quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Meus amigos ronronam como felinos, e eu me escondo debaixo do edredom


Estou acostumado com esses ônibus urbanos que me cercam e se afastam, indiferentes. A normalidade não é um bom sinal. Aguardar o reinício dos campeonatos de futebol, lazer para espantar o tempo, isso também não é um bom sinal. Até que ponto isso é normal?
Quero chegar de voadora nesses vitrais das instituições que classificam quem escreve algo que valha a pena ser publicado, e também nos críticos com sua seriedade, dizendo quem é bom poeta.
Essas listas dos livros mais vendidos são cobras enormes me atacando, nos pesadelos. Pesquiso o verbete "serpente" e jogo pesado no bicho. A deusa sorte ri e dá de ombros, debochando: "Nada a ver, irmãozinho".
Meus escritos são novenas pagando promessas. Chutes nos traseiros dos "bons".
Ainda faço concurso pra servidor municipal. Serviços gerais ou zelador do cemitério ou jardineiro ou porteiro de alguma creche.
Uma profissão digna abrandaria minha sede e peregrinação pelos bares.
Ainda vou madrugar com o chamado do radio relógio comprado no Paraguai. O chuveiro funciona, a barba está feita. Lembro dos amigos e sei que eles estão tranquilos, ronronando como felinos em seus leitos. A insônia, às vezes, é um privilegio. Um dia vou retomar a meditação transcendental.
Vou esquecer o velho currículo, de ter sido bom aluno no catecismo. De nunca passar de um 6,0 em matemática. De ter tido uma professora jovem e loira e divina e tímida que sacou que eu gostava de literatura e que me passava livros e livros. Primeira paixão, primeiras fantasias, primeiros poemas ridículos.
Acostumado e acomodado a tanta coisa. Hora de juntar pastas e envelopes e caixas com anotações e poemas e rabiscos de histórias que me foram caros. Vou queimar tudo isso, junto com históricos escolares. Sei, isso não deve ser normal, como não pode ser normal ter sobrevivido à travessia desses pequenos mares agitados.
Pessoas adoram filas. Isso me faz lembrar das missas na infância e adolescência, no momento da comunhão, ao receber a hóstia, o corpo e o sangue de Cristo. Depois de décadas participei de uma missa, era de um funeral, missa de "corpo presente". Decidi que também estava preparado para comungar, e senti que o gosto da hóstia - se comparado ao meu tempo de Primeira Comunhão - já não era o mesmo. De qualquer maneira, me senti próximo de Deus.
É possível que volte a ter fé em Deus e na vida eterna, agora que estou mais velho, e confesso que em algumas  noites eu durmo com a luz acesa e o edredom camuflando a alma e a cabeça.

(B. B. Palermo)


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