sábado, 5 de novembro de 2016

Harmada - João Gilberto Noll


Leitura desta semana.

A narrativa Harmada, publicada em 1993, está entre as mais importantes da literatura brasileira contemporânea. Ela mostra a vida de um ex-ator de sucesso que vaga sem rumo por um país inominado da América Latina, e anseia por chegar à capital, Harmada. O país, claro, é uma paródia do Brasil, sua sociedade e seus costumes. 

Para provar a si mesmo e a quem está lendo o seu estado de "além- liberdade”, o protagonista se esbalda em lama horrivelmente fétida e participa de orgias sexuais ao lado de outros atores. Após andar à deriva, passa a viver num asilo de mendigos. Lá encontra Cris, filha de alguém por quem tivera uma paixão fulgurante e fugaz. Com ela, sonha em retornar a Harmada, mas se vê retido por uma paralisia. Consola-o o projeto de montar um espetáculo de teatro. 

A história constitui uma nítida transmutação por que passou a obra de João Gilberto Noll. Há grandes diferenças, por exemplo, com A Fúria do Corpo (1981), em que ser social oprimido pelas forças coercitivas da sociedade contemporânea almeja uma liberdade total e plena. Já em Harmada o narrador, crendo-se livre dessas tais "pressões externas”, busca um não-sei-quê além da liberdade. Afora isso, e também ao contrário de suas narrativas predecessoras, em que os personagens vagam a esmo, aqui se parece divisar ao longe um norte, uma esperança ainda que utópica, representada por Harmada. 

A obra não se pauta por um movimento linear. Pelo contrário, os fios do enredo se emaranham e abdica-se do uso freqüente do ponto, imprimindo um ritmo mais intenso, quase alucinante, ao texto. Já se aproximou a escrita de Noll dos estados esquizofrênicos. Conforme analisa o jornalista e crítico José Castello, o protagonista se "afoga num pântano lingüístico: como entre os esquizofrênicos, seu espírito está fendido e os pensamentos o asfixiam. Harmada, a capital, vem ampará-lo nessa vagueação”. Outro fator peculiar à prosa de Noll está no fato de a narrativa ostentar elementos que lembram aos leitores visões cinematográficas no desenrolar das tramas, numa descrição vívida de sensações, cores, sentimentos e sons. 

João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre, em 1946. Em 1967, entrou para o curso de letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Dois anos depois, abandonou o curso e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou para o jornal Última Hora. Em 1970, publicou seu primeiro conto, Roda de Fogo, numa coletânea elaborada pelo escritor e poeta gaúcho Carlos José Appel. Mudou-se para São Paulo e começou a trabalhar como revisor. Em 1975, de volta ao Rio, começou a lecionar na Pontifícia Universidade Católica, no curso de comunicação social. 

Em 1980, um ano depois de concluir seu curso, publicou seu primeiro livro, O Cego e a Dançarina. Lançou ainda, entre outros, Hotel Atlântico (1989), O Quieto Animal da Esquina (1991), Berkeley em Bellagio (2002) e Lorde (2004). Obteve três prêmios Jabuti. Suas obras, muitas das quais adaptadas para o cinema e o teatro, foram traduzidas e estudadas nos Estados Unidos e na Inglaterra.


http://educarparacrescer.abril.com.br/leitura/harmada-403577.shtml

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Doutor, é hora de recomeçar


Não sei mais se sou desajeitado ou se as roupas encolheram. Meu esforço é hercúleo pra colocar o moletom. É como se fosse vestir os trapos de todo mundo. Sou pego de surpresa, como se fosse visita que não aguardava. Agora estou nu e a insegurança machuca as maças do rosto. Não consigo disfarçar. Sou criança inocente. Não sei se tenho amigos ou apenas conhecidos, Doutor. Eles cresceram muito enquanto fiquei pequeno. No final da festa eles são gigantes que se agacham pra me abraçar e beijar. Quando vou crescer, quando vou me conhecer, quando vou me encontrar?
As garotas que eu quis me olham indiferentes. Talvez seja hora de traçar novo rumo, Doutor. Sim. Hoje despertei e vi muito desejo no ar. Quando acordei havia uma certeza impregnando meu quarto: chega de passar de livro em livro como ave migratória. Basta de colocar nas mãos dos outros o meu destino. Basta de fazer check-in e mostrar o percurso diário de bar em bar. Se a inspiração me falta, vou me autoflagelar lavando a louça com a água a cem graus. Quando as mãos arderem voltarei à vida. Como um colecionador de borboletas vou correr atrás de alguma ideia. Mesmo que esta não passe de beija-flor que fica passando passando e logo desaparece pra se deleitar noutro jardim.


 (Diário de B. B. Palermo)

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Pergunte ao pó - John Fante


Descobri "Pergunte ao pó" lendo Charles Bukowski, o qual escreve o prefácio deste belo livro. A seguir frases tiradas de "Pergunte ao pó".


Aquelas garotas maravilhosas, tão feliz quando você agia como um cavalheiro, e tudo aquilo simplesmente para tocar nelas e carregar a memória para meu quarto, onde o pó se acumulava sobre minha máquina de escrever e Pedro, o camundongo, se sentava no seu buraco, os olhos negros me observando através daquele tempo de sonho e divagação.

Certo, uma prece: por motivos sentimentais. Deus Todo-Poderoso, lamento ser agora um ateu, mas o Senhor leu Nietzsche? Ah, que livro!

Quando voltei ao meu quarto, joguei-me na cama e chorei um choro sentido. Deixei que as lágrimas corressem de cada parte de mim, e quando não podia mais chorar, me senti bem de novo. Sentia-me verdadeiro e limpo.

Ficamos deitados um longo tempo e eu estava preocupado, com medo e sem paixão. Algo como uma flor cinzenta cresceu entre nós, um pensamento que tomou forma e falou do abismo que nos separava. Eu não sabia o que era. Senti que ela esperava.

O amor não era tudo. As mulheres não eram tudo. Um escritor precisa conservar suas energias.

Não conseguia falar mais. Ele havia arrancado meu coração. Porcaria! Todas aquelas nuanças, aquele diálogo soberbo, aquele lirismo brilhante – e chamar aquilo de porcaria. Melhor fechar os ouvidos e ir para algum lugar onde nenhuma palavra fosse pronunciada. Porcaria!

Fui até o final do corredor, até o patamar da escada de incêndio, e ali me soltei, chorando e incapaz de me conter, porque Deus era um canalha tão sujo, um pulha desprezível, é o que Ele era por fazer aquilo com aquela mulher. Desça dos céus, seu Deus, venha até que que vou socar seu rosto por toda a cidade de Los Angeles, seu moleque miserável e imperdoável.

Fiquei sentado com os dentes cerrados, olhando para um quarto como dez milhões de quartos da Califórnia, um pouco de madeira aqui, um pouco de pano ali, os móveis com teias de aranha no teto e poeira nos cantos, seu quarto e o quarto de todo mundo, Los Angeles, Long Beach, San Diego, algumas placas de gesso e estuque para manter o sol do lado de fora.

O mundo era pó e ao pó voltaria.

Tudo o que era bom em mim me emocionou naquele momento, tudo o que eu esperava do profundo e obscuro significado da minha existência. Aqui estava a placidez interminável e muda da natureza, indiferente à grande cidade; aqui estava o deserto abaixo dessas ruas, ao redor dessas ruas, esperando que a cidade morresse para cobri-la com a areia eterna uma vez mais.

Tornava-me um estranho dentro de mim, era como todas aquelas noites calmas e os altos eucaliptos, as estrelas do deserto, aquela terra e aquele céu, aquele nevoeiro lá fora, e eu viera para cá com nenhum propósito exceto o de ser um mero escritor, ganhar dinheiro, ser reconhecido e toda aquela baboseira. Ela era muito melhor do que eu, tã mais honesta que fiquei enojado de mim mesmo e não podia enfrentar seus olhos cálidos.

Não fiz perguntas. Tudo o que eu queria saber estava escrito em frases torturadas através da desolação do seu rosto.

Saí para uma caminhada pelas ruas. Meus Deus, aqui estava eu de novo, perambulando pela cidade. Olhei os rostos ao meu redor e sabia que o meu era como o deles. Rostos drenados de sangue, rostos tensos, preocupados, perdidos. Rostos como flores arrancadas de suas raízes e enfiadas num vaso bonito, as cores se esvaindo rapidamente. Eu tinha que sair daquela cidade.
Edição: Pergunte ao Pó, Editora José Olympio, 2015

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Doutor, para mudarmos nosso olhar precisamos ser crianças


O que acontece com a gente se parece com o que acontece com os outros, disse Bukowski. Eu acrescentaria, Doutor: para que tudo o que acontece ao redor deixe de ser imagem e repetição do mesmo, é necessário reaprender a olhar. Sábado de manhã caminhava numa avenida e cruzei por uma jovem garota negra com duas crianças, uma de uns sete anos e outra no colo da mãe, com uns três, quatro anos. A que estava no colo da mãe parecia ter um olhar triste, e ficou me encarando, e isso me chocou. Enquanto a mãe seguia em frente, a criança virou o pescoço para ficar mais tempo me observando. O que chamou sua atenção? Doutor, é estranho como uma cena corriqueira possa ter me impressionado. Minha alma neste dia não foi mais a mesma. Fiquei pensando, após aquela cena: a BELEZA (Deus?) não combina com coisas espalhafatosas, pirotécnicas. Agora necessito contar ao Senhor aquela vivência, pois creio que pouco adianta sentir algo belo, que me deixou triste, e não compartilhar com os outros. É por isso que escrevo. Quero apanhar e eternizar o que é passageiro. Aquele olhar tão cheio de mistério, talvez impossível de decifrar, sintetiza os olhares de todas as crianças, de qualquer cantinho do planeta. Fiquei pensando, Doutor, o que posso carregar para a eternidade, o que devo despir e deixar pelo caminho nesta vida breve? Terei uma alma? Sinto isso nas pessoas e coisas que me rodeiam aqui e agora. Sim, naquele olhar da criança eu vi sua alma! No seu olhar refletiu-se minha infância, de brinquedos, árvores, córregos, o canto dos pássaros, a música que sai da vida dos animais. Eu vivi aquele olhar! E esse olhar me fez pensar sobre o quanto sou arrogante, pretensioso, acorrentado a coisas fugazes. E o mais incrível é que, ao refletir sobre isso, me senti mais leve.
O Senhor pode pensar que exagero quando olho com tal intensidade ao meu redor. Mas não dizem que os olhos são o espelho da alma? Rubem Alves afirma que, “se os olhos forem bons, o mundo será belo. Se os olhos forem maus, o mundo será sinistro”. Complementaria dizendo que a demarcação entre paraíso e inferno começa de várias fraquezas humanas, e uma delas é a inveja. Inveja inveja inveja... e esta nasce de um jeito (torto?) de olhar. Não será uma das razões para o mundo andar tão mal? Para mim, a inveja e outros sentimentos chamados de “pecados capitais” ganham vida quando deixamos de ser crianças e entramos no mundo adulto. Época em que, também, distorcemos, envenenamos e engessamos nosso olhar.
(Diário de B. B. Palermo)


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Um sonho de simplicidade - Rubem Braga


Então, de repente, no meio dessa desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providências a tomar, para me fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou amigos no bar para dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?
Uma vez, entrando numa loja para comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.
A vida poderia ser mais simples. Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa gelada? Antes eu tomava água fresca da talha, e a água era boa. E quando precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.
Que restaurante ou boate me deu o prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio, subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados. E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
Seria possível deixar essa eterna inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?
Mas para instaurar uma vida mais simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas… Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo; tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.
Todo mundo, com certeza, tem de repente um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento! Tiramos um lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número… Para que tomar nota? Não precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão.
Março de 1953

terça-feira, 11 de outubro de 2016

As flores de plástico


Na sala de espera, as flores de plástico eternizam. Sem a ansiedade do corpo que aguarda exames e palpites. Apenas existem. Livres como toda matéria que, ao passar do tempo, resiste. Sem dores, desculpas e culpas. Sem noção de finito e infinito. Pena não saberem da perenidade da vida. É uma pena. Seriam sensíveis, pois perceberiam o quanto a vida madura é falível e a angústia é certa com a morte a espreitar.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador) 

Dicas para ter uma vida interessante


1 - Comprar equipamentos de ginástica, de massagens, estocar chás, remédios para aumentar a disposição diante de uma vida agitada. Inscrever-se em academias, comprar pacotes de TV, de filmes, de esportes. Matricular-se em cursinhos de línguas, comprar pacotes de viagens até estourar o cartão de crédito e o tempo livre.
2 - Estressar-se com os que pensam diferente de você, que seguem outra ideologia ou que simplesmente não ligam para ideologias. Implicar com tudo o que nos rodeia, por sugarem nossas forças através desse bombardeio de informações.
3 - Pensar durante todo o tempo a respeito das dificuldades que o teu amor tem em ser igualzinho a você. Dedicar horas tentando ajustá-lo à tua visão de mundo. A cada frustração, sofrer, sofrer e perguntar por quê? Por quê?
4 -  Dar a mínima para artes, literatura, poesia e filosofia. Acreditar piamente que e o sentido de tudo está nos negócios, e que sem os negócios nada de importante temos para falar, ouvir, curtir.
5 - Evitar tudo o que envolva saudade. Coisas da infância e adolescência, brinquedos e colegas, paixões e namoros. Deletar da memória histórias lidas ou ouvidas, de contos de heróis e vilões, mocinhos e bandidos. Bloquear as lembranças de namoros ou quase namoros na adolescência, alegres ou sofridos. Evitar o sentimento do que disse Camões: "A grande dor das coisas que passaram".
6 - Fugir das coisas simples, das pessoas simples, da vida simples. Fazer do trabalho uma batalha diária para acumular dinheiro e se rodear de objetos que impressionem todo mundo.
7 - Fazer muito pouco ou até o contrário do que foi dito aqui.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Alunos do IFF de Santo Augusto/RS




Para o esclarecimento da população, nós da organização estudantil do Instituto Federal Farroupilha vamos expor de maneira simples os motivos da mobilização que estamos promovendo, para que todos entendam. Nossa mobilização é contra medidas tomadas em relação ao futuro da educação, que nos últimos meses estão se provando um retrocesso de cerca de 52 anos. Em especial, protestamos contra a PEC 241, que será votada no dia 10/10/2016 na Câmara dos Deputados Federais, que tem como objetivo estagnar investimentos em saúde, educação e outras áreas fundamentais. Quando falamos que lutamos por um ensino público e de qualidade, não estamos dizendo que o ensino do IF é desqualificado ou ainda reclamando de nossos professores. Pelo contrário, por estudarmos em uma instituição de qualidade acadêmica e com ótimos professores, que temos visão para lutar não apenas pelo que nos afeta diretamente, mas também por ações que prejudicam a todos os cidadãos, pois somos impulsionados a pensar e nos colocar no logar do outro. E sim, como estudantes não podemos aceitar que a educação e outras áreas fundamentais paguem a conta de uma crise que está evoluindo a décadas. Acreditamos que há medidas que possam ser tomadas que não afetam a população brasileira. Há lugares onde é possível cortar custos e onde ninguém comenta em cortar... Nós estudantes somos representantes de nossas famílias, amigos e povo brasileiro, independente de partido político e base ideológica. Esclarecendo, por fim, que a organização e iniciativa de realizar a manifestação partiu exclusivamente dos ALUNOS do campus. Os professores e a direção foram avisados de nossa mobilização e se mostraram favoráveis ao ato. Os mesmos não interferiram no desenvolvimento e tomada de decisões. As decisões foram tomadas por uma organização estudantil formada por ALUNOS, que se sentiram tocados pela atual situação do país. Portanto, a mobilização e quaisquer prováveis repercussões são de total responsabilidade dos ALUNOS.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Um conto mínimo - Heloisa Seixas


Há alguns anos, um avião japonês sofreu uma pane a dez mil metros de altura. Todo o sistema entrou em curto e os motores simplesmente pararam de funcionar. O avião começou a cair. Mas não se descontrolou, não deu reviravoltas no ar, nem se partiu em pedaços ou pegou fogo. E isso foi o mais terrível. Simplesmente começou a cair – lentamente.
Descia quase flanando, com suavidade, embora mergulhasse de forma inexorável rumo ao choque com o chão. E, enquanto isso, todos a bordo viviam, durante vários minutos, a angústia da morte próxima. Se não me engano, foram vinte minutos. Vinte minutos de espera até a explosão final.
O que faziam, o que será que pensavam? Alguns com certeza entraram em pânico, outros, paralisados de medo, na certa rezaram. Outros, ainda, bêbados de terror, devem ter falado alto e até cantado.
Mas depois, quando tudo estava terminado, uma surpresa: as equipes de resgate encontraram, entre os destroços calcinados, pedaços de cadernetas e até guardanapos com anotações de vários passageiros, que tentaram registrar aqueles minutos terríveis ou deixar uma última mensagem, como se fossem náufragos, condenados e sem esperança, numa ilha deserta.
Na época, li com arrepio o noticiário sobre o assunto, e até hoje sinto um frio na espinha quando penso no que podem ter sido aqueles momentos finais. Lembro-me também que o impulso daquelas pessoas – de, diante da morte, procurar deixar alguma coisa escrita – foi comparado ao dos artistas da humanidade: escritores, pintores, músicos, todos os que tentam, através da arte, deixar marcas de sua passagem sobre a terra, na esperança, quase sempre vã, de driblar a finitude da vida.
É a pura verdade. Somos todos – não só artistas, mas todos nós – como aqueles japoneses desesperados. Vivemos tentando deixar nossas pegadas, apressados entre o início e o fim da viagem, sem saber ao certo o que acontecerá. E a vida passa num sopro, uma rajada, não dura mais do que alguns minutos diante do arco da eternidade.
A vida é um conto mínimo.
(Do livro Contos mínimos. Editora Best Seller)

Myrna pergunta: sua alma é imortal? - Nelson Rodrigues

O texto sugere que Nelson Rodrigues acredita na alma imortal. Assim sendo, levaremos para a "nova" vida nossos sentimentos essenciais e, sobretudo, um sentimento essencialíssimo, como é o amoroso.
para Nelson Rodrigues, nossa personalidade, nosso "eu" único e inconfundível, são os nossos sentimentos. Se por algum motivo perdêssemos os nossos sentimentos, seríamos como um Frankenstein. Disso ele conclui que, "na hipótese de ser a alma imortal, são imortais, também, certos sentimentos".
Porém, diz ele que "na terra sentimos coisas que não interessam, que não exprimem o nosso 'eu' profundo e eterno, coisas, enfim, que podemos abandonar (...). É justo, assim, que cheguemos à outra 'vida' despojados dessas coisas de superfície. Mas no amor, não (...). O homem que, na passagem da vida para a morte, perdesse o amor, teria perdido, também, sua alma".
Até que ponto Nelson Rodrigues fala "sério" ou está blefando, já que Myrna é sua criação, sua ficção, seu pseudônimo?

(Do livro Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo - consultório sentimental. Companhia das letras)

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...