de meus filhos... Se ele entregar minha filha, eu volto com ele, eu volto pra casa.
- Aham...
- Se por acaso eu faltar no mundo, eu quero um salário por mês pra cada filho, o governo vai ter que pagar... Se eu faltar no mundo...
- Tu não tem medo de morrer?
- Não, eu não tenho medo de morrer. Estou acostumada a ficar na rua.
Mais confiante, ela confidencia:
- Eu tenho uma filha no Uruguai... Trabalhei lá, numa casa.
Pedi pra que devorasse a torrada sem pressa.
- Eu não me importo com o que eu falei aí... eu tô sempre falando... Entendeu? Eu sei que não tô errada... Quem tá errado é o mundo. É ele que tá faltando comigo.
E assim, sem mais, ela se despediu.
- É isso aí... Tudo de bom... E que tenha uma boa sorte todo mundo do Brasil.
Em pé, ela acrescentou:
- Agora tu me diz... Tu já viu alguém com a minha coragem? De abrir o jogo pra um estranho, e mandar todo mundo pro espaço?
- Mastiga bem... Vai com calma.
- Mas eu tenho pressa!                                  
- Qual é o teu nome?
- Não posso dizer.
- Inventa um, tipo... Mirna, a esperançosa.
- Eu sou a Autora Sinistra. E qual é o teu nome?
- Eu sou o Palermo.
- Vou abrir o Facebook e te pegar.
- Tu tem Facebook?
- Vou fazer um. Tchau. E tenha uma boa sorte.
- Tchau. Que Deus te proteja e te guie.

Telmo, o cara do bar, acompanhava atento nossa conversa.
Antes de ir, ela pediu um refrizinho, uma sukita. Falei pro Telmo pendurar na minha conta.
Levantou e partiu.
Nem passou 2 minutos meu amigo exclamou, detrás do balcão:
- Cadelão, ela esqueceu a sacola!
- E agora? Meu Deus! To ouvindo um tic tac, tipo aqueles despertadores antigos!
- Corre... rápido... joga essa sacola no terreno baldio daqui do lado do prédio!

(B. B. Palermo)

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