sexta-feira, 8 de março de 2019

Faltou café



Ontem eu caminhava pela calçada de um bairro de minha cidade e me deparei com um solitário velhinho, com cara de transtornado. Falava alto e, mesmo que estivesse a poucos metros de distância, não me notou, continuou falando.
O final do dia, além de abafado, está meio estranho, pensei.
Quando era criança, cenas como essa me impressionavam. Mas quem liga pra isso hoje em dia?
Algumas vezes, ao retornar pra casa do bar, embriagado, eu também falo sozinho. Porém, tomo o cuidado de o fazer um pouco tarde da noite, quando a comunidade está em sono alto, só assim não me intimido.
Se é noite de luar ou o céu está estrelado, converso animadamente com as estrelas e a via láctea, algumas das representantes de Deus no universo.
Ao servir o exército, numa cidade que ficava a uns setecentos quilômetros de onde eu morava, trocava cartas com uma garota adolescente, uma "quase" namorada. Depois de ser colocada no correio, a carta demorava uma semana pra chegar ao seu destino. Isso quer dizer que recebia a resposta da garota não menos do que duas semanas depois.
Poderia ter renunciado ao serviço militar, mas disse ao comandante, na entrevista derradeira, que queria permanecer. O que fiz aos dezoito anos eu faço até hoje: gosto de sofrer, gosto de sentir saudade, morando longe das pessoas mais próximas. 
Quanto a isso, os psicanalistas, freudianos ou lacanianos, têm o conceito na ponta da língua pra "classificar" meu tipo de neurose. Fodam-se todos eles.
Escrevia muitas cartas. Não sei como as garotas suportavam páginas e páginas daquelas "viagens". Talvez esse gosto pela escrita me salve (ou liberte?) de caminhar pelas ruas falando sozinho.
Hoje, Ao recordar minha juventude, até acho engraçado. Tinha aspirações literárias. Sonhava me imortalizar como poeta. E não fazia ideia de que todo esse sonho iria pro ralo, bastava me apaixonar por alguma garota. Foram várias paixões. O poeta amou e deixou a arte em segundo plano.
Juvenil, não tinha qualquer maturidade e noção de que poderia "reencarnar" almas altamente criativas de tempos passados, que me presenteariam com histórias imortalizadoras. Quando a inspiração surgia, meu espírito apaixonado se desviava dos caminhos criativos, os insights. E, com certeza, não tive um mínimo de "café" para compreender e decifrar essas histórias e colocá-las no papel.
É por essas e outras que, ao observar essa gurizada por aí, não sinto pena ou lamento tamanha ingenuidade. Ao contrário, me coloco no lugar deles. São o que eu fui um dia.

(B. B. Palermo)

quinta-feira, 7 de março de 2019

Pinheirinho de Natal


Parecia a rainha da boate.
Desfilava tendo nos braços pulseiras de várias cores,
que representavam os drinques que "bebera" com os clientes.
Vermelho, significava champanhe;
azul, uísque com energético;
amarelo, cerveja.
Uma paquera aqui, um strip-tease ali.
Parecia uma primeira dama com suas jóias chiquérrimas.
Enfeitada com aquelas "jóias", a garota me fazia lembrar
do pinheirinho de Natal de minha infância,
tomado de penduricalhos.          

(B. B. Palermo)

sábado, 2 de março de 2019

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da baixa - Álvaro de Campos


Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida —
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos
tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: Sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: Sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Baby, é hora de sacar essa obsessão

Uma obsessão enfeitiçou teus olhos:
atrair uma dezena de boys,
explorar o que dispões no momento,
realçar as curvas do corpo,
metida num biquini que mostra tons do bronzeado
derramados sobre tuas curvas.

Isso me faz lembrar daquela música que diz que
"a nossa vida corre contra o tempo (...).
Somos castelo de areia na beira do mar...".

Baby, deve haver outras saídas,
e logo chegam os quarenta,
os cinquenta, os sessenta anos,
e você vai precisar distrair teu corpo.
Faça como muitas e muitos por aí:
aprenda outra língua, leia mais livros,
faça uma pós-graduação.          

Você não está equivocada ao mergulhar nas câmeras fotográficas
que te refletem em direção aos olhos dos outros.
Nossa duração não é eterna,
somos herdeiros do clic, do flash,
de luzes foscamente brilhantes,
o que vale é o aqui e agora.

Ninguém quer saber se amanhã as comportas não suportem o fluxo da vida,
e se o lago de nossas tentativas e acertos e erros ameaça estourar,
e se estaremos uns mais vulneráveis do que os outros,
e se alguns terão mais luz do que os outros...
E é angustiante demais saber
que "somos castelos de areia na beira do mar"!



(B. B. Palermo)

sábado, 23 de fevereiro de 2019

Vai por mim, meu brother



Nesses dias de esforços sobre-humanos para me manter sóbrio e recuar um pouco a barriga, a primeira música que me sobe à cabeça é de propaganda de cerveja.
Pior ainda é duelar com a vontade capeta que só vê copo cheio diante dos olhos à espera pra ser sugado, e a toda hora me perguntar quem sou eu e o que quero da vida.
Ainda mais dramático é ler poetas rebeldes de alguns séculos atrás e buscar traços que me identifiquem com eles, como se tivesse herdado ou reencarnado seus defeitos e vícios.
Agora, ao ouvir o blues que o Renato Fernandes canta bêbado nuns versos em nossa língua varonil, a palavrinha que lateja em minha mente é "dignidade, dignidade". Como se eu devesse me culpar por todas as merdas que os políticos planejam na calada da noite, e seu papo furado de que são necessárias reformas urgentes, como se o mundo fosse acabar se não aceitarmos isso.
Os que os apoiam são chamados de "gado".
Os que fazem a crítica são chamados de comunistas.
Rebanhos, todos, com ou sem conhecimento de causa, marchando em ordem unida para o abate.
Não suporto bater de frente com a opinião desse povo. Sei que serei odiado, pois aqui estou dando meus palpites.
Nossa opinião tem o mesmo grau de veracidade dos seis números que jogamos na Mega sena. A probabilidade de acertar e de ser levado a sério é de uma em seis milhões. Então, não perca tempo opinado por aí. É muito mais saudável ir pescar ou fazer sexo ou, por que não?, se masturbar. Vai por mim, meu brother.

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Todos os homens são maricas quando estão com gripe - Antonio Lobo Antunes


Pachos na testa
Terço na mão
Uma botija Chá de limão
Zaragatoas
Vinho com mel
Três aspirinas
Creme na pele
Dói-me a garganta
Chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer
Mede-me a febre
Olha-me a goela
Cala os miúdos
Fecha a janela
Não quero canja
Nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes
Não vales nada
Se tu sonhasses
Como me sinto
Já vejo a morte
Nunca te minto
Já vejo o inferno
Chamas diabos
Anjos estranhos
Cornos e rabos
Tigres sem listas
Bodes de tranças
Choros de corujas
Risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes
Que foi aquilo
Não é a chuva
No meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes
Fica comigo
Não é o vento
A cirandar
Nem são as vozes
Que vêm do mar
Não é o pingo
De uma torneira
Põe-me a santinha
À cabeceira
Compõe-me a colcha
Fala ao prior
Pousa o Jesus
No cobertor
Chama o doutor
Passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes
Nem dás por nada
Faz-me tisanas
E pão de ló
Não te levantes
Que fico só
Aqui sozinho
A apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes
Que vou morrer.

O dia da inauguração do mundo - Luiz Coronel


O mundo estava pronto
ao findar do sexto dia.
Água e terra, lado a lado
na mais perfeita harmonia.

Então uma pedra falou
com sua voz um tanto aguda:
“eu gostaria de andar”!
E Deus fez a tartaruga.

E depois uma montanha
com sua voz trovejante
pediu para ser bicho,
e Deus criou o elefante.

E a lua que se refletia
em águas claras, pacatas
disse que queria nadar
e se fez peixe de prata.

E quando a folhinha verde
expressou os sonhos seus
de saltitar entre os galhos
se tornou um louva-a-deus.

E as nuvens que cobriam
de branco o céu inteiro
resolveram se transformar
num rebanho de cordeiros.

E o sol, com pinta de rei,
quis também sua mutação:
por ter uma juba dourada
Deus fez do sol um leão.

E no seu galho uma flor
com vozinha de opereta
pediu que queria voar.
E Deus fez a borboleta.

E a estrela brilhante
vendo a onda se elevar
pediu para descer às águas
e hoje é “estrela-do-mar”.

E um anjo que estava perto
(até nem me lembro o nome),
gritou que queria ser Deus.
De castigo virou homem.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Amar ou odiar - João Villaret


Amar ou Odiar
Poema de Fausto Guedes Teixeira
dito por
João Villaret 

Amar ou odiar: ou tudo ou nada!
O meio termo é que não pode ser.
A alma tem que estar sobressaltada
Para o nosso barro se sentir viver...

Não é uma cruz a que não for pesada,
Metade de um prazer não é um prazer;
E quem quiser a alma sossegada,
Fuja do mundo e deixe-se morrer!

Vive-se tanto mais quando se sente:
Todo o valor está no que sofremos.
Que nenhum homem seja indiferente!

Amemos muito como odiamos já:
A verdade está sempre nos extremos
Porque é no sentimento que ela está!

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Brasileiro, homem do amanhã - Paulo Mendes Campos


 Há, em nosso povo, duas constantes que nos induzem a sustentar que o Brasil é o único país brasileiro de todo o mundo. Brasileiro até demais. Colunas da brasilidade, as duas colunas são: a capacidade de dar um jeito; a capacidade de adiar.
           A primeira é, ainda, escassamente desconhecida, e nada compreendida, no exterior; a segunda, no entanto, já anda bastante divulgada lá fora, sem que,direta ou sistematicamente, o corpo diplomático contribua para isso.
         Aquilo que Oscar Wilde e Mark Twain diziam apenas por humorismo (“Nunca se fazer amanhã aquilo que se pode fazer depois de amanhã”), não é, no Brasil, uma deliberada norma de conduta, uma diretriz fundamental. Não, é mais, é bem mais forte do que qualquer princípio da vontade: é um instinto inelutável, uma força espontânea da estranha e surpreendente raça brasileira. Para o brasileiro, os atos fundamentais da existência são: nascimento, reprodução, procrastinação e morte (esta última, se possível, também adiada). 
Michael Cheval.
        Adiamos em virtude de um verdadeiro e inevitável estímulo inibitório, do mesmo modo que protegemos os olhos com a mão, ao surgir, na nossa frente, um foco luminoso intenso. A coisa deu em reflexo condicionado: proposto qualquer problema a um brasileiro, ele reage, de pronto, com as palavras: logo à tarde, só à noite, amanhã, segunda-feira; depois do Carnaval; no ano que vem.
         Adiamos tudo: o bem e o mal, o bom e o mau, que não se confundem, mas, tantas vezes, se desemparelham. Adiamos o trabalho, o encontro, o almoço, o telefonema, o dentista (o dentista nos adia),a conversa séria, o pagamento do imposto de renda, as férias, a reforma agrária, o seguro de vida, o exame médico, a visita de pêsames, o conserto do automóvel, o concerto de Beethoven, o túnel para Niterói, a festa de aniversário da criança, as relações com a China, tudo. Até o amor. Só a morte e a promissória são, mais ou menos, pontuais entre nós. Mesmo assim, há remédio para a promissória: o adiamento bi ou trimestral das reformas, uma instituição sacrossanta no Brasil.
         Quanto à morte, não devem ser esquecidos dois poemas típicos do Romantismo: na “Canção do Exílio”, Gonçalves Dias roga a Deus não permitir que ele morra sem que volte para lá, isto é, para cá. Já Álvares de Azevedo tem aquele poema famoso, cujo refrão é sintomaticamente brasileiro: “Se eu morresse amanhã...”. Como se vê, nem os românticos aceitavam morrer hoje, postulando a Deus prazos mais confortáveis.
        Sim, adiamos por força de um incoercível destino nacional, do mesmo modo que, por obra do fado, o francês poupa dinheiro, o inglês confia no Times, o português adora bacalhau, o alemão trabalha com furor disciplinado, o espanhol se excita com a morte, o japonês esconde o pensamento, o americano escolhe a gravata sempre mais colorida.
         O brasileiro adia; logo, existe.
         A divulgação dessa nossa capacidade autóctone para a incessante delonga transpõe as fronteiras e o Atlântico. A verdade é que já está nos manuais. Ainda há pouco, lendo um livro francês sobre o Brasil, incluído numa coleção quase didática de viagens, encontrei, no fim do volume, algumas informações essenciais sobre nós e a nossa terra. Entre endereços de embaixadas e consulados, estatísticas, indicações culinárias, o autor intercalou o seguinte tópico:
        DES MOTS : Hier = ontem;
        Aujourd’hui = hoje;
        Demain = amanhã.
        Le seul important est le dernier.
        A única palavra importante é última.

         Ora, esse francês astuto agarrou-nos pela perna. O resto eu adio para a semana que vem.

Pílulas diárias de fofoca

  – Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém! Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”. Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ningu...