quarta-feira, 29 de março de 2017

Conto de dezembro (final) - Paulo Mendes Campos


Desci a escada correndo e entrei na sala de visitas, onde deviam estar os presentes. Nada havia que me lembrasse o banditismo sobre os sapatos. Aí encontrei apenas um jacaré verde, com quatro rodas, que abria a bocarra vermelha quando puxado por um cordão; uma prata novinha de dois mil réis; um caderno com lapiseira; um par de meias de algodão; nozes, castanhas, uma caixinha de passas americanas, duas maçãs embrulhadas em papel de seda. Meti a prata no bolso, espalhei o resto com um chute e corri de novo a meu quarto para buscar o bodoque.
Na rua, já encontrei alguns dos meus companheiros uniformizados de bandidos. De puro pudor, não aceitei emprestado o revólver que o Zeca me ofereceu. Quando até o Duduca apareceu de chapéu de couro e cartucheira, meu despeito foi tanto que dei início ali mesmo aos trabalhos do dia: parti com uma bodocada as vidraças fronteiras da casa de Dona Donana. Nem eu mesmo esperava meu gesto e tivemos de correr para a copa da mangueira.
Assisti, como magoado e desdenhoso espectador, às provações a que se submeteram os componentes da quadrilha: apagar um fósforo com a mão, comer pimenta-malagueta, riscar o pulso com caco de vidro até correr sangue, levar picada de formiga, receber dois tapas na cara sem reclamar. Presenciei tudo roído de inveja.
Desceram da mangueira e saíram em expedição, eu os seguindo a certa distância, com o ar de quem não quer nada, embora não me impedissem de reunir-me ao bando, mesmo sem vestimenta de vaqueiro fora-da-lei. Bandido marginal, franco-atirador, ia eu tomando iniciativas próprias, fazendo o bando correr da repressão quando eles menos esperavam. Minhas pedras partiram vidraças, telhas, feriram galinhas, gatos, cachorros. Quando o Professor Fulgêncio passou na direção da igreja, vimos que levantou a bengala de longe, mal deu com a nossa turma. Esperei que chegasse bem perto, a uma proximidade jamais ousada antes, e proferi o grito fatal: Jaburu! Despencou-se em cima de nós, bigodes frementes, acertando uma bengalada nas pernas do Alfeu. Depois conseguiu agarrar Duduca, que, esperneando como um demônio, pretendia arrancar-lhe os bigodes. Voltamos ameaçadores, mas cautelosos, ordenando ao professor que largasse o menino. Como vociferasse que não o largaria coisa nenhuma, e tentasse dar uma palmada em Duduca, carimbei as pernas do velho com uma bodocada à queima-roupa. Com um grito de dor e ódio, Jaburu soltou o Duduca.
Damos a volta ao quarteirão, pulamos o muro e nos escondemos na chácara de seu Antenor, que nos odiava ainda mais que o professor Jaburu. Ainda há pouco tempo tinha pegado a turma toda no alto duma jabuticabeira, imobilizando-nos lá em cima com o cano da espingarda (tiro de sal ou de chumbo, a dúvida nos dividia). Quando descêramos a qualquer risco, ele tinha conseguido agarrar o Zeca, mantendo-o preso no porão escuro durante a tarde inteira. Juramos vingança, é claro.
Àquela hora da ardente manhã de dezembro, a chácara tinha a tranquilidade madura do paraíso reencontrado. Comemos de todos os frutos proibidos. Carlão tinha uma pontaria mágica. Quando uma fruta repontava alta demais, permitia que cada um de nós jogasse três pedras escolhidas, mão livre ou bodoque. Sentava-se no chão, songamonga, e esperava. Se a fruta continuasse no galho, erguia-se, magro, torto, recurvo, mocorongo, dava uma corridinha desengonçada, o braço traçava um semicírculo sem elegância, a pedra entrava em trajetória sem firmeza, como se fosse lançada por mão de menina: pois essa pedra chocha ia infalivelmente partir o cabinho, e a fruta descia até as mãos de Carlão; jamais deixou manga ou caju se esborrachar no chão.
Vagando pela chácara, encontramos com alegria, no galho mais baixo de uma pitangueira, o filho de seu Antenor. Nôzinho abriu para nós uns olhos arregalados. Lula o puxou pela perna até o chão e ele quis gritar, mas não pôde, porque a palma da mão de Portuga o amordaçou com violência. Quando a gente se achava em maioria não batia em ninguém: era a lei dos bandidos. Mas a lei não impedia que tirássemos a calça de Nôzinho e o arrastasse até o tanque dos patos, onde o lançamos espetacularmente depois de três galeios. Já estávamos transpondo o muro com uma agilidade de anjos quando ouvimos os tiros da espingarda de seu Antenor. Sal ou chumbo?
Na rua, depois de mexer com Bigodinho de Arame (só para ouvir em resposta os incomensuráveis palavrões do bêbado), resolvemos ir nadar na Lagoinha. Duduca e Alfeu foram obrigados a voltar, pois não sabiam pegar cavalo no pasto e galopar em pêlo.
Quando me aproximei de casa, pouco antes da hora do almoço, vi o portão cheio de gente. Fiz meia volta, dobrei a esquina, pulei o muro e subi na jaqueira do vizinho, onde se podia ver parte da reunião sem ser visto. Distingui seu Antenor, o Professor Jaburu, Dona Donana, as irmãs Viegas, a mãe de Duduca, o italiano Sapateiro, seu Afonso Alfaiate, e uma coorte de meninos curiosos. Agitando o guarda-chuva/guarda-sol na frente de todos, vovó dizia:
- Vocês não tem respeito pelo dia de Natal, gente?! Vocês não sabem, seus ignorantes, que o Menino Jesus roubou frutas, quebrou vidraças, fez o diabo?! E tem mais! Meu neto, fiquem vocês sabendo, é um anjo! Hoje é o dia dos inocentes e quem mandou degolar os inocentes foi Herodes! E chega, viu! Arre!

Dando as costas ao grupo estupefato, ela entrou em casa. Lá de cima, pela primeira vez, vi na cara amarrada de vovó um mal disfarçado sorriso.

(Do livro Cisne de feltro - crônicas autobiográficas. Civilização Brasileira)

terça-feira, 28 de março de 2017

Muito mais não querer


Não quero ter a pressa do motoboy.
Não quero suportar a raiva ao saber da traição.
Não quero a lucidez do doente terminal na véspera da revelação.
Não quero estar no lugar da pomba no instante do pulo do gato.
Não quero ser pombo nem gato. Nem porco, ovelha ou galinha.
Respeito os bichos porque não sou bicho.
Não quero ter a resignação do trabalhador.
Não quero ter a certeza do torcedor.
Não quero pensar na morte.
"Não é que eu tenha medo de morrer.
Só não quero estar lá quando isso acontecer" (Woody Allen)

(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)


domingo, 26 de março de 2017

Conto de dezembro - Paulo Mendes Campos


Às cinco horas estávamos todos acomodados na mangueira do quintal do Fausto, menos Duduca, que, não podendo subir sozinho, ficou embaixo, esperando uma ideia.  Duduca ainda não tinha seis anos, e estávamos exatamente resolvendo se ele poderia fazer parte do grupo. Decidimos não: ele era uma criança. Chorando e implorando, Duduca começou a prometer que seria um bom bandido. Duros, não voltamos atrás. Com uma velocidade que nos surpreendeu, começou a catar pedras no chão e a demonstrar que era um bandido sincero e de boa pontaria. Erguendo-se e abrindo um claro na ramagem, Lula ameaçou esborrachar-lhe na cabeça uma portentosa manga-rosa. Duduca, parando de atirar, sorriu mais lindo que o Menino Jesus. Voltamos a conversar, quando um grito dele nos anunciou, já  a uma certa distância, que ia contar tudo para Dona Sofia, mãe de Fausto. A imensa manga-rosa pegou-lhe bem no meio das costas, provocando um gemido fundo e revoltado.
- Vem, sobe, seu porcariazinho.
Portuga estendeu-lhe um pé, pelo qual Duduca se elevou ao primeiro galho da árvore, daí grimpando célere para o mais alto da copa, empoleirando-se eufórico, como se nada tivesse acontecido, sobre um ramo que aguentaria pouco mais que o peso de um passarinho.
Se nossas intenções eram confusas, nosso plano era claro. Naquele ano pediríamos todos coisas iguais a Papai Noel: revólveres, cartucheiras, chapéus de couro, esporas, botas, camisas xadrez. Íamos formar a nossa quadrilha. Papai Noel é o pai da gente, seus bobos, resmungou Duduca lá em cima, com desprezo. Foi um alívio. Se ele acreditasse em Papai Noel, tudo poderia sair errado. Se os nossos pais soubessem que o bando todo estava pedindo equipamento de guerra, não duvidariam de que alguma coisa grave iria acontecer no quarteirão.
Descemos da mangueira quando já era escuro e, entre o tinir de panelas de alumínio, as primeiras vozes maternas chamavam os filhos para jantar. Essas vozes chamavam assim todas as noites, uma, duas, três, dez, vinte vezes, e nunca as mães sabiam onde estávamos, mas sempre as ouvíamos, mesmo a distâncias incríveis, como se ondas nos ligassem a todos os pontos do bairro na noite embalsamada. Éramos oito pestes sadias: Lula, Zeca, Fausto, Alfeu, Portuga, Carlão, eu e Duduca. Naquela noite oito cartas foram elaboradas, passadas a limpo e enviadas ao céu.
Na véspera de natal, pouco antes da ceia, vovó chegou da fazenda. Chegou como sempre chegava, sem avisar, como um pé-de-vento. Vovó me fascinava, mas eu tinha vergonha de enquadrá-la como minha avó, pois não se parecia nada com qualquer outra das avós que conhecia, pessoalmente, de vista ou de ouvir contar. Nunca me trouxe balas, nem me deu dinheiro, nem passou a mão pela minha cabeça. Era magra e de preto como o guarda-chuva/guarda-sol que transportava como se fosse um porrete.
As avós dos outros falavam manso e pouco; a minha falava alto, em torrente. As avós dos outros não diziam palavrões; a minha, se fosse preciso, chamava as coisas pelos nomes mais feios. Mamãe me disse que vovó não tinha papas na língua. Sem saber o que era isso e sem coragem de perguntar, achei que vovó sofria de um defeito grave, o mesmo defeito de que eu e meus companheiros sofríamos: nós não tínhamos papas na língua, possivelmente uns freiozinhos que prendem a língua das pessoas que vão dizer um palavrão. Além disso, as avós dos outros não brigavam na rua; a minha brigava. E, principalmente, as avós dos outros não davam tiros; a minha dava. Nunca vi, mas tinha ouvido as histórias em que vovó manejava garruchas, espingardas e o famoso guarda-chuva. Diziam que era muito politiqueira e não levava desaforo pra casa. Diziam ainda que dava meia boiada para entrar na briga e a outra metade para não sair dela. Até num vigário ela descera o famoso guarda-sol. No final de tudo, sobrecarregando minha confusão, costumava dizer, com um sorriso inteligente, que vovó era uma santa, que mulher boa no fundo estava ali, que criatura mais honrada e justiceira estava para nascer. Quando, para meu espanto, ela partia para a missa todas as manhãs, eu tinha a impressão, pela cara amarrada e pela pressa do passo, que ia à igreja brigar com Deus. Ou pelo menos com o representante de Deus. 
A presença de vovó significava que naquele Natal ninguém falaria nada: ela falaria tudo. E foi isso mesmo, ela falou sem parar, de pastos, partos, ladroagens, bandalheiras, rixas, prefeitos ordinários, vereadores lambões, mulheres sem vergonha na cara, homens que não aguentavam uma gata pelo rabo. Às vezes, tomando fôlego, fazia uma pergunta qualquer a meu pai ou a um dos meus tios, mas, antes de receber a resposta, com o retorno da respiração, prosseguia na descompostura universal. Eu já morria de fome e desespero, quando, esgotada, vovó ordenou que servissem a ceia e nos mandou rezar em voz alta nove ave-marias. Exagerada em tudo. Dormi no tapete pouco depois de comer, mas amanheci em minha cama.

(Do livro Cisne de feltro - crônicas autobiográficas. Ed. Civilização Brasileira)

sábado, 25 de março de 2017

Uma catraca em meu caminho


Houve um tempo em que atropelava, como se fosse ambulância no trânsito.
Driblava ordens, espantava de letra caras feias.
As barreiras eram leves, nada de pedras no caminho, como no poema de Drummond.
Naquele tempo competições eram brinquedos, a vida não deprimia se não passasse de ano.
Lembro. Sim.
O dia era mais claro, o frio mais frio, o quente mais quente. Sabores deixavam uma saudade de lamber os dedos.
O milagre, como tudo que se comia e bebia, era mais natural.
Houve um tempo em que a terra era fixa, o sol era um amigo obediente que não perdia a hora, e pouco se falava de câncer e tal...
Um tempo em que pedia com inocência, sem pagar dízimo e culpas, e, se não recebia, a vida continuava, sem magoar a esta pessoa nem a Deus.
Hoje sinto-me gordo de informações e verdadezinhas.
Ando com  a paciência intoxicada pelo olhar e opinião dos outros.

Se não forçar o olho, não passarei de mais uma catraca, mente e corpo controlados.

Ilustrações do site http://rebloggy.com/post/amor-desenho-arte-carinho-liberdade-tracando-catraca-amor-livre/88045577805


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

sexta-feira, 24 de março de 2017

FRIO - João Antônio


O menino tinha só dez anos. 
Quase meia hora andando. No começo pensou num bonde. Mas lembrou-se do embrulhinho branco e benfeito que trazia, afastou a ideia como se estivesse fazendo uma coisa errada. (Nos bondes, àquela hora da noite, poderiam roubá-lo, sem que percebesse; e depois?… Que é que diria a Paraná?) Andando. Paraná mandara-lhe não ficar observando as vitrinas, os prédios, as coisas. Como fazia nos dias comuns. Ia firme e esforçando-se para não pensar em nada, nem olhar muito para nada. 
— Olho vivo — como dizia Paraná. 
Devagar, muita atenção nos autos, na travessia das ruas. Ele ia pelas beiradas. Quando em quando, assomava um guarda nas esquinas. O seu coraçãozinho se apertava. Na estação da Sorocabana perguntou as horas a uma mulher. Sempre ficam mulheres vagabundeando por ali, à noite. Pelo jardim, pelos escuros da Alameda Cleveland. Ela lhe deu, ele seguiu. Ignorava a exatidão de seus cálculos, mas provavelmente faltava mais ou menos uma hora para chegar. Os bondes passavam.

*** 
Paraná havia chegado com afobação. Nem tirou o chapéu, nem nada. O menino dormia. Chegou-se: — Nêgo… nêgo! 
O menino não queria. Paraná puxou a manta. — Paraná! Que foi? — acordou chateado. 
O homem suado na testa. Barbado. Só explicou que precisava dele. Levar um embrulho às Perdizes. Muito importante. O menino se arrumou fora do colchão furado, meteu o tênis. 
— Embrulho? Pra quem? 
Paraná fez uma coisa que nunca fizera e que ele não entendeu bem. Fê-lo ficar de pé, pousou-lhe as mãos nos ombrinhos. Sentado na beira da cama. Disse bem devagar. 
Ele tinha que ir às Perdizes, encontrar-se lá com Paraná. E não podia perder o embrulhinho. Perguntou-lhe se conhecia uma avenida grande que desce a igreja das Perdizes. Sim. Ele deveria descê-la, três quarteirões. Sim. Tomar cuidado com os guardas. Sim. Lá encontraria um ferro-velho. Sim. Pularia o muro. 
— Lembra? Aquela viração do Diogo? Pois. Mudou de dono. 
Pulasse o muro e esperasse Paraná aparecer. Havia cama, escondida no barracãozinho de zinco. Se não viesse, ele que dormisse. E acordasse cedo para os donos do ferro-velho não perceberem que a gente dormira lá. Se Paraná não aparecesse deveria ir para o Largo da Barra Funda, lá na casa de Nora. Logo pela manhã.
 — O embrulho é sagrado, tá ouvindo? 
Paraná apalpou-o, examinou-lhe a roupinha imunda de graxa de sapato. Tirou-lhe o tênis, cortou dois pedaços de jornal e enfiou-os dentro. Embrulhou uma manta verde. Meteu a mão no bolso, deu-lhe duas de dez. Os olhos brilharam: 
— Se vira com elas. Olha, se eu não baixar lá… 
— Ué, por quê? — o menino interrompeu.

— Nada. O embrulho é nosso, se guenta. Se manca.
Que o abrisse, mas escondesse. Nem Nora poderia mexer. E que se virasse lá na Pompeia, engraxando. O menino teve um estremecimento. Será que os guardas iriam agarrar Paraná? Ouvira contar que a cana é lugar ruim, escuro, onde se apanha muito. Contudo, Paraná era muito vivo, saía-se bem de qualquer galho. Sossegou. Depois, resolveu perguntar se ele apareceria mesmo. 
Paraná fez não ouvir. Falou do muro do ferro-velho. Era alto e difícil. Tomasse cuidado. Abriu a porta imunda: 
— Se arranca. Se vira de acordo, tá? Olho vivo no embrulho. 
E depois, lembrando-se: 
— Mora, tá frio. 
Passou-lhe o embrulho da manta. O menino sentiu as notas no bolso do casacão. Coçou o pixaim: 
— Puxa, como é de noite. Tchau. 
Paraná respondeu com a mão no ar. O menino meteu o embrulhinho branco entre o suspensório e a camisa. Só ficou o embrulho da manta na mão. 
Andou. 

*** 
Pequeno, feio, preto, magrelo. Mas Paraná havia-lhe mostrado todas as virações de um moleque. Por isso ele o adorava. Pena que não saísse da sinuca e da casa daquela Nora, lá na Barra Funda. Tirante o quê, Paraná era branco, ensinara-lhe engraxar, tomar conta de carro, lavar carro, se virar vendendo canudo e coisas dentro da cesta de taquara. E até ver horas. O que ele não entendia eram aqueles relógios que ficam nas estações e nas igrejas — têm números diferentes, atrapalhados. Como os outros, homens e mulheres, podem ver as horas naquelas porcarias? 
Paraná era cobra lá no fim da Rua João Teodoro, no porão onde os dois moravam. Dono da briga. Quando ganhava muito dinheiro se embriagava. Não era bebedeira chata, não. Como a do seu Rubião ou a do Aníbal alfaiate. 
— Nêgo, hoje você não engraxa. 
Compravam pizza e ficavam os dois. Paraná bebia muita cerveja e falava, falava. No quarto. Falava. O menino se ajeitava no caixãozinho de sabão e gostava de ouvir. Coisas saíam da boca do homem: perdi tanto, ganhei, eu saí de casa moleque, briguei, perdi tanto, meu pai era assim, eu tinha um irmão, bote fé, hoje na sinuca eu sou um cobra. Horas, horas. O menino ouvia, depois tirava a roupa de Paraná. Cada um na sua cama. Luz acesa. Um falava, outro ouvia. Já tarde, com muita cerveja na cabeça, é que Paraná se alterava: 
— Se algum te põe a mão… se abre! Qu’eu ajusto ele. 
Paraná às vezes mostrava mesmo a tipos bestas o que era a vida. 
O menino sabia que Paraná topava o jeito dele. E nunca lhe havia tirado dinheiro. 
Só por último é que ele passava os dias fora, girando. Era aquela tal Nora e era a sinuca. A sinuca, então… Paraná entrava pelas noites, varava madrugada, em volta da mesa. Voltava quebrado, voltava que voltava verde, se estirava na cama, dormia quase um dia, e não queria que o menino o acordasse.
Só por último é que andava com fulanos bem vestidos, pastas bonitas debaixo do braço. Mãos finas, anéis, sapatos brilhando. Provavelmente seriam sujeitos importantes, cobras de outros cantos. O menino nunca se metera a perguntar quem fossem, porque davam-lhe grojas1 muito grandes, à toa, à toa. Era só levar um recado, buscar um maço de cigarros… Os homens escorregavam uma de cinco, uma de dez. Uma sopa. Ademais, Paraná não gostava de curioso. Mas eram diferentes de Paraná, e o menino não os topava muito...


Frio, por João Antonio.
Projeto hipermidiático sobre conto "Frio" de João Antonio.
Participou de eventos e recebeu prêmios em diversas categorias de design digital. 

https://www.behance.net/gallery/4517059/Frio-por-Joao-Antonio




quinta-feira, 23 de março de 2017

Os músicos - Rubem Fonseca


Faz calor. Os grandes espelhos da parede vieram da Europa no fundo do porão; cristal puro. “Tua avó fez risinhos e boquinhas, namorou dentro desse espelho”. Respondo: “minha avó nunca viu esse espelho, ela veio noutro porão”. Nesse instante chegam os músicos, três: piano, violino, bateria; o mais moço, o pianista tem quarenta anos, mas é também o mais triste, um rosto de quem vai perder as últimas esperanças, ainda tem um restinho mas sabe que vai perdê-las num dia de calor tocando os Contos dos Bosques de Viena, enquanto lá embaixo as pessoas comem bebem suam sem ao menos por um instante levantar os olhos para o balcão onde ele trabalha com os outros dois: Stein, no violino – cinquenta e seis anos, meio século atrás: espancado com uma vara fina, trancado no banheiro, privado de comida “nem que eu morra você vai ser um grande concertista” e quando Sara, sua mãe, morreu, ele tocou Strauss no restaurante com o coração cheio de alegria – Elpídio na bateria, cinquenta anos, mulato, coloca um lenço no pescoço para proteger o colarinho, o gerente não gosta, mas ele não pode mudar de camisa todos os dias, tem oito filhos, se fosse rico - “fazia filho na mulher dos outros, mas sou pobre e faço na minha mesmo” - e todos começam, não exatamente ao mesmo tempo, a tocar a valsa da Viúva Alegre. Na mesa ao lado está o sujeito que é casado com a Miss Brasil. Todas as mesas estão ocupadas. Os garçons passam apressados carregando pratos e travessas. No ar, um grande burburinho.

Rubem Fonseca
Lúcia McCartney, 1967

quarta-feira, 22 de março de 2017

Notas de um Cadelão


Enquanto para alguns é terrível, para outros é incrível tornar-se coroa. É que muitos ficamos babando quando somos atendidos com simpatia pela Caixa do banco. Flutuamos radiantes, pois nos disseram "meu amor" e "querido". Ah, e o grand finale... para compensar a conta estourada, ganhamos de brinde uma piscadinha!

(Diário de B. B. Palermo)


terça-feira, 14 de março de 2017

segunda-feira, 13 de março de 2017

Notas de um Cadelão


Perto de onde moro abriu uma loja de roupas de moda íntima. À noite sua vitrine luminosa chama a atenção dos que por ali passam. À tardinha, dezenas de garotas diminuem o passo para contemplar e desejar sutiãs e calcinhas. Do outro lado do espelho há um mundo que desperta o imaginário. Do bar mais próximo observo e me convenço de que isso revela muito de nossa cultura. Li esses dias que a ciência médica investe cinco vezes mais em pesquisas de terapias de embelezamento e de deficiências eréteis do que em prevenção da doença de Alzheimer. Não importa com que cabeça chegaremos à velhice. O mais importante é o desempenho do corpo aqui e agora. Para a ciência médica a serviço do lucro, o que vale é os velhinhos terem muita disposição e uma puta ereção. Não faz mal se no dia seguinte não lembrarem com quem transaram.


(Diário de B. B. Palermo)

Dolorosa interrogação - Mario Quintana



(Caderno H)

sábado, 11 de março de 2017

Somos amadores e carentes... de poesia


Meu poema não reivindica amores frustrados. Não humaniza estrelas e endeusa a lua cheia. O poema se engraçou com o novo bar repleto de chinelões mal-encarados, putas e carinhas drogados que se apavoram com o passado e se embebedam para suportar o amanhã.
O amor magoado proíbe que o poema sangre que a metáfora lateje e a febre goze. É uma temporada de tempo abafado, raiva a zero grau.
Mágoas de amor se engraçam no escândalo e submissão, no homicídio e suicídio raivosos. Só depois se tornam poemas.
Fazer poesia para se purificar de amores mal-amados é roubar o emprego do analista.
Mas Cadelão - diz uma Ninfa enluarada e esperta - o mundo está carente de poetas. Não critiques os enamorados, os que despertaram e vivem de paixões, e também os que gangrenam suas dores insuportáveis, não deboches por se dedicarem à poesia. Afinal, são tão poucos os sensíveis neste mundo frio e cruel.
Sim, garota esperta, você tem razão. Mario Quintana também o disse:
"Eu acho que todos deveriam fazer versos. Ainda que saiam maus, não tem importância. É preferível, para a alma humana, fazer maus versos do que fazer nenhum. O exercício da arte poética representaria, no caso, como que um esforço de auto-superação. É fato consabido que esse refinamento de estilo acaba trazendo necessariamente o refinamento da alma. Sim, todos devem fazer versos. Contanto que não venham mostrar-me" (Caderno H).


(Diário de B. B. Palermo)

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...