sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

DOR




Não aprendemos
com as perdas
dos outros

apenas quando
nossa própria carne
             dói de gemer.

Como dói perder
o que não se quer
                     perder.

Quando o amor
apenas começou
e ainda nem chegou
                    a florescer.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O DIA EM QUE O CALÇÃO ME DEIXOU NA MÃO





Essa história eu contei ao meu filho, antes dele dormir, a um ano atrás. Ontem ele lembrou dela, e sugeriu que eu escolhesse o Teco para ser o personagem principal. Eu não lembrava se tinha digitado essa história. Procurei nos meus arquivos e lá estava ela. decidi postá-la. Aceito sugestões para melhorá-la, ou para outros episódios (e cenas) que envolvam o TECO (e também outros possíveis personagens). 



Nos tempos que eu era bom de bola não havia o bem bom de hoje em dia. Chuteiras leves, importadas, bolas redondinhas...
O campeonato ficou quente quando o nosso time se classificou para as quartas de final. Daí em diante era mata-mata. Quem perdesse, estava fora.
Quando cheguei no vestiário, no dia daquele jogo, todos já estavam fardados.
É que, em vez de ir pro jogo de ônibus, o Leco, meu primo, quis me dar carona, em sua moto. O problema é que ele só tinha um capacete. Aí ele lembrou de seu amigo Riobaldo, que um dia comentou que tinha um capacete reserva, que ele usava quando dava carona pras gurias. Segundo Leco, o capacete tinha um perfume mágico. Ao colocarem ele na cabeça e subirem na moto, as meninas logo ficavam apaixonadas. Na hora eu esbravejei:
- Não vou usar esse capacete! E se alguma coisa estranha acontecer no jogo?
- Deixa de ser bobo! O perfume só funciona com as garotas – garantiu meu primo.
- É, mas não quero me atrasar para o jogo. Tenho um pressentimento de que hoje o técnico vai me colocar no time titular.
Riobaldo morava num bairro que ficava do outro lado da cidade.
Lá se foi meu primo em busca do tal capacete. Ao chegar lá, a mãe de Riobaldo disse que ele tinha ido pescar com seus tios, e que não sabia onde ele enfiou o famoso capacete.
Procura daqui, procura dali, um tempão depois ela lembrou que o Riobaldo gostava de jogar seus cacarecos em cima do guarda-roupa. Lá estava o bendito capacete...
Dez minutos depois Leco chegou e, enfim, voamos para o estádio.
Todos fardados, só faltava o técnico dizer a escalação do time. Aí ele disse que precisava de mim para desempenhar uma função especial: anular o artilheiro adversário. Onde o Nove deles fosse, era pra eu ir atrás, tirando-lhe todo o espaço e bufando no seu cangote.
Abri a sacola com o material esportivo do nosso time, peguei as meias e procurei um calção do tamanho GG. (É, minha bunda não comporta um calção menor). Acontece que só tinha sobrado P e M. O de tamanho P era do Zezinho Bala, que naquele dia estava suspenso, porque tinha levado três cartões amarelos.
Tive de rebolar para colocar o calção tamanho M. Ai, ai, ai... Parecia aqueles fardamentos que os times usavam na década de 1980. Lembram do Zico, do Sócrates e do Falcão, da Seleção Brasileira de 1986? Me sentia preso, como se estivesse usando uma armadura.
Começou o jogo, e tratei de perseguir o Nove do outro time. Ia grudar nele como um carrapato!
Daí a pouco lançaram ele no flanco direito da nossa defesa, e eu pensei: vou chegar duro, só pra intimidar ele... Dei um carrinho por trás, ouvi um cruiiiiicccccccckk... Arrastei a bunda no chão, caí meio torto, com as pernas erguidas e abertas. De armadura, o calção se transformou numa saia!
Gemi bem alto, rolando pelo chão, as mãos escondendo o que aparecia no meio das pernas... O juiz autorizou a entrada do massagista de nosso time, que veio com o spray em punho.
- Onde foi a pancada? perguntou, soltando logo um jato de sssssssssssssssss...
- Calma! Foi pior do que você imagina – sussurrei. Apontei para o meio das minhas pernas...
- Credo! Você está usando calção branco, mas o calção do nosso time é verde!
Os jogadores do time adversário botavam pressão no juiz, para que recomeçasse o jogo, e o meu calção tinha se transformado numa saia...
Aí o massagista pegou uma toalha, que eu passei em torno de minha cintura, e cochichou:
- Saia mancando, pra torcida não desconfiar!
Falou pro juiz que eu precisava de atendimento do lado de fora do gramado. Lá fui eu, enrolado na toalha, como se estivesse saindo do banho. Notei que, do alto da arquibancada, alguns torcedores davam risadinhas maliciosas. E não é que se aproximou um repórter de uma rádio, querendo me entrevistar, pra saber se minha lesão fora grave? Fiz sinal de sim com a cabeça, virei o rosto para o lado e comecei a gemer bem alto, apertando o joelho.
O técnico e todo o nosso banco de reservas estavam aflitos porque tínhamos um jogador a menos, e o time adversário não saía de nossa área. O massagista assoprou algo no ouvido do médico, e eles vieram na minha direção, cada qual com uma toalha. Um pela frente, outro por trás, fizeram uma barreira.
Começou devagarzinho e foi, aos poucos, aumentando um coro da geral:
- Ti-ra, ti-ra, ti-ra!...
Peguei o calção que me alcançaram... Era o calção do Zezinho Bala!
- Corre logo pro campo e marca de cima o Nove! – gritou o técnico.
Comecei, então, uma grande batalha. Minhas cochas nunca foram tão grossas, minha bunda nunca fora tão grande! Gingo a cintura de um lado para o outro... Puxo, rebolo... Ufa! Finalmente estou em condições de anular o Nove.
O árbitro me autoriza a voltar para o jogo. Começou, então, na geral que fica na parte direita do estádio, um grito de guerra, que até hoje não consigo me esquecer:
- Gi-se-le! Gi-se-le! Gi-se-le!
Do lado oposto, onde tem a arquibancada, cadeiras cobertas e as cabines da imprensa, veio outro grito de guerra:
- Xu-xa! Xu-xa! Xu-xa!


Faço de conta que não tenho nada a ver com isso... Rebolo as cadeiras e consigo soltar a camisa por cima do calção... O chato do juiz logo percebe e ordena que deixe meu fardamento como deve ser.
Desanimado, nosso técnico balança a cabeça, e decide me substituir. É que toda vez que eu ameaçava correr, voltava o coro da geral “ Gisele! Gisele! Gisele!”, e a resposta do outro lado do estádio: “Xuxa, Xuxa, Xuxa!”
Droga! Meu sonho não era ser jogador de futebol. Era ser modelo. E agora, de um jeito estranho, o sonho estava se realizando!
O jogador que ia me substituir já havia aquecido. O auxiliar do juiz levantou a bandeira, eu coloquei a mão na virilha e fingi que não suportava a dor. Primeiro sentei, depois deitei e veio a maca. Juro que nunca tinha saido de campo carregado numa maca!
Querem saber? Hoje, bastante tempo depois, confesso que foi legal ouvir “Gisele! Xuxa! Gisele! Xuxa! Gisele...”

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O Brasil das placas







Imagine-se dirigindo por uma estrada poeirenta de algum cafundó do Brasil. A certa altura da viagem, você passa por uma placa anunciando a "Lanchonete 2 Irmões". Mais adiante, outra avisa: "Hotel para Chifrudos".
Mensagens como essas o fotógrafo José Eduardo Camargo, editor do Guia 4 Rodas, da Editora Abril, cansou de ver pelas estradas, em três anos de viagens pelo Brasil. Resolveu clicar as mais esdrúxulas e as mais criativas, reunindo tudo em um livro: Brasil das placas, viagem por um país ao pé da letra, lançamento da revista Superinteressante e da Editora Abril.
O livro reúne 300 imagens editadas em 60 fotos publicadas, captadas em 16 estados brasileiros. L. Soares, pseudônimo de André Fentenelle (editor da revista Veja) elaborou textos em formato de cordel e refinou o humor das fotos. Os textos dialogam com as placas de forma agradável e criativa. "Por ser bem brasileiro, o cordel tem a ver com o livro. O texto ajuda a explicar as fotos", diz Fontenelle. O resultado é impagável.
Brasil das placas pode ser comprado pela internet, no site www.brasildasplacas.com.br, que traz novidades, papéis de parede e placas inéditas. Viajantes, encantados com a idéia, colaboram com o sítio, mandando imagens colhidas na estrada e engrossam o acervo de pérolas da comunicação improvisada que divertem pelas estradas do país.


"Convidamos o leitor

A embarcar nessa viagem



no Brasil tem muita placa


cada qual com sua linguagem


não tem certo nem errado


o importante é a mensagem".



Humor


Se em algumas placas o engraçado vem do erro de português, na maioria das vezes o efeito cômico vem de tirarmos a mensagem da placa de seu contexto, ou da ambigüidade da mensagem em si. Para José Eduardo, muitas das placas estão relacionadas à informalidade do país, que faz comerciantes chamarem a atenção para vender seu peixe. "É um fenômeno brasileiro, que encontramos de Norte a Sul".



















O mudo passeio do Doutor Quejando - Mario Quintana


Ora pois,
o Doutor Quejando
vinha andando
andando
quando encontrou o carneirinho Mé
em companhia da vaquinha Bu
- Olé!
Como vais tu? - disseram-lhe os dois.
O Doutor Quejando continuou andando.
Mudo.
E o Doutor Quejando e o urubu trocaram um horrendo
                                                              olhar de simpatia.
E o pior de tudo
é que se acabou a história.
Se acabou a história...
E a vida continua.

Do livro A cor do invisível. Ed. Globo.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Quem ama perde a vergonha


Todos os torpedos de amor são
ridículos.
Não seriam torpedos de amor se não fossem
ridículos.

Hoje eu envio torpedos de amor
ridículos.

Os torpedos de amor
já que existe o amor são
ridículos.

Quem nunca mandou um torpedo de amor é
ridículo.

Eu perdi a vergonha por causa do amor
e por isso mando torpedos de amor
ridículos.



TODAS AS CARTAS DE AMOR SÃO

Todas as cartas de amor são
ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
como as outras,
ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
têm de ser
ridículas.

Mas, afinal,
só as criaturas que nunca escreveram
cartas de amor
é que são
ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
sem dar por isso
cartas de amor
ridículas.

A verdade é que hoje
as minhas memórias
dessas cartas de amor
é que são
ridículas.


Do livro Fernando Pessoa - poesias de Álvaro de Campos. FTD.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Tudo nela é canção




Tudo nela é canção.
O olhar de luar
o sorriso com dentes e boca
a se abrir em cachoeira
o cabelo molhado depois do banho
o vento que acaricia seu rosto
o compasso dos quadris
pra lá e pra cá
ao caminhar...

Quando a vejo
uma força misteriosa
acelera o ritmo
do meu pulsar...

Ela gravou em mim
canções antigas
canções da moda
canções perdidas
na memória

seus acordes e letras
me inspiram e renovam...

Mas é tanto som
novidade movimento
que agora eu busco
- desesperado -
o silêncio.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Do mundo virtual ao espiritual - Frei Betto

Procurava no google a hostória do Hans Christian Andersen, A roupa nova do rei, e acabei acessando um blog com este título.  Suas autoras escrevem assim, na página de rosto do blog:
A roupa nova do Rei é invisível às pessoas destituídas de inteligência ou àquelas que não estão aptas para os cargos que ocupam. No conto, todos veem o Rei pelado mas fingem ver a roupa nova. Até que um menino diz em alto e bom som: "O Rei está nu!" Somos FOODBLOGGERS, mas também gritamos contra a falta de senso crítico, a preguiça de pensar e o medo de parecer ignorante.
Então, ao dar uma passeada pelo blog, deparei-me com um texto do Frei Betto, que as autoras postaram no dia 5 de abril de 2010.
Me identifiquei com sua opinião do mesmo instante, por isso trascrevo-o abaixo, na sua integra. "A roupa nova do rei" fica para a próxima postagem.


DO MUNDO VIRTUAL AO ESPIRITUAL

Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia, do Japão e da China. Eram homens serenos, comedidos, recolhidos e em paz nos seus mantos cor de açafrão.


Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos, geralmente comendo mais do que deviam. Com certeza, já haviam tomada café da manhã em casa, mas como a companhia aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente. Aquilo me fez refletir: 'Qual dos dois modelos produz felicidade?'


Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei: 'Não foi à aula?' Ela respondeu: 'Não, tenho aula à tarde'. 'Não', retrucou ela, 'tenho tanta coisa de manhã...' 'Que tanta coisa?', perguntei. 'Aulas de Inglês, de balé, de pintura, piscina', e começou a elencar seu programa de garota robotizada. Fiquei pensando: 'Que pena, a Daniela não disse: 'Tenho aula de meditação!'


Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados, mas emocionalmente infantilizados.


Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de ginástica e três livrarias! Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em relação à malhação do espírito. Acho ótimo, vamos morrer esbeltos: 'Como estava o defunto?'. 'Olha, uma maravilha, não tinha celulite!' Mas como fica a questão da subjetividade? Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?


Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual. Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou de quadra! Tudo é virtual. Somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais. E somos também eticamente virtuais...


A palavra hoje é 'entretenimento'; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: 'Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!' O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.


O grande desafio é começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.


Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil constrói-se um shopping center. É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: Não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas...


Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno... Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados ma mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrger do Mc Donald's...


Costumo advertir balconistas que me cercam à porta das lojas: 'Estou apenas fazendo um passeio socrático.' Diante de seus olhares espantados, explico: 'Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça, percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia:


"Estou apenas observando quanta coisa existe de que eu não preciso para ser feliz!"


Frei Betto é Frade Dominicano, Teólogo, Antropólogo, Filósofo, Jornalista e Escritor.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Amor pra mi(m) maior




Dell
dellira
dellibera
com dellirio
dellicioso

Dell namora
com dellicia
e delleite
dellicado

Dell devora
Dell mordida
sem mordaça
e amarra

Dell cobiça
Dell devassa
Dell é densa
Dell é deusa
Dell é maga

Dell dellicia
Dell morena
Dell morada
Dell amor
Dell seu nome
foi nomeado
de amor
pra mi(m) maior!

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

O tamanho do sonho - Cíntia Moscovich



Num famosérrimo salão de beleza da Capital, eu observava um cabeleireiro que arrematava seu trabalho arrepiando com gel o que restara na cabeça de um guri duns nove anos. As laterais tinham sido sumariamente raspadas, apenas uma faixa de cabelo preenchia o espaço da nuca à testa: o corte moicano.


Achei a cena graciosa. Primeiro porque me lembrei da época em que, sem o recurso de gel, spray, musse ou cera, aquele mesmo penteado era moldado na base do sabonete. Lembrei também que o tal moicano tinha representado a mais legítima expressão de marginalidade, coisa de punks, metaleiros e outros undergrounds da vida – nada que combinasse com o salão em que estávamos.


Minha manicure, vendo que eu me interessava pelo corte do menino, esclareceu:


– É o corte Neymar. Todas as crianças querem.


Neymar, todo mundo sabe, é aquele jogador do Santos, meio desbocado e que usa correntão de ouro no pescoço. Encarnação do futebol-arte, muito jovem e, desculpem, muito brega.


Sei, no entanto, que as crianças não estão nem aí e imitam seus ídolos de futebol – até me lembro de uns pobrezinhos usando a infâmia do topete em meia-lua do Ronaldo Fenômeno. Também sei que cada época gera seus próprios ídolos e que eu tenho mais é que respeitar a escolha do tempo em que vivo.


Só uma pergunta: por que aquela criança, por cujo corte a mãe desembolsou uns R$ 50, idolatra um jogador de futebol? Por que, para sermos um pouquinho originais, nossa infância não escolhe outro tipo de paixão? Por que nossos pequenos nivelam seus sonhos aos pés de um moleque?


E se nossa juventude cobiçasse ser grande não só no esporte? Como seria se os pequenos passassem a venerar bons engenheiros, a adorar bons pintores, a se espelhar em bons filósofos, bons atores, bons dançarinos?


E se o ideal dessa gurizada fosse se tornar bom escritor, bom estilista, bom pesquisador, cineasta, músico, será que a gente não evitaria sermos a mixórdia que somos? E se, ao invés de show, déssemos à infância o silêncio da civilidade? E se, ao invés de berros, ensinássemos palavras?


Acompanhando aquele gurizinho do salão de beleza se transformar num punk de mentirinha, senti também uma espécie de desânimo e concluí que o mau gosto prevaleceu e que chegamos ao fim da picada.


Pior: me dei conta de que estamos nisso por nossa incompetência para sonhar, já que a gente é matéria e tamanho de nossos sonhos. Naquela hora, só me ocorreu pedir à manicure o esmalte mais roxo que fosse possível encontrar. Seria minha homenagem à contestação, à criatividade, à invenção e à arte.


Viva o sonho. E viva tudo o que não for ídolos com pés de absoluto e medíocre barro.

Zero Hora, 18 de janeiro de 2011.

domingo, 16 de janeiro de 2011

AS RÃS


A primavera
foi úmida
e das rãs.

elas partiram
e o verão secou...

Secaram
as cigarras
e a alegria
dos meus vizinhos.

Estão de férias
a inspiração
e os sorrisos...

Pra não ficarmos
duros graves e tantãs,
que voltem as rãs!

sábado, 15 de janeiro de 2011

O ciclo de Pedro Malazarte



De como Malazarte fingiu que se matava


Vendo que a vitima vinha em sua perseguição, deu tudo quanto tinha e, ao aproximar-se de um riacho, encontrou uma mulher a lavar roupa. Estava perdido, porque a lavadeira daria ao perseguidor a sua direção.


Mais que depressa tocou a carneirada a atravessar o riacho, e tomando um dos carneiros, tirou-lhe as tripas e meteu-as debaixo da camisa. Quando a manada passou, ele arrancou da faca, fingiu que abriu o ventre e deixou cair na água as tripas do carneiro, que ali levou ocultas.


A lavadeira deu um grito, caiu desmaiada ao presenciar tal cena e Malazarte desapareceu.


Quando o perseguidor chegou à toda, e perguntou à lavadeira se tinha visto passar um homem tocando uma carneirada, ela respondeu, quase sem poder falar, que Pedro Malazarte havia feito o que ficou dito.


E, porque Pedro já estava longe com o rebanho, o homem voltou soltando um milhão de pragas.


De como Malazarte passa adiante a carneirada


Já muito longe, encontrou um porqueiro que vinha tocando também. Pedro Malazarte que já previa que o fazendeiro havia de vir no seu rasto, propôs troca dos carneiros, (que valiam menos, pelos porcos, que valiam mais).


Fecharam o negócio, tendo o porqueiro feito uma volta em dinheiro.


Malazarte seguiu com a porcada e o outro com os carneiros, em direção oposta.


O porqueiro foi pousar em casa do dono dos carneiros. Ao ver o seu rebanho, o homem avançou para o porqueiro, e exigiu entrega do que era seu. O porqueiro quis resistir, mas vendo que o homem estava armado até os dentes e tinha muitos capangas, não teve outro remédio senão fazer a restituição, ficando no prejuízo, e tocou pra trás a ver se encontrava o Malazarte que já estava longe, tendo tomado por um atalho que foi dar numa fazenda. E, vai então, vendeu a porcada por um precinho barato, mas com a condição de o comprador deixar que ele cortasse a ponta do rabo de cada porco.


Fecharam o negócio e Pedro Malazarte meteu no embornal os rabinhos dos porcos e bateu o pé na estrada.


De como Malazarte rouba as jóias de uma família.


E foi dar no castelo de um ricaço que era casado e tinha uma filha, e ofereceu-se para empregado. E foi aceito. Como era tempo de chuva, o chiqueiro estava que era mesmo um lameiro. E Malazarte teve logo uma idéia. De noite tocou para longe a porcada do ricaço e, voltando, espetou no lameiro as caudas dos porcos. E, quando de manhã o dono da casa veio ver a porcada, Malazarte lhe apontou o lameiro e disse-lhe que os porcos estavam atolados, apenas com os rabos de fora.


O dono da casa mandou-o logo que fosse em casa buscar duas enxadas a ver se podiam desenterrar os animais. Pedro Malazarte foi numa corrida e, lá chegando, viu a dona e a filha passeando no jardim e lhes disse:


- O patrão mandou que as senhoras me acompanhem. Elas duvidaram, mas Malazarte gritou, perguntando ao patrão que estava lá embaixo:


- As duas, patrão?


- Sim, as duas, e sem demora! As duas, pateta!


E, então, as senhoras não puseram mais diferença e acompanharam Pedro que tomou com elas outra direção. Já longe o velhaco amarrou-as numa árvore, tirou-lhes todas as jóias que eram de grande preço, fugiu e foi tocar a porcada que tinha ocultado no dito retiro.


E, quando o ricaço, cansado de esperar, foi a casa e não encontrou a mulher e a filha, bateu a procurá-las até que as achou amarradas onde Malasartes as havia deixado.


Quando voltou é que viu que dos porcos só havia os rabinhos, que ele é que era um pateta de marca.


A muitas léguas dali, o Malazarte negociou a porcada, recebeu o cobre, comprou um bom terno de roupa e foi parar em certa cidade, onde, logo na entrada, havia uma bonita chácara que era do dr. Juiz de Direito.


De como Malazarte faz mais uma que parecia duas


Eram já por umas dez da noite. O Malazarte bateu à porta e pediu pousada, dando o nome de doutor Fulano, que vinha visitar aquela terra. O Juiz costumava entrar tarde, pois ficava até à meia-noite fora de casa, jogando marimbo com um seu compadre. E vai então o filho do Juiz na sua simplicidade, mandou entrar o hóspede e, depois de um bom chá, deu-lhe pousada, no quarto da sala, onde o Juiz costumava se vestir. E quando o Juiz chegou, o filho lhe contou o que se tinha passado e o tolo ficou muito satisfeito daquela hospedagem.


E vai então lá pela madrugada o Malazarte começou a sentir umas coisas na barriga…Procurou o vaso e, não o encontrando, abriu a janela… mas lá fora havia uma cachorrada, que foi um barulho de latidos que nunca se viu.


O Malazarte estava suando frio. Mas nisto avistou na prateleira uma caixa. Abriu, havia dentro uma cartola de pelo. Estava salvo! Tirou a cartola, fez nela o que quis, pôs outra vez na caixa e esta no lugar onde antes estava.


De manhã, quando ouviu tropel dos criados saiu e… este mundo é meu!…


Quando vieram chamar o Malazarte para o café, não o acharam mais.


À hora do almoço, o Juiz saiu do quarto e foi para o cômodo em que se costumava vestir.


Era dia de júri. Vestiu a sobrecasaca, e, distraído, tirou a cartola que enterrou, de um golpe, na cabeça.


Para que tal fizeste! Ficou com a cara enlameada e sentiu um cheiro que quase o afogou. Começou então a gritar. A família veio toda, pensando que tinha acontecido alguma desgraça.


Ao vê-lo naquele estado, correram todos a buscar socorro. O filho trouxe-lhe um banho, a filha água florida, a mulher sabonete de cheiro.


E depois houve risada que não foi brinquedo, enquanto o Juiz bufava de raiva. E os jurados já estavam cansados de esperar por ele…


Mas o Malazarte já estava longe. Até parecia que tinha parte com Belzebum.

Do livro Os grandes contos populares do mundo. Organizado por Flavio Moreira da Costa.

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...