Agora os bares quase vazios me acolhem
como se eu fosse a encarnação de uma dúzia de alegres amigos.
Agora os olhares despertam a curiosidade
irradiando mais vida
e isso por causa do medo.
Agora me sinto em casa
coçando o saco e fazendo epifanias.
Também sou escritor de Facebook,
catando assuntos que viralizem e me rendam bons likes.
Sonhos e traumas e fantasias da infância e adolescência ressurgem.
Dá vontade de fazer terapia pra enfrentar os enxeridos id e superego.
Estudo guitarra e baixo e me transformo num quase...
músico e compositor e letrista.
Agora leio poemas de comerciantes e granjeiros e veterinários e
engenheiros.
A "esquecida" pergunta sobre o sentido da vida voltou.
Também o enigma ou mistério que significa morrer.
O desconhecido.
O fim de tudo.
O grande amor desejado.
O grande amor perdido.
E dê-lhe poemas e pequenos míseros contos.
E dê-lhe crônicas e relatos de viagens e aventuras.
E livros publicados nuns sites que brotam aos milhares
feito vermes nas latrinas.
Vejo agora que a humanidade começa a se enxergar diante do espelho.
Agora percebemos que secávamos por dentro
e então ficamos criativos, fazendo aquele prato,
pesquisando por horas sobre temperos nobres,
como o manjericão e a cúrcuma e outras especiarias.
Até refletimos sobre a rotina diária
de trabalho e tempo de lazer e descanso,
com deveres e, se possível, vinhos e Netflix e outros molhos
e de vez em quando o milagre da presença
de uma química no casamento.
Agora que nos tornamos poetas
damo-nos conta de que a musa semeia o vírus de sua beleza
cada vez mais afastada de nós,
e põe na vitrine de olhares
sua coleção de máscaras estilizadas.
Agora já nem sei se faz sentido perguntar
se é o todo que devora o nada
ou se é o nada que fode o todo.
Agora que o instinto poético ressuscitou,
percebo como a trintona e a quarentona e a cinquentona
ficam divinas com seus belos semblantes de pano e elástico.
Captei o verdadeiro sentido de minha quarentena:
os outros nem são mais de outro mundo.
Agora que o vírus flerta com minha dignidade,
não vejo mais graça em queimar boa parte de minha vida
tentando me conhecer.
Agora que não confio nas ideias messiânicas
e científicas e do senso comum,
penetrarei o miolo das coisas mais elevadas
e ejacularei minha indignação com tudo,
sonhando ser lembrado depois que partir.
Matutava essas coisas grandes num cantinho do bar
enquanto ali por perto um sujeito
devorava um pastel feito um porco.
(B. B. Palermo)