sábado, 8 de abril de 2017

As velhinhas da Rue Hamelin - Rubem Braga


 Paris, setembro – Rue Hamelin, onde morreu Proust. Ali pertinho é a rua Lauriston, onde morreram muitas outras pessoas menos conhecidas: ali era a casa das torturas da Gestapo. Mas na rue Hamelin há coisas imortais: suas velhinhas não morrem nunca. Há aquelas duas que vão todo dia ao mesmo bistrô; uma corpulenta, sempre de chapéu, que lê o Fígaro e reclama da qualidade do vinho, mas reclama com uma dignidade que se ajusta bem aos seus 70 anos e muitos anos; reclama e bebe. Mora um pouco para abaixo de minha casa, e eu gostaria de imaginar que mora na casa em que morreu Proust; mas não.
          Atravessa a avenida Kleber com um passo lento no seu vestido negro sempre impecável; como todas essas outras digníssimas velhas usa um vestido que se fecha no pescoço em uma espécie de gola alta, onde há rendas e talvez elástico, talvez barbatana, uma gola que mantém a cabeça ereta através dos séculos, capaz de ver de cima, sem se curvar, as pequenezas do mundo presente. Atravessa a avenida sem olhar para os lados, como se todos os choferes de Paris tivessem o dever de respeitá-la; talvez ao se aproximarem de sua pessoa esses carros motorizados se transformem secretamente em coches e diligências, para fazer ambiente para a sua travessia.
          A outra velhinha tem o ar triste – e come muito. Não creio que dure muito; mas é verdade que há trinta anos atrás ela poderia dar a mesma impressão. É infinitamente velha, e apesar da gola apertada anda devagarinho a olhar disfarçadamente para o chão, como se temesse tropeçar e cair dentro de alguma sepultura. Sua própria velhice já deve ser uma coisa muito velha; ela deve ter perdido algum neto muito querido na guerra franco-prussiana e desde então tem esse ar triste.
          Há ainda uma velha pobre, mas também vestida com a maior dignidade. Outro dia cheguei à janela, atraído por alguns sons feios e tristes que pareciam querer se encaminhar no sentido de uma certa melodia: era essa velha que cantava. Cantava no meio da rua, em pleno sol, parada, olhando os cinco andares de janela. Hesitei um instante antes de lhe jogar algum dinheiro. Sua presença era tão severa como a da genitora de um magistrado mineiro em dia de missa de sétimo dia pela alma de outra genitora de outro magistrado, na igreja de São José. Temi ofendê-la jogando-lhe dinheiro, como já fizera em benefício do cego e da mocinha ou do homem da rebeca ou do algeriano do macaco que dança ao som do tambor. (Sim, porque a rue Hamelin tem seus artistas errantes). A velha senhora tentava cantar uma velha canção; joguei-lhe algumas moedas dentro de um maço de cigarros. Parou de cantar e recolheu o dinheiro com um gesto difícil e lento, sem se dignar a me agradecer.
Há dois velhos extraordinariamente magros, extraordinariamente brancos, vestidos de negro, com chapéus negros, que andam juntos mas não se falam nunca, como se há quarenta anos atrás tivessem esgotado de maneira irremediável o último assunto; mas há um velho que, segundo descobriu dom Carlos de Reverbel, adora o trato com os outros seres humanos. Veste-se com menos esmero, talvez com uma limpeza duvidosa; até seus cabelos brancos e sua pele parecerem mais encardidos pelos anos e pelas intempéries. Usa uma espécie de sobrecasaca imutável e gosta de ficar parado perto do metrô Boissères. De vez em quando detém um transeunte. Já assistimos essa cena, que o próprio dom Reverbel, com sua paciência já viveu duas vezes. O ancião pede desculpas e faz alguma pergunta sobre a direção em que deve viajar para uma certa gare. A pessoa explica com gentileza: descer em Trocadero, pegar então a direção de Sèvres, etc. O velho ouve com a máxima atenção, movendo a cabeça; e acaba perguntando se não seria muito incômodo mostrar-lhe o itinerário no mapa. Vêm então os dois até o mapa e a explicação é repetida. O velho agradece muito, e outro segue o seu caminho, convencido de que praticou uma boa ação. O que não é inexato. Seria inexato, porém, pensar que o digno senhor pretendia ir a rua Molitor ou a qualquer outra parte. Nunca. Jamais desce as escadas do metrô; continua ali na calçada, com um ar meio desorientado, a espera de outra pessoa a quem perguntará o itinerário de outra estação. Nunca vai, nunca foi a parte alguma; nasceu, já de sobrecasaca, num desses escuros casarões da rue Hamelin, e no lugar de morrer talvez vire estátua na pracinha ali atrás: há muitas estátuas em Paris e se esse velho se disfarçar em bronze e ficar quietinho no meio do jardim, ninguém duvidará que ele seja, por exemplo, o próprio Hamelin. (Desconfio vagamente que é).
          Mas foi na esquina de Galilée que assisti a um dos encontros mais tocantes que me foi dado presenciar na vida. Vinha de um lado uma velhinha e de outro lado outra. À primeira vista eram iguais; vestidas de negro, luzidias, com passos miúdos, magrinhas como duas formigas. Duas formigas quando se encontram param, para conversar – e as velhinhas pararam na esquina. Durante um instante, uma pareceu observar com atenção a outra; e cada uma deve ter chegado à conclusão de que a outra estava irrepreensível, desde os sapatos pretos até o chapéu preto, desde a bolsa até a pintura das faces. (Porque essas velhinhas de Paris muitas vezes se pintam: além de se pintarem, creio que se armam com espartilhos e outros mecanismos capazes de suster na vertical seus minguadíssimos restinhos de carne que talvez de outro modo, libertados de tudo isso, virassem cinza e se espelhassem ao vento dos boulevards). As duas formiguinhas se fiscalizaram um instante, eram ambas tão incrivelmente velhinhas que talvez cada uma apenas quisesse se certificar de que a outra realmente ainda estava viva, ainda existia ao cabo de tantos séculos. Ambas resistiram à crítica – e então como ficaram alegrinhas em se ver! Como ficaram alegrinhas! Parei para vê-las; trocavam palavras gentis com suas vozes de meninas roucas, agitando um pouco, ao falar, as duas mãos, movendo um pouco para a frente os corpos mirradinhos, concordando, agradecendo, sorrindo infinitamente felizes. Então se separaram – e apenas achei um pouco exagerado que, ao se separarem, uma dissesse “au revoir” à outra. Não, elas não se reverão: não, tudo tem um limite, mesmo essas velhinhas dessa rue Hamelin. Certamente cada uma chegou à sua casa, deitou-se assim mesmo toda bem vestidinha, em sua caminha, trançou as mãos sobre o peito murcho – e morreu, afinal.


Do livro 200 crônicas escolhidas. Editora Record.

terça-feira, 4 de abril de 2017

Quando ela chegar


Quando chegar aos quinze anos você vai perceber que os lindos tênis de marca resultaram de meia dúzia de suadas prestações.
Que os pais, tios e outros amigos, nas reuniões de domingo, bebem bebem e repetem as velhas histórias.
Aos quinze anos, além dos hormônios e dos conflitos monstruosos, notarás que a tua é apenas a primeira adolescência. Quarentões, cinquentões, etecétera e tal deparar-se-ão com adolescências tardias. Aquele tio ganhou da esposa uma bateria. Instrumento dos sonhos quando tinha doze, treze anos. A tia fulana foi a uma viagem a Machu Picchu com seu mais novo namorado, vinte anos mais jovem. E tua mãe, para dar o troco à insensibilidade de teu pai e para sublimar o vazio da separação, vai às baladas e se comporta como as garotinhas que estão próximas de frequentar a universidade.
Ora, tudo isso não é lindo?
Quem sabe seja isso o que te aguarda no futuro. E por que não?
Você, com a carga explosiva e oscilante de alegrias e tristezas, amor, ódio e raiva, muitas vezes vai se sentir abandonada na infância e velhice dessa tumultuada fase. Muita água vai evaporar e muita dor vais sentir até reaprender a engatinhar. E chegará a hora em que não haverá o abraço carinhoso de teus progenitores. Não serás mais a fadinha, participarás de um filme de terror, dirás adeus àquela doce criança.
Sim. Terás que pular da cama contrariada. Não tem volta.
Vestirás a armadura de mulher adulta.


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Ouvindo assombrações no bar


"Os caras vêm de outras cidades pra assombrar em Ijuí".
"Fulano tem (ou pega? Não ouvi direito) um monte de mulher, e nenhuma é feia".
"Pensa no carrão daquele ali. Meeee... Dirigi esses dias: bati o ponteirinho em 180km/h fácil fácil!".
"Não ta mole ser putinha em Ijuí. A concorrência tá cada vez maior".

(Notas de um Cadelão - diário de B. B. Palermo)


sexta-feira, 31 de março de 2017

Ainda e sempre - Mario Quintana


O maior desmemoriado que existe é o crente. Ele jamais se cansa de ouvir a mesma história. E sempre esquece os mesmos mandamentos.

Caderno H

quinta-feira, 30 de março de 2017

A garota da moto


Impassível ao movimento da rua, às cores e formas e barulhos... Alheia a tudo, a moto abandonada me faz pensar quem é e onde andará seu Dono.
Eis que surge a proprietária. Uma linda garota.
Como a invejo. Aposto que ela não possui síndrome do pânico, não sua frio, nem perde o sono em véspera de prova. Sim, ela é muito mais ágil e prática do que esta criatura que muito sofre ao não obedecer.
Sonhei um dia ser vegano, etecétera e tal, mas tudo o que consigo é mover a sanfona da barriga: engordar, emagrecer, emagrecer, engordar...
A garota da moto, tal qual a avenida, parece indiferente ao que penso e sinto. Ao que todo mundo sente e pensa. Dane-se o mundo. Ela só quer ir e vir. Sonhar, imaginar, se dar bem, se dar mal... E, mais do que tudo, pilotar, estacionar, ir em frente, sempre e sempre buscar.

(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)


quarta-feira, 29 de março de 2017

Carta - Mario Quintana



Meu caro poeta,
Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola tracada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos, aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: "eu vos trago a verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: "eu te trago a minha verdade." E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos!
Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as disgressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: "O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escreve os seus poemas?" A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.
A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de idéias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.
Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: "Eu não te largarei até que me abençoes". Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técninca dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.
Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.
Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.
Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?

Do livro Caderno H

Conto de dezembro (final) - Paulo Mendes Campos


Desci a escada correndo e entrei na sala de visitas, onde deviam estar os presentes. Nada havia que me lembrasse o banditismo sobre os sapatos. Aí encontrei apenas um jacaré verde, com quatro rodas, que abria a bocarra vermelha quando puxado por um cordão; uma prata novinha de dois mil réis; um caderno com lapiseira; um par de meias de algodão; nozes, castanhas, uma caixinha de passas americanas, duas maçãs embrulhadas em papel de seda. Meti a prata no bolso, espalhei o resto com um chute e corri de novo a meu quarto para buscar o bodoque.
Na rua, já encontrei alguns dos meus companheiros uniformizados de bandidos. De puro pudor, não aceitei emprestado o revólver que o Zeca me ofereceu. Quando até o Duduca apareceu de chapéu de couro e cartucheira, meu despeito foi tanto que dei início ali mesmo aos trabalhos do dia: parti com uma bodocada as vidraças fronteiras da casa de Dona Donana. Nem eu mesmo esperava meu gesto e tivemos de correr para a copa da mangueira.
Assisti, como magoado e desdenhoso espectador, às provações a que se submeteram os componentes da quadrilha: apagar um fósforo com a mão, comer pimenta-malagueta, riscar o pulso com caco de vidro até correr sangue, levar picada de formiga, receber dois tapas na cara sem reclamar. Presenciei tudo roído de inveja.
Desceram da mangueira e saíram em expedição, eu os seguindo a certa distância, com o ar de quem não quer nada, embora não me impedissem de reunir-me ao bando, mesmo sem vestimenta de vaqueiro fora-da-lei. Bandido marginal, franco-atirador, ia eu tomando iniciativas próprias, fazendo o bando correr da repressão quando eles menos esperavam. Minhas pedras partiram vidraças, telhas, feriram galinhas, gatos, cachorros. Quando o Professor Fulgêncio passou na direção da igreja, vimos que levantou a bengala de longe, mal deu com a nossa turma. Esperei que chegasse bem perto, a uma proximidade jamais ousada antes, e proferi o grito fatal: Jaburu! Despencou-se em cima de nós, bigodes frementes, acertando uma bengalada nas pernas do Alfeu. Depois conseguiu agarrar Duduca, que, esperneando como um demônio, pretendia arrancar-lhe os bigodes. Voltamos ameaçadores, mas cautelosos, ordenando ao professor que largasse o menino. Como vociferasse que não o largaria coisa nenhuma, e tentasse dar uma palmada em Duduca, carimbei as pernas do velho com uma bodocada à queima-roupa. Com um grito de dor e ódio, Jaburu soltou o Duduca.
Damos a volta ao quarteirão, pulamos o muro e nos escondemos na chácara de seu Antenor, que nos odiava ainda mais que o professor Jaburu. Ainda há pouco tempo tinha pegado a turma toda no alto duma jabuticabeira, imobilizando-nos lá em cima com o cano da espingarda (tiro de sal ou de chumbo, a dúvida nos dividia). Quando descêramos a qualquer risco, ele tinha conseguido agarrar o Zeca, mantendo-o preso no porão escuro durante a tarde inteira. Juramos vingança, é claro.
Àquela hora da ardente manhã de dezembro, a chácara tinha a tranquilidade madura do paraíso reencontrado. Comemos de todos os frutos proibidos. Carlão tinha uma pontaria mágica. Quando uma fruta repontava alta demais, permitia que cada um de nós jogasse três pedras escolhidas, mão livre ou bodoque. Sentava-se no chão, songamonga, e esperava. Se a fruta continuasse no galho, erguia-se, magro, torto, recurvo, mocorongo, dava uma corridinha desengonçada, o braço traçava um semicírculo sem elegância, a pedra entrava em trajetória sem firmeza, como se fosse lançada por mão de menina: pois essa pedra chocha ia infalivelmente partir o cabinho, e a fruta descia até as mãos de Carlão; jamais deixou manga ou caju se esborrachar no chão.
Vagando pela chácara, encontramos com alegria, no galho mais baixo de uma pitangueira, o filho de seu Antenor. Nôzinho abriu para nós uns olhos arregalados. Lula o puxou pela perna até o chão e ele quis gritar, mas não pôde, porque a palma da mão de Portuga o amordaçou com violência. Quando a gente se achava em maioria não batia em ninguém: era a lei dos bandidos. Mas a lei não impedia que tirássemos a calça de Nôzinho e o arrastasse até o tanque dos patos, onde o lançamos espetacularmente depois de três galeios. Já estávamos transpondo o muro com uma agilidade de anjos quando ouvimos os tiros da espingarda de seu Antenor. Sal ou chumbo?
Na rua, depois de mexer com Bigodinho de Arame (só para ouvir em resposta os incomensuráveis palavrões do bêbado), resolvemos ir nadar na Lagoinha. Duduca e Alfeu foram obrigados a voltar, pois não sabiam pegar cavalo no pasto e galopar em pêlo.
Quando me aproximei de casa, pouco antes da hora do almoço, vi o portão cheio de gente. Fiz meia volta, dobrei a esquina, pulei o muro e subi na jaqueira do vizinho, onde se podia ver parte da reunião sem ser visto. Distingui seu Antenor, o Professor Jaburu, Dona Donana, as irmãs Viegas, a mãe de Duduca, o italiano Sapateiro, seu Afonso Alfaiate, e uma coorte de meninos curiosos. Agitando o guarda-chuva/guarda-sol na frente de todos, vovó dizia:
- Vocês não tem respeito pelo dia de Natal, gente?! Vocês não sabem, seus ignorantes, que o Menino Jesus roubou frutas, quebrou vidraças, fez o diabo?! E tem mais! Meu neto, fiquem vocês sabendo, é um anjo! Hoje é o dia dos inocentes e quem mandou degolar os inocentes foi Herodes! E chega, viu! Arre!

Dando as costas ao grupo estupefato, ela entrou em casa. Lá de cima, pela primeira vez, vi na cara amarrada de vovó um mal disfarçado sorriso.

(Do livro Cisne de feltro - crônicas autobiográficas. Civilização Brasileira)

terça-feira, 28 de março de 2017

Muito mais não querer


Não quero ter a pressa do motoboy.
Não quero suportar a raiva ao saber da traição.
Não quero a lucidez do doente terminal na véspera da revelação.
Não quero estar no lugar da pomba no instante do pulo do gato.
Não quero ser pombo nem gato. Nem porco, ovelha ou galinha.
Respeito os bichos porque não sou bicho.
Não quero ter a resignação do trabalhador.
Não quero ter a certeza do torcedor.
Não quero pensar na morte.
"Não é que eu tenha medo de morrer.
Só não quero estar lá quando isso acontecer" (Woody Allen)

(TIRADAS do Teco, o poeta sonhador)


domingo, 26 de março de 2017

Conto de dezembro - Paulo Mendes Campos


Às cinco horas estávamos todos acomodados na mangueira do quintal do Fausto, menos Duduca, que, não podendo subir sozinho, ficou embaixo, esperando uma ideia.  Duduca ainda não tinha seis anos, e estávamos exatamente resolvendo se ele poderia fazer parte do grupo. Decidimos não: ele era uma criança. Chorando e implorando, Duduca começou a prometer que seria um bom bandido. Duros, não voltamos atrás. Com uma velocidade que nos surpreendeu, começou a catar pedras no chão e a demonstrar que era um bandido sincero e de boa pontaria. Erguendo-se e abrindo um claro na ramagem, Lula ameaçou esborrachar-lhe na cabeça uma portentosa manga-rosa. Duduca, parando de atirar, sorriu mais lindo que o Menino Jesus. Voltamos a conversar, quando um grito dele nos anunciou, já  a uma certa distância, que ia contar tudo para Dona Sofia, mãe de Fausto. A imensa manga-rosa pegou-lhe bem no meio das costas, provocando um gemido fundo e revoltado.
- Vem, sobe, seu porcariazinho.
Portuga estendeu-lhe um pé, pelo qual Duduca se elevou ao primeiro galho da árvore, daí grimpando célere para o mais alto da copa, empoleirando-se eufórico, como se nada tivesse acontecido, sobre um ramo que aguentaria pouco mais que o peso de um passarinho.
Se nossas intenções eram confusas, nosso plano era claro. Naquele ano pediríamos todos coisas iguais a Papai Noel: revólveres, cartucheiras, chapéus de couro, esporas, botas, camisas xadrez. Íamos formar a nossa quadrilha. Papai Noel é o pai da gente, seus bobos, resmungou Duduca lá em cima, com desprezo. Foi um alívio. Se ele acreditasse em Papai Noel, tudo poderia sair errado. Se os nossos pais soubessem que o bando todo estava pedindo equipamento de guerra, não duvidariam de que alguma coisa grave iria acontecer no quarteirão.
Descemos da mangueira quando já era escuro e, entre o tinir de panelas de alumínio, as primeiras vozes maternas chamavam os filhos para jantar. Essas vozes chamavam assim todas as noites, uma, duas, três, dez, vinte vezes, e nunca as mães sabiam onde estávamos, mas sempre as ouvíamos, mesmo a distâncias incríveis, como se ondas nos ligassem a todos os pontos do bairro na noite embalsamada. Éramos oito pestes sadias: Lula, Zeca, Fausto, Alfeu, Portuga, Carlão, eu e Duduca. Naquela noite oito cartas foram elaboradas, passadas a limpo e enviadas ao céu.
Na véspera de natal, pouco antes da ceia, vovó chegou da fazenda. Chegou como sempre chegava, sem avisar, como um pé-de-vento. Vovó me fascinava, mas eu tinha vergonha de enquadrá-la como minha avó, pois não se parecia nada com qualquer outra das avós que conhecia, pessoalmente, de vista ou de ouvir contar. Nunca me trouxe balas, nem me deu dinheiro, nem passou a mão pela minha cabeça. Era magra e de preto como o guarda-chuva/guarda-sol que transportava como se fosse um porrete.
As avós dos outros falavam manso e pouco; a minha falava alto, em torrente. As avós dos outros não diziam palavrões; a minha, se fosse preciso, chamava as coisas pelos nomes mais feios. Mamãe me disse que vovó não tinha papas na língua. Sem saber o que era isso e sem coragem de perguntar, achei que vovó sofria de um defeito grave, o mesmo defeito de que eu e meus companheiros sofríamos: nós não tínhamos papas na língua, possivelmente uns freiozinhos que prendem a língua das pessoas que vão dizer um palavrão. Além disso, as avós dos outros não brigavam na rua; a minha brigava. E, principalmente, as avós dos outros não davam tiros; a minha dava. Nunca vi, mas tinha ouvido as histórias em que vovó manejava garruchas, espingardas e o famoso guarda-chuva. Diziam que era muito politiqueira e não levava desaforo pra casa. Diziam ainda que dava meia boiada para entrar na briga e a outra metade para não sair dela. Até num vigário ela descera o famoso guarda-sol. No final de tudo, sobrecarregando minha confusão, costumava dizer, com um sorriso inteligente, que vovó era uma santa, que mulher boa no fundo estava ali, que criatura mais honrada e justiceira estava para nascer. Quando, para meu espanto, ela partia para a missa todas as manhãs, eu tinha a impressão, pela cara amarrada e pela pressa do passo, que ia à igreja brigar com Deus. Ou pelo menos com o representante de Deus. 
A presença de vovó significava que naquele Natal ninguém falaria nada: ela falaria tudo. E foi isso mesmo, ela falou sem parar, de pastos, partos, ladroagens, bandalheiras, rixas, prefeitos ordinários, vereadores lambões, mulheres sem vergonha na cara, homens que não aguentavam uma gata pelo rabo. Às vezes, tomando fôlego, fazia uma pergunta qualquer a meu pai ou a um dos meus tios, mas, antes de receber a resposta, com o retorno da respiração, prosseguia na descompostura universal. Eu já morria de fome e desespero, quando, esgotada, vovó ordenou que servissem a ceia e nos mandou rezar em voz alta nove ave-marias. Exagerada em tudo. Dormi no tapete pouco depois de comer, mas amanheci em minha cama.

(Do livro Cisne de feltro - crônicas autobiográficas. Ed. Civilização Brasileira)

sábado, 25 de março de 2017

Uma catraca em meu caminho


Houve um tempo em que atropelava, como se fosse ambulância no trânsito.
Driblava ordens, espantava de letra caras feias.
As barreiras eram leves, nada de pedras no caminho, como no poema de Drummond.
Naquele tempo competições eram brinquedos, a vida não deprimia se não passasse de ano.
Lembro. Sim.
O dia era mais claro, o frio mais frio, o quente mais quente. Sabores deixavam uma saudade de lamber os dedos.
O milagre, como tudo que se comia e bebia, era mais natural.
Houve um tempo em que a terra era fixa, o sol era um amigo obediente que não perdia a hora, e pouco se falava de câncer e tal...
Um tempo em que pedia com inocência, sem pagar dízimo e culpas, e, se não recebia, a vida continuava, sem magoar a esta pessoa nem a Deus.
Hoje sinto-me gordo de informações e verdadezinhas.
Ando com  a paciência intoxicada pelo olhar e opinião dos outros.

Se não forçar o olho, não passarei de mais uma catraca, mente e corpo controlados.

Ilustrações do site http://rebloggy.com/post/amor-desenho-arte-carinho-liberdade-tracando-catraca-amor-livre/88045577805


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

sexta-feira, 24 de março de 2017

FRIO - João Antônio


O menino tinha só dez anos. 
Quase meia hora andando. No começo pensou num bonde. Mas lembrou-se do embrulhinho branco e benfeito que trazia, afastou a ideia como se estivesse fazendo uma coisa errada. (Nos bondes, àquela hora da noite, poderiam roubá-lo, sem que percebesse; e depois?… Que é que diria a Paraná?) Andando. Paraná mandara-lhe não ficar observando as vitrinas, os prédios, as coisas. Como fazia nos dias comuns. Ia firme e esforçando-se para não pensar em nada, nem olhar muito para nada. 
— Olho vivo — como dizia Paraná. 
Devagar, muita atenção nos autos, na travessia das ruas. Ele ia pelas beiradas. Quando em quando, assomava um guarda nas esquinas. O seu coraçãozinho se apertava. Na estação da Sorocabana perguntou as horas a uma mulher. Sempre ficam mulheres vagabundeando por ali, à noite. Pelo jardim, pelos escuros da Alameda Cleveland. Ela lhe deu, ele seguiu. Ignorava a exatidão de seus cálculos, mas provavelmente faltava mais ou menos uma hora para chegar. Os bondes passavam.

*** 
Paraná havia chegado com afobação. Nem tirou o chapéu, nem nada. O menino dormia. Chegou-se: — Nêgo… nêgo! 
O menino não queria. Paraná puxou a manta. — Paraná! Que foi? — acordou chateado. 
O homem suado na testa. Barbado. Só explicou que precisava dele. Levar um embrulho às Perdizes. Muito importante. O menino se arrumou fora do colchão furado, meteu o tênis. 
— Embrulho? Pra quem? 
Paraná fez uma coisa que nunca fizera e que ele não entendeu bem. Fê-lo ficar de pé, pousou-lhe as mãos nos ombrinhos. Sentado na beira da cama. Disse bem devagar. 
Ele tinha que ir às Perdizes, encontrar-se lá com Paraná. E não podia perder o embrulhinho. Perguntou-lhe se conhecia uma avenida grande que desce a igreja das Perdizes. Sim. Ele deveria descê-la, três quarteirões. Sim. Tomar cuidado com os guardas. Sim. Lá encontraria um ferro-velho. Sim. Pularia o muro. 
— Lembra? Aquela viração do Diogo? Pois. Mudou de dono. 
Pulasse o muro e esperasse Paraná aparecer. Havia cama, escondida no barracãozinho de zinco. Se não viesse, ele que dormisse. E acordasse cedo para os donos do ferro-velho não perceberem que a gente dormira lá. Se Paraná não aparecesse deveria ir para o Largo da Barra Funda, lá na casa de Nora. Logo pela manhã.
 — O embrulho é sagrado, tá ouvindo? 
Paraná apalpou-o, examinou-lhe a roupinha imunda de graxa de sapato. Tirou-lhe o tênis, cortou dois pedaços de jornal e enfiou-os dentro. Embrulhou uma manta verde. Meteu a mão no bolso, deu-lhe duas de dez. Os olhos brilharam: 
— Se vira com elas. Olha, se eu não baixar lá… 
— Ué, por quê? — o menino interrompeu.

— Nada. O embrulho é nosso, se guenta. Se manca.
Que o abrisse, mas escondesse. Nem Nora poderia mexer. E que se virasse lá na Pompeia, engraxando. O menino teve um estremecimento. Será que os guardas iriam agarrar Paraná? Ouvira contar que a cana é lugar ruim, escuro, onde se apanha muito. Contudo, Paraná era muito vivo, saía-se bem de qualquer galho. Sossegou. Depois, resolveu perguntar se ele apareceria mesmo. 
Paraná fez não ouvir. Falou do muro do ferro-velho. Era alto e difícil. Tomasse cuidado. Abriu a porta imunda: 
— Se arranca. Se vira de acordo, tá? Olho vivo no embrulho. 
E depois, lembrando-se: 
— Mora, tá frio. 
Passou-lhe o embrulho da manta. O menino sentiu as notas no bolso do casacão. Coçou o pixaim: 
— Puxa, como é de noite. Tchau. 
Paraná respondeu com a mão no ar. O menino meteu o embrulhinho branco entre o suspensório e a camisa. Só ficou o embrulho da manta na mão. 
Andou. 

*** 
Pequeno, feio, preto, magrelo. Mas Paraná havia-lhe mostrado todas as virações de um moleque. Por isso ele o adorava. Pena que não saísse da sinuca e da casa daquela Nora, lá na Barra Funda. Tirante o quê, Paraná era branco, ensinara-lhe engraxar, tomar conta de carro, lavar carro, se virar vendendo canudo e coisas dentro da cesta de taquara. E até ver horas. O que ele não entendia eram aqueles relógios que ficam nas estações e nas igrejas — têm números diferentes, atrapalhados. Como os outros, homens e mulheres, podem ver as horas naquelas porcarias? 
Paraná era cobra lá no fim da Rua João Teodoro, no porão onde os dois moravam. Dono da briga. Quando ganhava muito dinheiro se embriagava. Não era bebedeira chata, não. Como a do seu Rubião ou a do Aníbal alfaiate. 
— Nêgo, hoje você não engraxa. 
Compravam pizza e ficavam os dois. Paraná bebia muita cerveja e falava, falava. No quarto. Falava. O menino se ajeitava no caixãozinho de sabão e gostava de ouvir. Coisas saíam da boca do homem: perdi tanto, ganhei, eu saí de casa moleque, briguei, perdi tanto, meu pai era assim, eu tinha um irmão, bote fé, hoje na sinuca eu sou um cobra. Horas, horas. O menino ouvia, depois tirava a roupa de Paraná. Cada um na sua cama. Luz acesa. Um falava, outro ouvia. Já tarde, com muita cerveja na cabeça, é que Paraná se alterava: 
— Se algum te põe a mão… se abre! Qu’eu ajusto ele. 
Paraná às vezes mostrava mesmo a tipos bestas o que era a vida. 
O menino sabia que Paraná topava o jeito dele. E nunca lhe havia tirado dinheiro. 
Só por último é que ele passava os dias fora, girando. Era aquela tal Nora e era a sinuca. A sinuca, então… Paraná entrava pelas noites, varava madrugada, em volta da mesa. Voltava quebrado, voltava que voltava verde, se estirava na cama, dormia quase um dia, e não queria que o menino o acordasse.
Só por último é que andava com fulanos bem vestidos, pastas bonitas debaixo do braço. Mãos finas, anéis, sapatos brilhando. Provavelmente seriam sujeitos importantes, cobras de outros cantos. O menino nunca se metera a perguntar quem fossem, porque davam-lhe grojas1 muito grandes, à toa, à toa. Era só levar um recado, buscar um maço de cigarros… Os homens escorregavam uma de cinco, uma de dez. Uma sopa. Ademais, Paraná não gostava de curioso. Mas eram diferentes de Paraná, e o menino não os topava muito...


Frio, por João Antonio.
Projeto hipermidiático sobre conto "Frio" de João Antonio.
Participou de eventos e recebeu prêmios em diversas categorias de design digital. 

https://www.behance.net/gallery/4517059/Frio-por-Joao-Antonio




O real é muito triste

  Churras na casa de veraneio do Professor. Havia alguns convidados e um deles decidiu que era o momento perfeito para nos deixar a par ...