segunda-feira, 22 de abril de 2019



Será belo o nosso mundo quando soubermos liberar a energia mental para o bem de todos. 

(Chico Xavier)

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Cada um tem os chatos que merece


Quando bebo com o Zé Franco Atirador, meço minhas palavras como quem pisa em ovos. Ele naufragou nas visões de mundo dos filósofos existencialistas. Se não está satisfeito com a vida que leva, óbvio que as coisas e pessoas que o cercam são fodidas. Não vê como nobre o seu dia, ao acordar as cinco horas da manhã e permanecer ativo até as nove da noite. Adormece e não sonha. Ronrona como uma pedra, devido aos tarja preta. Seu dia se resume em estar acordado e fazer tudo certinho, do trabalho às refeições e ao lazer.

Devidamente acomodados numa mesa na calçada diante do bar, à queima roupa, Ele pergunta o que tenho feito, e quais são meus planos para esse e para os anos que virão. Seja qual for minha resposta, vejo-o embriagar-se, mesmo que tenha sugado apenas uma caneca e meia de cerveja. Ele me joga um sentimento de culpa, eu me deixo afetar, como um adolescente desnorteado.
Minha conversa o aborrece.
 Sei, concordo, concateno meias-verdades, digo coisas espalhafatosas, tais como me inscrever num concurso de contos, ou de poesias, e que um dia ainda vou ser reconhecido, não importa que seja depois de morto. Não tenho idade nem estômago para levar uma vida normal, como a de um funcionário público ou vendedor ou professor ou pedreiro ou encanador.
 É o suficiente pra despencar um aguaceiro. Soca a mesa e o ar, triplica o volume de sua fúria.
- Tu tá de sacanagem!
Pra ele, meus desejos não passam de  delírios, e a lógica de meu discurso é não ter qualquer lógica. Ordena-me a leitura (é sério) da analítica de Aristóteles.
O Geni, atrás do balcão do bar, observa-nos apreensivo. Não quero confusão. O Geni é fortão, e tem a seus pés um enorme cão de guarda, um taco de beisebol.
Simplesmente murmuro:
- Você tem toda razão.
O estrago está feito. Pede a conta, não deixa que Eu contribua com algum dindim,  e volta para casa.
Meu efeito psicológico é retardado. Permaneço no bar e encho a cara. Mas, mesmo de porre, tudo reacende na minha memória, e não tem outro jeito senão ouvir blues e sugar litros de cerveja e ligar pra Janete, a cafetina veterana que me dá colo nas horas da mais completa escuridão.
Juro, nos próximos dias, vou dar um tempo a esses sujeitos que considero uns chatos. Porra, não posso delirar e muito menos sonhar. O que me resta?
Ele é mais um que se junta ao bando de que desejo me afastar. Eles têm opinião pra tudo. Eles sabem como é e como deveria ser a vida dos outros.
Desconfio que nem você, nem meus amigos, acreditam na pureza de meus princípios. Tudo bem. Nem Eu acredito.
Poderias dizer que minha vida se compara à de uma formiga, ou barata, ou de um sabiá, que a natureza permite cantar apenas na primavera. Ou, que seja, de um boi saudável. Uma vida que se resume em aguardar por horas pra conferir os números da loteria ou do jogo do bicho, com a adrenalina que parece à do bêbado ou do viciado.
Que se resume em dizer, com uma indisfarçável má-fé,  que faço meditação, que faço caminhadas diárias, que tenho uma prateleira cheinha de alimentos naturais e chás e incensos.
Que se resume em esperar a namorada, que trabalha três turnos, que se dane, eu quero é que ela venha ofegante, me chupe e me cavalgue, eu quero é pra hoje, foi pra isso que abri mão de estar sozinho no mundo, e me esforcei pra me adaptar a essa palhaçada chamada "convenções sociais".
Sim, sei, vocês diriam:
- Cadelão desvia o foco, olha pra vida e os defeitos dos outros pra disfarçar o cotidiano medíocre que o sufoca. Sua válvula de escape, os momentos de glória, se dão quando corre pro bar pra desfrutar a companhia sagrada desses chatos.
Nessa altura dos episódios, sou obrigado a concordar com vossas sábias palavras:
- Cadelão, você está no mesmo nível deles, ou seja, surfa na mesma merda.
Amigos, ontem o Beiço acendeu uma lanterna nessa escuridão. Ele disse:
- Como você me apresentou o Zé Franco Atirador, vou te apresentar o Zé Pinto Sonhador. Imagine um cara que lê as notícias e fofocas de crimes sexuais, de pedofilia, de estupros, com a mesma avidez de quem desfruta seu chocolate predileto. Um sujeito que sacia a fome sexual com tragédias de crianças e adolescentes estupradas, retalhadas e mortas. E que lê e se delicia com todos os comentários raivosos e indignados nas redes sociais, afirmando a necessidade da pena de morte, ou invocando a providência divina e seu castigo eterno implacável. E que ao mesmo tempo tem um tesão formidável e acelera as punhetas, viajando por cenários paradisíacos e ninfas incríveis de tirar o fôlego. Imagina, Cadelão, como seria o perfil da criatura no Tinder. No padrão, sua foto de perfil seria sem camisa exibindo um corpo sarado. E ele vai usar alguma estratégia para insinuar que tem um pau acima da média.
Beiço estava filosófico. Eu não considerei isso chato. Milagre. Ele prosseguiu:
- Imagine você no bar escutando por horas a conversa desses malucos. Só o suicídio nos liberta dessa gente. Vai por mim, Cadelão, é hora de pensar em como os outros te enxergam. De dentro é normal vermos em nós mesmos as mesmas coisas. Mas de fora, os outros percebem... Além de uma alma corrompida e fútil, eles sacam o envelhecimento, cada vez mais galopante, de nossa carcaça. Consola-te. Você sempre tem a opção de estar sozinho. Bukowski, por exemplo, não suportava as pessoas quando elas estavam por perto. Preferia mantê-las bem longe. Vai por ele. Vai por ti.

(B. B. Palermo)


terça-feira, 9 de abril de 2019

Falem de mim sem bajular



Você é o que contam sobre você. 
Não nas horas do puxa-saquismo, 
e sim algum tempo depois 
que estiver morto.



(B. B. Palermo)

sábado, 6 de abril de 2019

Pode deixar que eu resolvo


Uma canafístula de uns 80 anos. Ela reinava no pátio, enquanto esperava a morte, e vendavais ameaçavam jogar seus galhos pra cima de telhados de casas e prédios.
Estou de cuecas, fugindo do banho há uns três dias e me requebrando na sala pra não tropeçar nas garrafas vazias espalhadas pelo chão. Batem à porta. É uma gorda, a dona da pensão, acompanhada da sobrinha, uma garota com cabelos negros cacheados e olhos negros, mais curiosos do que tímidos.
A dona trovejou: "Sr. Palermo, que tal servir pra alguma coisa, além de atrasar o aluguel? O senhor não conhece um lenhador que corte aquela árvore, e recolha toda a lenha e galhos? A vizinhança está preocupada, e enche o meu saco nas reuniões de condomínio".
Prometi que consultaria meus amigos pra ver se conheciam alguém confiável.

A vida Dela é uma sucessão de penitências. Alguns anos depois de casada, perdeu o marido e herdou uma gastrite e o intestino preso. Por algum tempo fez dietas, que não passavam de conselhos de amigas nas salas de espera dos consultórios médicos e dos salões de beleza. Hoje, Ela carrega livros pra todo lado, e noto que trazem uma visão otimista da vida. 
A dona, os moradores dos prédios, o cadelão bêbado que se acha escritor e que atrasa o aluguel, todos, no fundo, são uns "pobres". Foi o que me veio.
Minha pobre gorda, tenho um sentimento ambíguo a teu respeito, apesar do olhar de escárnio que me diriges. Juro que aceito deitar ao teu lado e concentrar meu imaginário no que foste um dia, ou no que poderias ter sido, com tuas paixões e planos e crises de ansiedade e sentimento de inferioridade que herdaste dos pais.
Nos primeiros meses morando ali recebi um tratamento digno, graças ao currículo que inventei.  Porém, depois de tantos porres e musica alta tarde da noite e garrafas e copos espatifados contra as paredes minha reputação despencou no abismo.

No bar, comento com meus amigos a respeito do drama doméstico por causa da velha árvore. Cada um tem uma opinião diferente sobre como proceder para matar e esquartejar uma canafístula com mais de vinte metros de altura.  
Dr. Biza agarrou a conversa e não largou mais. Desde a infância trepa nas árvores mais altas, ágil como um macaquinho. Hoje em dia poda as árvores dos quintais da sua família, amigos e vizinhos, e inclusive as do pátio da casa da sogra. Puteou esses lenheiros picaretas, disse que eu devia era manter distância.
Seu cunhado emprestaria cordas e escada e motosserra e ele botaria abaixo a "peltophorum" por uma bagatela. (Para nosso espanto, Biza sabia inclusive o nome científico da árvore).
A grana seria aplicada num churrasco mais uns fardos de latões de cerveja.
Opa - esfreguei as mãos - isso parece bom.
Para deixá-lo mais curioso, insinuei detalhes da dona. Podia ser cheinha, mas tinha um rosto lindo, muito expressivo, deve ter sido uma bela ninfa quando jovem. E, pelo que recordo, tem tatuagens no dorso de um pé, nas duas panturrilhas, nos ombros e no dorso das mãos. E, emendei, imagino que a sobrinha também deve ser fissurada por tatuagens, embora não tenha notado, devem estar escondidas em lugares paradisíacos, e eu quero um dia visitar esses lugares só pra me derreter com sua beleza.
Empolgado, Biza prometeu na tarde do dia seguinte dar uma vasculhada na gigante anciã.
Duas da tarde do outro dia o Biza desceu do carro e marchou, como um ex-militar, em direção à frondosa árvore. Olhou para cima, desde o tronco até o último galho, e exclamou: "Nossa, como é grande!". Fez cálculos mentais e também com os dedos das mãos pra saber como passar a corda nos galhos mais altos para evitar que caíssem sobre telhados, como e onde posicionar a escada, e eu estava curioso, e tinha receio, como meu amigo vai retalhar essa gigantona? Pensei: "A missão Dele é bem mais complicada que a do açougueiro, que em poucas horas transforma o boi em peças de chuletas e picanhas e costelas e etcétera e tal".
No momento eu senti que havia algo de errado com o Doutor. Ele ajuda tanta gente com suas massagens e receitas de chás e palavras pra botar o sujeito pra cima, mas não sente remorso ao assassinar uma indefesa árvore octagenária.
Com uma cara nada convincente, Dr. Biza disse que daí a pouco teria umas consultas e que amanhã à tarde viria com as ferramentas. Perguntei se precisava de ajuda e ele respondeu: "Pode deixar que eu resolvo".
Ontem de tarde, enquanto eu estava rodeado de putas na casa da Janete, meu amigo foi executar a primeira parte da empreitada: cortar os galhos mais altos, usando cordas, para evitar que caíssem sobre os telhados. Liguei pra ele algumas vezes durante a operação, mas seu celular estava desligado.
Eis que à tardinha recebo uma mensagem: “Fui lá mas não deu certo".
 Ligo para ele. O celular está desligado. E permanece desligado durante a noite e todo dia seguinte.

A meteorologia diz que neste mês estaremos livres de vendavais e tormentas e ventanias. Pra não ter pesadelos em madrugadas de ventos fortes, pensei num plano B: mudar pra outra pensão, noutro bairro, sem árvores enormes e donas neuróticas e sobrinhas insinuantes pra torturar meus fantasmas. Mas estou sem grana e o aluguel está por vencer. Não suporto clichês, porém não há outro jeito, por enquanto vou ter que "empurrar com a barriga".

(B. B. Palermo)


segunda-feira, 1 de abril de 2019

O desamparado quer falar



Final de tarde, cruzo por um casal de garotos que transporta um gato numa gaiola.
O bicho mia de um jeito estranho, e isso me angustia.
Aos gemidos do gato, o menino e a menina, embaraçados, não sabem o que fazer, enquanto as pessoas observam.
A garota, com uma voz que se apegou à infância, implora para que o gato se acalme.
A cena me leva a pensar no meu desamparo.
Também me sinto um felino que deixou de rosnar, livre, pelas florestas,
e hoje dá seus miados de torturado, acorrentado numa gaiola.
Meu desamparo se define como um sentimento de solidão misturado a uma tristeza quase silenciosa, como o zumbido no ouvido do ancião.
Constato que nenhuma companhia, pelo menos das pessoas que me rodeiam, aplacaria tal sentimento.
Até admiro essa garotada que anda em tribos, que se amparam uns nos outros, desempenham vários papéis,
parecendo sempre sintonizados, como se fossem irmãos mais velhos, pais, filhos, parentes, namorados.
Gostaria de ser assim.
Mas não me adaptaria.
Penso coisas fora do padrão.
Cada vez mais desconfio e tenho medo desses jovens que andam em bandos.
Sozinhos são umas bonecas.
Porém, na tribo se sentem autorizados a fazer merda, como incendiar índios e mendigos e andarilhos.
Outras coisas me desconcertam.
Estranho ouvir essa garotada com voz pré-adolescente falando de carros, preços e marcas,
de gêneros musicais e filmes e pseudo-teorias filosóficas e científicas,
com convicção e conhecimento a ponto de deixar orelhas vibrando.
Eles, inclusive, tudo sabem sobre o comportamento e preferências dos clientes.
O desamparado não consegue imaginar e aceitar bovinamente que a garotada vá se escorar no mesmo gosto e visão e convicção pro resto da vida.
Essa garotada, com sua rotina e discurso previsível,
se assemelha aos ratos de laboratório,
cobaias servindo a interesses maiores, que ainda bem que não sei dizer quais são.
Ouço esses jovens universitários, empolgados pelas mesas dos bares.
Muitos são advogados ou engenheiros ou veterinários.
O que têm em comum é que  espalham faceiramente todo o seu saber.
As leis que regem os contratos de casamento, regime de união e separação de bens, obrigações e valores de pensões alimentícias, etc.
Papagaios adoram atropelar e ultrapassar verbalmente os outros nas mesas dos bares.
 Esses bandos, em tese, apenas em tese, conhecem as dores de amores que perpassam as relações afetivas.
É possível um sujeito transcender, ir além de ter uma casa, um carro, uma família, um discurso padronizado,
e questionar a linearidade e previsibilidade disso tudo?
Deve haver uma salvação.
O engenheiro pode ser também vocalista de uma banda, pintar quadros ou escrever poemas, mesmo que sejam ruinzinhos.
Pode ser voluntário num projeto social do bairro, ou cantar no coral da igreja ou ser ativista pela causa dos animais.
Acho que às vezes precisamos clicar na opção "mute", dar um tempo e ter distanciamento das novelas e big brothers,
e captar alguns momentos mágicos que poderão acordar nossa vida.
Precisamos transcender a teoria, ir pra rua, sentir a dor do gato,
e também as vozes agudas ou graves, infantis ou adultas, das pessoas e bichos que nos rodeiam.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 25 de março de 2019

O uso gramatical e sexual da língua



Duas da manhã de um sábado longo e chuvoso e frio de final de março. Eu chegava em casa do bar e da sinuca e vi estacionado por ali um Ford 1986, um carro pesadão, símbolo de status há uns vinte e poucos anos. Era o carro do namorado ou marido ou amante da vizinha e eu simpatizei com a atitude de o cara pousar com ela, depois de algumas semanas afastado.
O gesto romântico me fez pensar na diferença entre os verbos "pousar" e "posar". Baixei o dicionário Aurelião da estante e estabeleci uma triste ponte entre o uso da língua (gramatical, diga-se) e nosso apetite sexual. É que esses dias o Beiço comentou, num tom de sinceridade triste, que ia ficar com uma garota. Mas desistiu. Ela pediu pelo WattsApp se poderia passar a noite com ele no seu apartamento, isto é, "posar". Antes de responder a mensagem o Beiço refletiu sobre o uso que a garota fez do verbo "posar" e concluiu que ela queria passar a noite ao seu lado fazendo pose.
Beiço imaginou a garota com aquela lingerie especial, numa noite especial, diante de um cara especial, desfilando até encher seus olhos.
- Visualize a cena, Cadelão: eu sentado na cama e pousando meu olhar nas curvas da garota, naquelas carnes e estrias e sobras e faltas e tals... e, claro, não esqueça do seguinte detalhe, quando estamos sob o efeito do álcool a nossa visão é de fotoshop, o que poderia ser horroroso torna-se divino.
Fiquei pensando... Como pode o uso equivocado de um verbo, numa simples mensagem pelas redes sociais, transformar o Beiço num broxa dos bem melancólicos?
Meu amigo queria muito fazer sexo, mas depois repousar, isto é, ter tempo para dormir, pousar. Quem não gostaria, depois de uma viagem cansativa, ter um ótimo repouso numa pousada agradável?

 Voltando ao carro estacionado na rua, em frente de casa. Não havia passado mais de cinco minutos e o sujeito deu a partida no carro e nada. Deu a partida e... nada. Então eu refleti se devia ser solidário com aquele homem estranho que comeu minha vizinha e que não quis "posar" ao lado dela. Minha rua é plana, não tem subida e nem descida e o carro é pesadão. Me preparava para ir lá empurrar... mas, na quinta tentativa, quando a bateria parecia sem falta de ar e o motor andava meio afogado, o carro pegou. Então apanhei uma cerveja da geladeira, coloquei um blues pra tocar  e escrevi essas ****** que agora vocês leem.

(B. B. Palermo)

sábado, 23 de março de 2019

Final feliz



Nada de luz acesa nos velhos tempos.
O sexo não conhecia os holofotes.
Dos seios e bumbum e outras curvas,
nenhuma imagem técnica, 
nenhum arquivo ou pen drive,
pra levar pra casa.
O imaginário  sempre atento
em busca do alimento.
Tudo, ou quase tudo, girava
em torno do orgasmo,
ansioso,
absurdamente precoce.
O silêncio e o pulso acelerado e
o abraço e a vontade de ir ao banheiro
e as perguntas feitas para dentro:
como eu me saí nessa porra?
Será que ela gostou?
Estréia vencida,
embora a sensação
de que o empate foi derrota.
Naquele tempo até que era bom.
Ao menos rolava um escurinho no cinema.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 20 de março de 2019

Um dente de ouro




O Cara! recebeu umas visitas ilustres e a tarde ia pelo meio. Descendente de italianos, gosta de agradar, servindo aos amigos uma mesa farta. Então ele foi à padaria e comprou coxinhas, pasteizinhos, risoles, croquetes, etc., etc.
Duas garotas, a caixa e a empacotadora, sorriram e ele sorriu e sacou que o momento merecia um brinde e então apanhou três balas de um estojo, que parecia uma grande taça de plástico próxima à caixa registradora, e ofereceu uma a cada garota.
Assim que se viu na rua, levou sua bala à boca. Tinha sabor de torta de limão. Uma delícia. Não era muito dura, mas grudaria nos dentes se mordesse em vez de chupar. É por isso que eu sempre repito: desfrute o doce, sinta o seu sabor, se você mastigar sem prestar atenção ele logo vai sumir sem ser apreciado.
Ainda bem que o Cara! não mordeu aquela bala com voracidade, porque daí a pouco notou algo estranho, metálico, roçando e tilintando em seus dentes.
Ficou espantado. Apanhou aquela massa contendo em seu interior um objeto duro e indignou-se... Era um dente!
Deu uma cusparada contra o muro, enrolou aquele dente na casca da bala, verificando sua marca.
Estava a uns cinquenta metros da padaria. Furioso, retornou. As atendentes, as pessoas na fila, todos precisavam saber do fato gravíssimo. Como um dente foi parar no meio de uma simples bala?
Uma garota que estava na fila ficou admirada. "Nossa, parece que ele é de ouro!".
O Cara! pediu outra bala de brinde, disse que cogitava processar o fabricante. Tinha um amigo advogado, o Silveirinha, especialista em enfiar no rabo dessas empresas irresponsáveis volumosas indenizações por danos morais.
Para distensionar um pouco o ambiente, disse à empacotadora, jovem e bonita e simpática, que aquilo era nojento.
A garota sorriu amarelado e confirmou. "Sim, isso é muito nojento".

Tomou o rumo de casa chupando cuidadosamente a bala que agora tomava o céu de sua boca. Tentou não pensar no sabor, pra não ter vontade de vomitar. Assim que dobrou a esquina, passou a língua na parte debaixo e do lado esquerdo da boca e notou que havia um buraco estranho.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 18 de março de 2019

Embarquei nesse destino




O feitiço do teu olhar
e o olho grande do teu ego
te fizeram crer que o mundo
se curva ao teu brilho.

Juntos, perdemos o sono,
perdemos o senso,
nos devoramos.
Juntos, alimentamos nossas olheiras,
mas ocultamos dos outros.

Não devo me lamentar,
quis embarcar nesse destino.

Juntos, não temos certeza
da direção que a bússola aponta,
da largura e fundura do oceano
que vamos atravessar.
Mas não contamos pra ninguém.

Nada é impossível,
mas é difícil navegar nessa neblina,
não ter certeza se vai ter porto,
ou a que outro lugar vamos chegar.

(B. B. Palermo)

sexta-feira, 8 de março de 2019

Faltou café



Ontem eu caminhava pela calçada de um bairro de minha cidade e me deparei com um solitário velhinho, com cara de transtornado. Falava alto e, mesmo que estivesse a poucos metros de distância, não me notou, continuou falando.
O final do dia, além de abafado, está meio estranho, pensei.
Quando era criança, cenas como essa me impressionavam. Mas quem liga pra isso hoje em dia?
Algumas vezes, ao retornar pra casa do bar, embriagado, eu também falo sozinho. Porém, tomo o cuidado de o fazer um pouco tarde da noite, quando a comunidade está em sono alto, só assim não me intimido.
Se é noite de luar ou o céu está estrelado, converso animadamente com as estrelas e a via láctea, algumas das representantes de Deus no universo.
Ao servir o exército, numa cidade que ficava a uns setecentos quilômetros de onde eu morava, trocava cartas com uma garota adolescente, uma "quase" namorada. Depois de ser colocada no correio, a carta demorava uma semana pra chegar ao seu destino. Isso quer dizer que recebia a resposta da garota não menos do que duas semanas depois.
Poderia ter renunciado ao serviço militar, mas disse ao comandante, na entrevista derradeira, que queria permanecer. O que fiz aos dezoito anos eu faço até hoje: gosto de sofrer, gosto de sentir saudade, morando longe das pessoas mais próximas. 
Quanto a isso, os psicanalistas, freudianos ou lacanianos, têm o conceito na ponta da língua pra "classificar" meu tipo de neurose. Fodam-se todos eles.
Escrevia muitas cartas. Não sei como as garotas suportavam páginas e páginas daquelas "viagens". Talvez esse gosto pela escrita me salve (ou liberte?) de caminhar pelas ruas falando sozinho.
Hoje, Ao recordar minha juventude, até acho engraçado. Tinha aspirações literárias. Sonhava me imortalizar como poeta. E não fazia ideia de que todo esse sonho iria pro ralo, bastava me apaixonar por alguma garota. Foram várias paixões. O poeta amou e deixou a arte em segundo plano.
Juvenil, não tinha qualquer maturidade e noção de que poderia "reencarnar" almas altamente criativas de tempos passados, que me presenteariam com histórias imortalizadoras. Quando a inspiração surgia, meu espírito apaixonado se desviava dos caminhos criativos, os insights. E, com certeza, não tive um mínimo de "café" para compreender e decifrar essas histórias e colocá-las no papel.
É por essas e outras que, ao observar essa gurizada por aí, não sinto pena ou lamento tamanha ingenuidade. Ao contrário, me coloco no lugar deles. São o que eu fui um dia.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 7 de março de 2019

Pinheirinho de Natal


Parecia a rainha da boate.
Desfilava tendo nos braços pulseiras de várias cores,
que representavam os drinques que "bebera" com os clientes.
Vermelho, significava champanhe;
azul, uísque com energético;
amarelo, cerveja.
Uma paquera aqui, um strip-tease ali.
Parecia uma primeira dama com suas jóias chiquérrimas.
Enfeitada com aquelas "jóias", a garota me fazia lembrar
do pinheirinho de Natal de minha infância,
tomado de penduricalhos.          

(B. B. Palermo)

Poetinhas, contenham-se!

  Não caminhava sozinho, estava rodeado de uma legião de capetas, rindo, zombando. Vestiam branco e jogavam pro alto seus cantos vindo...