Estou acostumado com esses ônibus urbanos que me
cercam e se afastam, indiferentes. A normalidade não é um bom sinal. Aguardar o
reinício dos campeonatos de futebol, lazer para espantar o tempo, isso também
não é um bom sinal. Até que ponto isso é normal?
Quero chegar de voadora nesses vitrais das
instituições que classificam quem escreve algo que valha a pena ser publicado,
e também nos críticos com sua seriedade, dizendo quem é bom poeta.
Essas listas dos livros mais vendidos são cobras
enormes me atacando, nos pesadelos. Pesquiso o verbete "serpente" e
jogo pesado no bicho. A deusa sorte ri e dá de ombros, debochando: "Nada a
ver, irmãozinho".
Meus escritos são novenas pagando promessas. Chutes
nos traseiros dos "bons".
Ainda faço concurso pra servidor municipal. Serviços
gerais ou zelador do cemitério ou jardineiro ou porteiro de alguma creche.
Uma profissão digna abrandaria minha sede e
peregrinação pelos bares.
Ainda vou madrugar com o chamado do radio relógio
comprado no Paraguai. O chuveiro funciona, a barba está feita. Lembro dos
amigos e sei que eles estão tranquilos, ronronando como felinos em seus leitos.
A insônia, às vezes, é um privilegio. Um dia vou retomar a meditação transcendental.
Vou esquecer o velho currículo, de ter sido bom
aluno no catecismo. De nunca passar de um 6,0 em matemática. De ter tido uma
professora jovem e loira e divina e tímida que sacou que eu gostava de
literatura e que me passava livros e livros. Primeira paixão, primeiras
fantasias, primeiros poemas ridículos.
Acostumado e acomodado a tanta coisa. Hora de juntar
pastas e envelopes e caixas com anotações e poemas e rabiscos de histórias que
me foram caros. Vou queimar tudo isso, junto com históricos escolares. Sei, isso
não deve ser normal, como não pode ser normal ter sobrevivido à travessia
desses pequenos mares agitados.
Pessoas adoram filas. Isso me faz lembrar das missas
na infância e adolescência, no momento da comunhão, ao receber a hóstia, o
corpo e o sangue de Cristo. Depois de décadas participei de uma missa, era de
um funeral, missa de "corpo presente". Decidi que também estava preparado
para comungar, e senti que o gosto da hóstia - se comparado ao meu tempo de
Primeira Comunhão - já não era o mesmo. De qualquer maneira, me senti próximo
de Deus.
É possível que volte a ter fé em Deus e na vida eterna,
agora que estou mais velho, e confesso que em algumas noites eu durmo com a luz acesa e o edredom
camuflando a alma e a cabeça.
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