domingo, 29 de dezembro de 2019
sábado, 28 de dezembro de 2019
Eu pensava outras coisas
O casal de garotos bebe em
silêncio na mesa ao lado. Sete da noite, 40 graus e eu acabei de retornar da
padaria, onde almocei uns pasteizinhos e café com leite, expresso.
Sentado naquela mesinha
solitária da padaria eu observava senhoras e crianças e garotas de shortinho na
fila do pão. Óbvio, como a sexta, que me perguntava Quem somos nós na fila do
pão?
Eu pensava outras coisas. Na
Lucy, seus vinte e poucos, aquariana que, segundo os astros, combina com meu
signo. Eu sonhava que ela seria a agente literária perfeita do Cadelão,
prestativa, como ela se autodefine.
Eu pensava outras coisas. Como
seria maravilhoso se eu fosse a reencarnação do Hemingway, se pudesse retomar e
tocar adiante sua obra, e também pudesse ser um escritor reconhecido no planeta
inteiro, e ter inspirações em português e inglês e italiano e espanhol, e ter
um romance roteirizado e transformado em filme.
Eu pensava outras coisas. Em Lucy e seu
papel de mãe, em Hemingway e a inveja que
ele me despertou quando li "O sol também se levanta" e "Adeus às
armas". Porra, quando vou conseguir bolar aqueles diálogos espertos entre os
personagens? Quando vou conseguir descrever cenários e paisagens com a riqueza
de detalhes e a concisão que o FDP conseguiu?
Eu pensava outras coisas. De
que devo ler menos os grandes e mais uns escritorezinhos de merda, uns
pretensiosos que encontro por aí, com certeza isso vai levantar meu astral.
Eu pensava outras coisas. De
que enchi o saco de tanta punheta e sexo casual e que Lucy devia me
compreender, Ela é a garota de minha vida, porque nós dois somos loucos e
aventureiros, no fundo ela adora esse coroa bebum e escroto e sensível e
espirituoso.
(B. B. Palermo)
quarta-feira, 18 de dezembro de 2019
Somos uns FDP tão burros que até parecemos ingênuos
Estamos
juntos, com nossas bicicletas e esteiras e cacetes e xotas abandonadas num
canto.
Estamos
juntos, com nossas veias entupidas de tanto transportarem frustrações.
Me
identifico com todos, por isso estamos juntos. Flutuo entre uns caras surdos
que berram toneladas de amenidades e depositam numa latrina minha sede.
Estamos
juntos, com nosso cabelo cada vez mais ralo, nossas olheiras e dentes mal
cuidados, nossas orelhas mergulhadas na cera, nossas mulheres que funcionam
como babás.
Nossos
aluguéis atrasados, nossas mansões e venenos derramados nas plantações e nossos
bebês prematuros e seus defeitos, como se recebessem uma tatuagem ou marca, a
nossa idolatria ao progresso.
Estamos
juntos, com nossos carros econômicos e limpos e brilhantes, como se fossem
limusines, com nossas festas de fim de ano, da empresa e da escola e da
família, e nossas postagens bonitinhas nas redes sociais com aquela ortografia
horrorosa.
Estamos
juntos, com nossos chás emagrecedores e frutas que apodrecem na fruteira e
legumes mofados na geladeira. Adoramos citar Clarice Lispector e Martha
Medeiros e Mario Quintana, aquelas merdas de autoajuda que fingimos não saber
que não foram esses caras que escreveram.
Estamos
juntos nessa de sermos uns filhos da puta tão burros que parecemos ingênuos.
Estamos
juntos com nossa raiva que faz estragos, como se fosse granada explodindo no
meio da multidão. Nossas respostas amargas e ríspidas a quem nos contraria
revelam imensa fraqueza. É como se abríssemos uma clareira na floresta usando
facão sem cabo e sem usar roupa ou qualquer proteção, totalmente nus e expostos
às investidas de cobras e insetos.
Estamos
juntos nessa de nos considerarmos anjos rodeados de cobras e insetos.
Estamos
juntos, com nossos lençóis limpos, sacadas arejadas e amantes discretas e
compreensivas, como se existissem apenas no imaginário. Estamos juntos,
mulheres perfeitas existem apenas no imaginário. Estamos juntos, homens
perfeitos não existem. Me conheço.
Estamos
juntos. Se me perguntarem: Pra 2020, escolherei Cristo ou álcool ou drogas? Simplesmente
responderei: Sou todo Lucy, com seus
peitos e coxas e bunda musculosa e sacadas espirituosas e sotaque portunhol que
bombeia meu sangue até os países baixos e sua personalidade inesquecível que amarei
eternamente no ano que vem.
Estamos
juntos e sabemos que somos anjos protegidos por nossos deuses e ídolos do
esporte e da música e da política, seres reais e imaginários, responsáveis pra
dar sentido pra essa vidinha de filhos da puta pra lá de burros, mas tão burros
que até parecemos ingênuos.
(B.
B. Palermo)
sábado, 14 de dezembro de 2019
Nada, nada, nada
A folha em branco, copo
d'água e uma cerveja, e nada, nada, nada.
Um velho ansioso pra
contar as cagadas que fez na semana, a folha em branco esperando, e nada, nada,
nada.
A cerveja pouco gelada,
o tímido colarinho, o velhinho que insiste em bater papo, a folha em branco, e
nada, nada, nada.
A ressaca que grita
mais alto, planos outra vez adiados, o comportamento esquisito do trânsito na
noite de sexta, a folha em branco, e nada, nada, nada.
O silêncio dos
coerentes, a gritaria dos idiotas, jovens e velhos só falam em negócios e
grana, a folha em branco, e nada, nada, nada.
Greves no topo, greves
quase estourando, governantes são cocô de cachorro que pisei na calçada, meu
coração reclamando, a folha em branco, e nada, nada, nada.
Alarmes disparam,
guardas berram salários atrasados, câmeras de segurança estão me vigiando, a
folha em branco, e nada, nada, nada.
Mapas estão sobre a
mesa, mapas estão nas paredes, mapas estão olhando e rindo de minhas escolhas, a folha em branco, a caneta fiel e
impotente, e nada, nada, nada.
Gostaria de conhecer
todas as putas da cidade, gostaria de casar com uma virgem e viver bodas de
ouro de fidelidade... hoje estou delirando... a folha em branco, e nada, nada,
nada.(B. B. Palermo)
terça-feira, 10 de dezembro de 2019
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
Final do campeonato gaúcho de futebol feminino
Quando
sentei na arquibancada os dois times estavam aquecendo. Reparei na massa
muscular das gurias... Jesus Cristo! Os músculos a mil, vibrando,
principalmente as coxas... Aquelas musas derretiam meu olhar, os cabelos
amarrados, a pele bronzeada de treinos e jogos no sol a pino.
O
suor, a motivação, a vontade de morder a bola. Velho, eu observava tudo aquilo
e também queria ser mordido, ser o cara, no caso, A BOLA... isso, queria ser pisado,
agarrado, chutado.
Pouco
antes de começar o jogo eu via as gurias dos dois times abraçadas, formando
dois círculos perto do meio campo... As CAPITAS dando aquela moral e motivação,
"Todo mundo ligada..." e "Vamos lá, todo mundo comendo a grama,
é o jogo de nossas vidas..." E
então o grito "Inter, Inter, Inter!". A mesma coisa no lado do
círculo com as gurias do Grêmio... "Grêmio, Grêmio, Grêmio!".
Cara,
aí eu também me motivei. O sangue ferveu e o radiador furou e eu decidi ir pra
copa sugar um latão de cerveja, lamber a espuma que ficou nos beiços, olhando e
devorando aquelas deusas que começaram a voar no gramado.
Daí
a pouco um maluco, cara de chapado, e que se desgarrou de uma torcida
organizada, se aproximou com esse papo: Mano, tu viu como elas entram nas
divididas... Mano, tu viu como elas se enroscam e se agarram... Mano, olha só como
elas se agarram!
A
criatura exibiu um punhado de notas de cem reais... e ficou dizendo pra esse Cadelão,
Mano, tu é ingênuo... Mano... o que tu vê aí dentro de campo, desde a
massagista, a fisioterapeuta, a técnica... as jogadoras... Mano, todas elas são
lésbicas... Aí eu falei: Velho, se isso for verdade, eu tô em casa... Eu também
sou lésbico.
O
cara ficou me encarando e deve ter pensado "Sujeito mais estranho, véio!".
Dali a pouco falei pra ele: Tá vendo aquele
filho da puta grudado na tela do alambrado? O infeliz xinga a árbitra, a
técnica adversária, a bandeirinha... Esse retardado está estragando o que o
futebol tem de melhor, que é jogar com alegria.
Botei
filosofia pra cima dele. Falei, Malandro, pra mim o que vale é a arte dos
movimentos... O mais bonito e que me alegra é a estética da coisa...
Foi
então que o inteligente veio com uma de comparar a pouca qualidade do futebol
das gurias, com relação ao futebol da série A do campeonato brasileiro.
"As gurias correm pra todo lado, meio perdidas... quem pensa um pouco e
tem qualidade no passe e no chute vira craque".
Falei
pro cara: Velho, tu tá acostumado com o futebol que passa na TV... Acorda, meu,
95% do futebol dos machos que rola no país é mais feio do que esse aqui. Além
disso, acho muito mais interessante pousar meus lindos olhos nas pernas dessas
gurias do que nas pernas dos marmanjos. Sempre vou preferir ver as deusas
correndo atrás de uma bola.
O
cara foi pro banheiro. Aí o segurança do bar, que observava e ouvia nosso papo,
se aproximou e falou: Fica ligado, meu, esse cara é uma "mula".
No
segundo tempo foi gol em cima de gol. Putz, a comemoração das gurias me pareceu
uma imitação do jeito de comemorar que sempre se vê no futebol masculino. Puta
merda, não acredito que elas estão imitando os caras! Elas deviam se agarrar e
se abraçar e se beijar daquele seu jeito "lésbico" (kkkkk... Claro
que isso só passou pela parte mais "suja" de minha cabeça... Não
falei pra ninguém... Imagina ser carimbado como um simpático machista).
Matutei:
As gurias não tem que reproduzir o que o futebol tem de pior, que é a
violência, a competição... e de valorizar apenas a vitória, ainda mais quando o
jogo é feio... Observei as comissões técnicas, suas olheiras, carinhas de pouco
sono e muito estresse. É o que se ganha quando se encara o futebol apenas da
perspectiva dos resultados, ou seja, quando só interessa a vitória e o lucro.
Pensei: Velho, acho que essas criaturas quase não dormem. Caralho, parece que
estão se transformando em máquinas!
No
final do jogo, não sei por que, fiquei meio triste. Sendo uma decisão de
título, enquanto um time de deusas ficou superfeliz, o outro time de deusas
ficou hipertriste. Velho, eu me dividia. Não sabia se comemorava o título com
as campeãs, ou se abraçava as garotas derrotadas e chorava junto. Como tinha
muita gente comemorando, no gramado e arquibancadas, pensei que minha missão era consolar as gurias que perderam. Foi o que fiz. Me dirigi até o seu
vestiário. Ao chegar, fui barrado por um segurança, um armário de uns dois
metros de altura. Droga... Eita vida cruel. Velho, acho que nasci numa época
errada... Só Pode... Ninguém me compreende!
Mas
ainda não quis me retirar do estádio. Havia algo guardado para mim, pensei.
Observei uma repórter de TV perto da boca do túnel. Era a Kelly Costa. Caramba,
como ela é linda! E ela me viu... Gente, Ela trocou olhares comigo! Sim, me pareceu
interessada em saber quem eu sou...
É
isso aí, velho, com esperança o mundo tem tudo pra dar certo!
(B.
B. Palermo)
segunda-feira, 2 de dezembro de 2019
Sempre há motivos para beber mais uma
Na
loja de conveniência do posto de combustíveis, observo uma jovem garota comendo
salgadinho e bebendo um copão de café preto.
Convenço-me de que a cena vale
outra cerveja.
Jovem,
e de medidas desproporcionais. Isso numa cidade repleta de gatas lindas - tanto
loiras quanto morenas.
Meus olhos estão dispostos, encaram o que vier.
Hum...
Encontro-me numa distância de uns cinco metros, e percebo que me enganei. Não é
café, é refrigerante, Fanta uva.
Sofregamente, a moça dá conta do salgadinho.
Agora ela devora um enroladinho. Bom apetite. Mastiga e engole no mesmo
ritmo alucinado do trânsito à tardinha.
Nunca
saberá que a flagrei em plena luz do dia do pecado.
Nunca
saberá que foi dominada pela gula, uma parte angelical e, ao mesmo tempo,
diabólica do seu corpo.
(B.
B. Palermo)
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
O sangue de um romântico ingênuo é sugado pelas piriguetes
Experimento
hoje um sentimento de solidão e tédio, como quem espera ônibus urbano em dia de
feriado. É o mesmo sentimento que experimentei quando passeava com a namo no
Monza, tinindo, e lavado, e lustrado. Ela mergulhada no chimarrão com sabor de
ervas exóticas, cuia poeticamente enfeitada, e eu gemendo, cheio de tremores
dada a necessidade de umas doses. Ela
falando de móveis e imóveis que estruturariam "nosso" futuro, e eu
roendo as unhas de tanta vontade de saltar fora, pra poder começar tudo de novo
com outra.
Necessito
emigrar de uma relação para outra, nada de ficar mais de um ano, no máximo um
ano e meio. Isso para escapar de suas críticas e lamúrias e os respingos na
minha cara, como saliva de bêbado. Sei que ouvirei e ouvirei, como um sonho que
se repete: "Tu me enrolou, me prendeu... por todo esse tempo. Deixei de
casar com o Ricardão. Ele me amava tanto! Tu faz ideia de quantos caras vinham
atrás? E agora, quem é que eu vou arranjar?".
Enquanto
a garota tinha olhos pro futuro, pro companheiro que saltaria feito um tigre
pra cima do chamado "amor eterno", eu pensava nos livros que
publicaria, nos livros que gostaria de ler, nos contos que desejava escrever...
E, claro, nas gatas que me cercariam e bajulariam quando fosse o escritor cuja fama
me chamasse.
Ela
falava dos mates, do chá de fraldas da amiga, da Black Friday, e eu me distraia
com belos rabos que acariciavam meus olhos nas esquinas por aí.
Quando
o relacionamento, enquadrado nos padrões usuais, começava a desmoronar, eu
sentia uma alegria doente, e notava minha cara-metade com semblante de bunda.
Enquanto sentava no vaso sanitário, minhas ideias claras e distintas me beliscavam
e diziam que ela merecia um traste melhor do que eu.
Quanto
mais ela se afogava no chimarrão e nos sucos detox e chás emagrecedores, eu
mais investia em vodca e cerveja e uísque. Reconheço, com frequencia minha alma
despertava azeda, tudo porque enchia o cu com cerveja ruim.
Toda
vez que ela trazia "nossos" planos na dianteira, como se fosse frase
de para-choque de caminhão, eu tinha a impressão de que ela falava alto, muito
alto, a ponto de todos os meus amigos e conhecidos estremecerem. Os caras eram
testemunhas da fria em que havia me metido. Sabia que com qualquer outro,
desfilando nos sábados e domingos à tardinha com o mate e em carros bem
melhores do que o meu, sua felicidade fluiria naturalmente. Qualquer sujeitinho
com seus papos e músicas bestas a deixaria mais feliz e centrada,
encaminhando-a praquilo que sempre sonhou.
Às
vezes sou humilde, admito que não sou melhor do que esses galãs, ao contrário,
sou um grande bosta, deslocado do que rola no tablado encerrado e lustroso em
que a galera desfila.
Estou
de saco cheio de ouvir de vocês: "Cadelão, tens à mão, deitada ao teu
lado, uma incrível boazuda, tu fode toda
a noite... tu goza e ela goza, e assim empalidecem suas lamentações e
noias... Veja bem, todo esse banquete, por que então a necessidade de correr
atrás de outros rabos?".
E
vocês dirão mais: "Acho que essa necessidade de futricar daqui e dali é o
que vai foder com tua vida. Tu fica salivando ao cruzar por essas piriguetes,
suas vozes e olhares e cheiros e fragrâncias, e assim não desfruta por inteiro o
que está aí bem do teu lado".
Apesar
de tudo, eu juro, sou um bom garoto. Sério, não riem, talvez sejam breves
recaídas de um bêbado que se deixa afetar por um puto lirismo esperançoso, que
se resume em correr atrás de amores impossíveis, como se quisesse ressuscitar o
rock nacional dos anos 90.
Juro,
não passo de um romântico ingênuo perdido no palco. Um pescador amador que se
embrenhou por lagoas e pântanos, mas que esqueceu do repelente de mosquitos, e
por isso o sangue que circula nas veias de suas pernas sofre incrível sucção
dos borrachudos, que são as piriguetes, a cada dia mais ousadas e agressivas.
(B.
B. Palermo)
segunda-feira, 18 de novembro de 2019
Ainda vai chover na minha aorta
O Beiço perguntou:
- Cadelão, por que você não escreve mais?
Não passou trinta segundos, e o veado debochou:
- Cadelão, por que não te matas?
Então respondi:
- Estou igual a um personagem do Hemingway, só juntando material! Sei que, além do sol também se levantar, a qualquer hora vai chover na minha aorta.
(B. B. Palermo)
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
De mãos dadas com senhor Sombra
Farmácias brotam diante
dos olhos
feito tiririca nos gramados.
Bares aguardam bêbados
convictos e tímidos
e outros tipos que
fazem estágio.
Alguns serão aprovados,
outros serão resgatados
por pastores de
igrejas.
Entre bares e
farmácias, escolho os primeiros.
Em vez de paroxetina e
valium e prozac,
prefiro cervejas e
canecos de chope.
Estou feliz porque
ninguém sabe
do banho enforcado e do
sovaco a mil.
O dia começa as 12h e o
almoço é as 16h.
Uma voz ensombreada,
diz:
- Ainda vou te levar
ao céu.
O Sombra, um cara que
dizem ser meu eu mais profundo e radical,
um Cadelão do avesso e
vesgo e falso,
ri do meu perfil quando
juro que sou sincero.
Até hoje não me
acostumei com esse sujeito
grudado no meu
pé.
Todo dia pessoas sinalizam
posturas bem comportadas,
como se fossem pintores
envernizando minhas faces,
maquiando o meu perfil.
Coachings me perseguem
e tagarelam com mensagens amplificadas.
Falam do meu sucesso,
embora sabendo que não passo de uma abelha
se debatendo nesse
vespeiro.
Não vejo muitas opções,
a não ser farmácias e bares.
Até dou-lhes atenção,
porém o estoque de remédios
e de paixões sempre
recua.
Estou cheio de ouvir a
velha melodia:
- Aproveite e sugue a
calmaria das tempestades
que essas drogas
propiciam. Viver
é sair pra chuva e se molhar.
O estetoscópio do médico
nunca vai alcançar as moléstias
duma multidão de
imbecis.
Sujeitos estranhos
dizem:
- O mal se cria na
cabeça, meu irmão.
Tenho visto tanta gente
deprimida por aí.
A toda hora disparam
sirenes dos bombeiros.
Lendo um livro de uma
psicanalista
eu me convenci de que
sou ressentido.
Tomei conhecimento das
opiniões e feitos de uns próximos
e tive gases e refluxo
e frieiras e azia.
Culpado disso tudo é o
Sombra,
é ele que inveja um
amigo, só porque o cara fala 4 línguas.
O dia passou de carona
numa tempestade.
Dormi pouco pra não
faltar a um encontro.
Possuí-la era o alvo,
mas o tempo fez um desvio.
Então estrelas nasceram
e outras morreram.
Nada de flores, nada de
presentes.
Agora estou no
princípio da escada
e tenho uma visão
realista do meu ser.
Olho pra cima e sei que
não chegarei no topo.
Tudo culpa da
delicadeza e doçura e alma leve do Sombra.
Ganhar tempo. Não sei
se pago as contas
que pendurei nos
botecos da avenida,
ou se torro os 700
pilas no Degrau's.
Janusa - o traveco
bruxuleante - ligou,
quer me apresentar uma
princesa cheirosa
como angorá que
retornou do pet shop.
Janusa é irresistível, de
personalidades múltiplas,
e conhece os atalhos do
prazer.
Cresceu num lar em que
germinaram incesto e pedofilia
e brilho da lâmina da
navalha e estampidos de 38
e álcool e drogas em
carreiras bem alinhadas.
Ela (ele) sabe que a
disputa
entre Cadelão e Sombra
é desigual.
Quando o Sombra vence
em disparada
e Cadelão entorna os
primeiros copos,
Janusa balança a cabeça
com cara de alucinada,
como se presenciasse o
fim dos tempos
e bota a culpa no
destino.
Hoje estou cheio de
ontem
e os bares dessa
avenida continuarão me esperando
com suas pernas abertas
e mesas nas calçadas.
Mas hoje passarei ao
longe,
eles não fizeram por
merecer minha
ressaca bizarra,
que desfila por aí de
mãos dadas
com senhor Sombra.
(B. B. Palermo)
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Leia o Livro, Veja o Filme: Mas Não Se Matam Cavalos? / A Noite dos Desesperados
“Fiquei de pé. Por um momento vi Glória de novo, sentada no banco no píer. A bala acabara de atingir a sua cabeça, de lado, o sangue ainda nem tinha começado a escorrer. O brilho do tiro ainda iluminava seu rosto. Tudo estava claro como o dia. Ela estava completamente relaxada, completamente à vontade. O impacto da bala tinha virado sua cabeça um pouco para o outro lado; eu não tinha uma visão perfeita de seu perfil, mas podia ver seu rosto e seus lábios o bastante para saber que ela sorria. O promotor se enganou quando disse ao júri que ela morreu em agonia, sem amigos, sem outra companhia a não ser a de seu cruel assassino, ali, naquela noite escura, à beira do oceano Pacífico. Ele estava completamente enganado. Ela não morreu em agonia. Ela estava relaxada, confortável e sorria. Foi a primeira vez que a vi sorrir. Como poderia estar em agonia? E não estava sem amigos. Eu era o melhor amigo dela. Eu era o único amigo dela. Como é que ela não tinha amigos?”
“Mas não se matam cavalos?” começa com o parágrafo acima e, a partir do julgamento de Robert, narra em retrospecto a jornada do protagonista, desde seu primeiro encontro com Glória até o trágico desfecho da relação. Era época da Grande Depressão americana. A fome assolava a população e o desespero levava a atitudes insanas.
Robert e Glória se conheceram na Melrose Avenue. Ele saía do estúdio da Paramount, aonde tinha ido mais uma vez tentar a sorte, enquanto ela corria ofegante e maldizia o ônibus que tinha acabado de perder. Ele era do Arkansas; ela, do Texas. Ambos haviam deixado seus estados de origem para trás e rumado para a terra das ilusões em busca de um sonho – Robert queria ser roteirista e Glória almejava ser atriz. Depois de um certo tempo sobrevivendo de pequenos papéis, a dupla já não tinha muita esperança. A última cartada dos dois era participar de uma maratona de dança que anunciava um prêmio de 1000 dólares ao casal vencedor.
À primeira vista, uma maratona de dança pode soar estranho e uma saída fácil para Robert e Glória, já que os participantes tinham garantidos abrigo, banho, comida e atendimento médico. Todavia, aos poucos o verdadeiro horror da atração vai ficando evidente: era uma arena na qual os dançarinos chegavam ao limite dos seus corpos, se digladiavam até a exaustão, passavam por tortura psicológica e eram expostos a humilhações e todo tipo de engodo para entreter o público e atrair patrocinadores. Uma mistura assustadora de Jogos Vorazes com reality show de dança.
Glória era uma garota amarga, que sofreu abusos, foi vivendo de favores e pulando de sofá em sofá, apenas tentando sobreviver. Na época em que conheceu Robert, já não tinha mais nenhuma fé na humanidade. A frase que mais pronuncia durante toda a história é ‘Queria estar morta’. Sem dúvida, triste e deprimente, mas não incompreensível. Como julgar as atitudes de alguém que só conheceu o pior da vida e que não tem mais perspectivas de futuro?
Robert ainda mantinha a essência de sonhador. Repreendia constantemente a amiga por seu pessimismo, tentava apontar saídas. Mesmo no salão claustrofóbico, em meio a uma multidão disposta a qualquer coisa para conseguir alguma vantagem, ele ainda buscava os raios de sol e pensava no mar. Ainda que estivesse em um ambiente de ‘vale-tudo’, ele conseguia ser cortês e solidário. Entretanto, os esforços individuais nem sempre bastam para mudar o destino.
Eu sempre achei esse título curioso. Outro dia, estava folheando o “1001 Livros Para Ler Antes de Morrer” e vi a indicação desse livro lá. Como era curtinho, consegui encaixar entre minhas outras leituras programadas e, sinceramente, foi uma ótima escolha. A história da luta pela sobrevivência em uma pista de dança não poderia ser mais intrigante e desoladora. Os personagens são bem reais e o título faz todo sentido.
Para variar, mais um filme adaptado de livro. Sydney Pollack levou a história para as telas em 1969, com Jane Fonda no papel de Glória e Michael Sarrazin encarnando Robert. A produção foi recordista em indicações ao Oscar de 1970 entre os filmes não indicados na categoria de melhor filme.
O diretor faz os protagonistas se encontrarem pela primeira vez já dentro do salão, quando Glória procurava um par e Robert entra no local por acaso. À narrativa da competição são mesclados flashs da infância de Robert, que fazem a ligação do título original com o desfecho fatal da trama.
Em geral, é uma adaptação bastante fiel. As cenas de participantes surtando sob o estresse são angustiantes, e as disputas do derby são ainda mais terríveis e violentas do que aquelas que minha imaginação havia criado. Para compensar, os pequenos solos de Robert banhado pelos raios de sol são um respiro de delicadeza em meio à brutalidade reinante na pista. As explicações do organizador sobre os cálculos e taxas impostos aos vencedores são revoltantes e, mesmo tendo sido inventadas para sustentar uma alteração da história, estão em total conformidade com a ideia de exploração dos miseráveis apresentada no livro.
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