Procurava na agenda o número do
telefone da pizzaria, e dei de cara com o número do celular de um amigo, que
falecera dois dias antes.
Tive a idéia de ligar para ele, mas
só de pensar na possibilidade de ouvir sua voz, me deu calafrios.
Minha vontade foi contida pelo medo
de despertar, com tal gesto, a ira da morte. E na hora me veio a verdade
inquestionável – e a morte de meu amigo foi um exemplo disso – de que a morte
quase sempre não manda aviso prévio. Ela nos pega desprevenidos.
Minha brincadeira sinistra recebeu
o merecido troco. Ao ligar para o número do amigo que faleceu, o silêncio do
outro lado da linha foi quebrado pela seguinte mensagem da morte: “Vou ficar
mais um pouco na área de vocês, analisando, observando,... Quero saber se vocês
merecem desfrutar da plenitude da vida, que só pode experimentar quem está
vivo!”.
Suando na turbulência desses
pensamentos malucos, lembrei da crônica Mensagem,
da Heloisa Seixas, que reproduzo a seguir.
MENSAGEM
Ficou
chocado quando recebeu o telefonema sobre a morte da amiga. Ele a conhecia
havia muitos anos e nunca soubera que tivesse doença alguma. Era uma mulher
relativamente jovem, bonita, que se cuidava. Muitas vezes caminhava com ele
pela praia, sempre animada e contando casos engraçados. Tinham estado juntos
poucos dias antes. Como é possível, perguntou ao amigo comum que lhe dava a
notícia, ele também perplexo. Foi um mal súbito, respondeu o outro.
Mal
súbito. A expressão ficou ressoando em seu ouvido. Era a junção de duas
palavras fortes, incontornáveis em seu sentido, que resumiam com tirania aquela
morte para ele absurda. Mal súbito. Não podia acreditar.
Passaram-se
alguns minutos e ele ali, parado junto ao telefone, olhando para o aparelho
como se esperasse ver brotar de seus fios a explicação que buscava. De repente,
tomou um susto. Tão confuso ficou ao receber a notícia, que não havia
perguntado nada sobre o horário e local do enterro. Folheou com dedos úmidos o
caderno de telefones, procurando o número do conhecido que acabara de ligar. E,
sem querer, abriu justamente na página que trazia o telefone da amiga morta.
Estremeceu, olhando aquele nome, seguido de algarismos que já não faziam
sentido. Seus olhos ficaram turvos.
Mas
em seguida pensou que talvez fosse melhor ligar para a casa dela. Ela morava
sozinha, é verdade, mas com toda a certeza haveria alguém da família atendendo
ao telefone, justamente para informar sobre o enterro. Talvez, ligando para lá,
ele soubesse mais alguma coisa, algum detalhe que o ajudasse a aceitar o que
acontecera.
Ligou.
O telefone tocou uma, duas, três vezes e, em seguida, após um clique, ele ouviu
a última coisa que esperava ouvir – a voz da amiga.
Por
um instante, ficou imóvel, apertando o bocal, os dedos muito brancos, enquanto
a voz suave da mulher morta falava com ele. Claro que num segundo se recuperou..
Claro que percebeu logo ser apenas a voz dela gravada na secretária eletrônica
– que continuara ligada.
Mas,
passado o primeiro susto, redobrou a atenção. Começou não apenas a ouvir, mas
também a escutar o que ela dizia. E constatou que não era uma mensagem comum,
apressada, como as que são gravadas pela maioria das pessoas. A amiga deixara
gravada na secretária eletrônica um recado lírico, como um poema, que,
curiosamente, até então ele nunca ouvira. No fim, ela dizia que não estava, mas
que logo voltaria – e eles se reencontrariam. E era como se houvesse, por trás
de suas palavras, um sorriso. Como se falasse de verdade com ele, a ele se
dirigisse. E era como se dissesse que estava feliz.
Ele
próprio sorria também ao repor o fone no gancho, os olhos ainda úmidos. Estava
pacificado.
Eloísa
Seixas, do livro Contos mínimos,
Editora BestSeller.
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