segunda-feira, 13 de junho de 2016
domingo, 12 de junho de 2016
A doida fez poesia
Cada passo com o salto alto, com a bíblia na mão
direita erguida, a doida foi poeta e não sabia.
Às vezes não sei que faço. Às vezes você não sabe o
que faz. Nem a velhinha, o aposentado, no caixa eletrônico necessitando ajuda
para sacar o pouco dinheiro, às vezes não sabem o que fazem. Nem para onde
devem ir. Às vezes saímos em busca da multidão e não queremos encontrar
ninguém. Às vezes queremos um palco, olhares e ouvidos sintonizados, como aquela
doida na sexta-feira de tarde.
A doida subiu no palanque da praça, diante do prédio
da prefeitura e dos carros e pessoas que circulavam. Fez um
discurso. Compreendi alguns fragmentos: “Chegará o dia...” “Lembrai-vos
dele...”. Usava um vestido longo, coberto por uma capa colorida e calçava salto
alto. Daí a pouco partiu em direção à avenida, a mão direita erguendo um livro,
que parecia ser a bíblia. Agora cantava e sua voz fazia bem aos ouvidos.
Aguardava minha hora no dentista e a performance dessa
mulher, de uns trinta e poucos anos, chamou-me a atenção.
Será que isso tem
algo a ver com a poesia? Considerei que sim, pois ambas fogem dos clichês
cotidianos. A poesia não faz o que costumeiramente fazemos, que é enquadrar uma
cena como essa, definindo-a como normal ou anormal. Talvez a poesia (e a
literatura) sejam primas-irmãs da loucura.
Enquanto a mulher descia pela avenida cantando e com
a mão direita segurando tal livro, diante de uma farmácia um senhor e uma vendedora comentavam:
- Coitada, saiu do prumo.
- É. Tá fora do ponto.
Ao chegar em casa, zonzo com a cena que presenciara,
perguntei a alguns poetas sobre o que é a poesia. Para maiakówsky, a poesia “é
uma viagem ao desconhecido”. Bem,
pensei, faz sentido. Enquanto a doida viaja com naturalidade pelo mundo dos
mistérios, convicta da sua e da nossa redenção, a poesia se espanta ao ver isso
e, com versos, pinta imagens de tal momento. Podemos dizer que a poesia sente-se
em casa quando a realidade gera espanto, isto é, deixa de ser previsível.
Goethe diz que a poesia “fala do infalável”. Sendo
assim, penso que tanto a doida quanto o poeta arriscam-se a mergulhar nas águas
escuras e profundas do mar da linguagem e da realidade.
Para Fernando Pessoa, a poesia é “um fingimento,
deveras”. Poxa, será que a doida não é doida coisa nenhuma? Poderia estar fazendo uma performance
teatral. Bom, de qualquer maneira tal fingimento produz maior espanto,
assombro, do que a vida “normal”, mecanicamente planejada.
Se eu encarar tudo como sendo normal, creio que
jamais serei poeta.
Para finalizar, diz Garcia Lorca que poesia é “lo
impossible hecho possible”. Então é isso. Tanto a louca quanto o poeta vivem
daquele acontecer (cotidiano) que sai do prumo ou do ponto. E se todos nós
muitas vezes não sabemos o que fazemos, o mero espanto convida-nos a ser poetas.
quinta-feira, 9 de junho de 2016
Emoticons
Não quis ser indireto
com ela. Não sei usar truques. Falei do mau tempo e que no meu reino as
condições climáticas são imprevisíveis. Tentei obter pelo menos um Oi na
conversa no facebook. Como seu silêncio me oprimia, escrevi Desculpe. Alguns segundos
depois visualizei sua resposta. Um sinal positivo.
Ela é que foi direta,
poeta. O mundo pipoca emoticons e você ainda vive tagarela. Quem se vira com suas emoções, economiza palavras.
Poeta, você
não tem o direito de pensar que ela tem uma tristeza nervosa. E o mundo significa emoticons, só você não vê. E muitas garotas se atrapalham num oceano de emoções
e não verbalizam aquela insegurança latente. Sossega, poeta, ela deve estar
pensando Como anda solitário esse projeto de adulto infantil.
Ela não se tocou que o
que senti podia ser amor. E amor, hoje em dia, significa tanto. Mas não delire. Você devaneia porque ficou frustrado. Enquanto esperava um coraçãozinho
vermelho apaixonado, ela clicou no emoticon positivo.
Enganos acontecem todo
os dias. Você se convenceu de que os poetas, bem como a fauna e a flora, estão
em extinção. Ridículo. Você apenas não suportou a sinceridade de um emoticon.
(Tiradas do Teco, o
poeta sonhador)
sábado, 4 de junho de 2016
Mantra
Penso nela e tenho uma puta coceira no nariz. A música salta na mente quando respiro devagar. Entoo um mantra e ela começa a desfilar. Respiro fundo relaxo e brotam peitos e bunda de lutadora de Muay thai. Estou perdido é certo por onde vou ela vai. Expia atrás das gôndolas do supermercado com lábios de batom exagerado a me chupar. Sou prisioneiro de um ciclo vital. Mais punheta mais insônia e sua bunda a desfilar. Respiro fundo relaxo e o mantra é Vem! Vem! Vem! Morro de vergonha por ser escravo dessas ideias num frio sábado de manhã. Enquanto isso a humanidade transpira velhos ideais. O marido penetra a esposa que não consegue gozar. Sua mente elabora a lista do supermercado e o presente que vai comprar pro aniversário do afilhado. Preciso arejar meu quarto botar as coisas no lugar. Aprisionar as masturbações e começar a meditar. Mostrar pra todo mundo que sou um cara feliz e que já deixei pra trás a coceira no nariz. É tanta ideia que surge até poderia ser poeta inovador. Mas hoje estou paralisado debaixo do cobertor. A comunidade me censura porque digo palavrão. Mas não consigo ser igual padre num domingo de manhã. Não sou comerciante prefeito ou vereador. Sou apenas xexelento aprendiz de sonhador.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
quinta-feira, 2 de junho de 2016
Do lado de cá
Caminhei pelas ruas da cidade e cães estressados me
xingaram atrás de altas grades. As cercas elétricas e os jardins cinzentos
derrubam meus sonhos e esvaziam pensamentos. A betoneira da construção em frente me sacode no entardecer:
preciso encontrar o que fazer quando crescer!
Em todas as ruas da cidade, cães raivosos me
perseguem atrás de altas grades. Eles do lado de lá, eu do lado de cá. Do lado
de fora não sei quem está.
Meus olhos e mente não mais se iludem: eu e todos os
cães da cidade perdemos a alma e a dignidade!
Depois que decidir o que fazer quando crescer e
agradar todo mundo – ser médico, administrador ou advogado – acatarei a vida
com maior paciência, quando acabar essa adolescência.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
quarta-feira, 1 de junho de 2016
terça-feira, 31 de maio de 2016
Havia no ar um clima
Havia no ar um clima
de rebeldia
e de saudade
do bom humor
de uma neblina densa
que dá lugar ao sol
um clima
de miragem
vai dedetizar
as traças
da politicagem
a vergonha na cara
deu lugar a um clima
de apertos de mão
e rima
um clima de impaciência
com a foda malandragem
clima de quem quer fazer
do cotidiano
necessária
reciclagem.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
domingo, 29 de maio de 2016
Compartilhar
Não vou compartilhar
o tédio da política
quero compartilhar o bom senso
e a paciência com humanos e natureza
mesmo doidinhos
pavorosos
amáveis
alopradinhos
como eu
compartilhar o respeito às flores e árvores
ar e água
minha falta de sono
quando ele é solicitado
compartilhar o teu carinho
que mais parece massagem
compartilhar teu selinho
disfarçado de selfie ousada
compartilhar a dignidade de quem desfruta a vida e
é tolerado por ela
compartilhar tua sensibilidade
como quem sente e beija uma flor
quero compartilhar contigo
a experiência
mais universal
do amor.
(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)
sexta-feira, 20 de maio de 2016
Hell's Angels - Márcia Denser
Os olhos têm aquela expressão vazada de maldade inocente, de suprema condescendência, como dos ídolos talhados em ouro e prata à luz das tochas, indiferentes às cerimônias e ao borbulhar das paixões e sacrifícios humanos; a macia pele do rosto de dezenove anos incompletos transparece e crepita, mas não se deixa tocar e, se o faz, o seu tato é de borracha ou vinil, porque os jovens de dezenove anos incompletos são pequenas monstruosidades portadoras do aleijão psíquico, faltando pedaços como um ombro para se chorar, um olhar atento, o gesto brusco no vácuo do antebraço consolador; os lábios congelados na frase de Peter Pan "eu sou a juventude eterna!”, a mão perpetuamente brandindo a estocada final na passagem do tempo. Um adolescente é sempre monstruoso porque desumano, assim como um deus, assim como um anjo, assim como você, Robi.
Eu o conheci precisamente no dia que completava trinta anos, dirigindo amargurada meu automóvel para o analista. Pensava: o Superman também tem trinta anos — mas o fato é que ele não existe, eu sim, e muito passageiramente, pelo visto. Fisgava-me freqüentemente refletindo sobre a minha transitoriedade e a imutabilidade da natureza. Esse mesmo céu, esse mesmo crepúsculo, essa mesma intensidade de tons avermelhados e laranja que contemplei aos quinze anos, estão agora testemunhando meus trinta, inalterados, imperturbáveis, tão odiosamente imutáveis, mas, se ter consciência disso é o preço da mortalidade, eu prefiro pagá-lo a permanecer nesse estado bestialício de eternidade inanimada como as areias, os corvos, o crepúsculo, as montanhas e o mais.
O que não deixa de ser putamente injusto, prosseguia pensando, quando o ronco de uma motocicleta ao lado do automóvel sobrepujou a música em FM como também os pensamentos acima descritos, além de todo o resto, o que acabou por irritar-me. Havia esquecido que deixara o vestido levantar exibindo as coxas, daí Robi, o motoqueiro, aparecer na minha janela, caninos pingando sangue.
Por segundos, foi como se estivesse me vendo lá fora, do outro lado da juventude, há dez, doze anos atrás, o sorriso entre tímido e malicioso, olhos irrequietos, inseguros, lábios naturalmente úmidos, cabelos emaranhados e elétricos como filamentos de cobre molhado e, Deus meu, que beleza!
Quando desviei o rosto tinha envelhecido o suficiente a ponto de fixar os olhos embaçados nos ponteiros luminosos mas, empurrando a dor para baixo, sete palmos no inconsciente, senti só irritação pela intromissão do rapazinho que perturbava meus pensamentos, minha solidão, minha maturidade, espiando, sem mais nem menos, para dentro do carro, com a mesma sem cerimônia que um bebê escondido debaixo da mesa, espiaria as calcinhas das senhoras.
Devo acrescentar que, dentro de um automóvel, sinto-me tão absolutamente só e segura como no ventre materno e, além do mais, não havia notado as coxas. A bem da verdade, fiz tudo para livrar-me dele, mas o destino conspirou:
Destino I: Motoca seguiu-me até vaga da zona azul e, após observar divertido cerca de dezoito manobras humilhantes e mal sucedidas, ofereceu-se para estacionar o automóvel de madame.
Destino II: Acertou na primeira (não que fosse muito bom, ruim sou eu, especialmente se observada por crianças. Elas me põem nervosa).
Destino III: Obrigada / Você tem telefone? / Não me importa nem um pouco deixar que os homens fa . . . / Estou sem lápis / Mas quantos anos você tem? / Oitenta e cinco. Tem caneta? / Não saberia exatamente o que fazer com você/ (Risinho pilantra, procura pedaço de papel na carteira) / 62-3145. Tchau, tenho hora no médico / Médico? / Analista / Pra que o psiquiatra, garota? / Analista / ? Analista / Demora pra explicar / Eu telefono / Então telefona / Meu nome é Robi / Wood? / O quê? / O meu é Diana. Tchau.
O tempo fluiu (como sempre) . Passaram-se duas semanas. Não paro em casa, mas o garoto tinha um faro diabólico. Sempre me pegava nos intervalos da muda de roupa, banho, jantar e outra escapada. Enquanto isso eu: a) estava sendo perseguida por um cineasta maldito; b) batia cartas comerciais; c) fazia um tratamento dentário intensivo; d) chateava-me com os amigos no bar; e) ou seja, merdava.
Certa tarde, final de expediente no escritório, eis Robi que surge ao lado da minha escrivaninha: vamos sair? Caninos pingando sangue. Sem saber como, ele vencera as estruturas de aço da burocracia e, munido de crachás, credenciais de apoio e um sorriso tentador, me apanhara sobre uma IBM, dois diretores afoitos e quarenta e cinco atentos funcionários entrincheirados na vastidão do expediente. Como se eu não tivesse coisa melhor a fazer no mundo que sair com ele. E não mesmo. Para mim a situação se afiguraria esmagadora, mas Robi era um caçador nato. De toda uma vasta multidão de admiradores, ele se destacara surpreendendo-me na minha própria cidadela. Ele, Robi, o motoqueiro. Era incrível.
— Sente-se, sorri divertida, já termino essa carta. Mas meus dedos tremiam. Cruzar ou não as pernas? Dirigir-me como agora ao meu chefe? E se ele dirigir-se a mim? Teria forças psicológicas para proceder aos processos e pareceres? Então era assim que eu sobrevivia? Aquele garoto de jeans, blusão de couro e botas de montaria, sentado displicente numa das poltronas da sala de espera, transformara-se no meu inquisidor, meu juiz de alçada, meu anjo vermelho, Lúcifer, o decaído, piscando de sua torre flamejante, reduzindo a cinzas e ao ridículo aquele santuário simétrico da burocracia. E não tinha consciência disso. Tanto melhor. Consciência tenho eu, por isso as coisas dão no que dão. Ficam mal paradas. A evidente oposição do garoto ao ambiente produzia-se como um fenômeno natural. Bastaria que ele (ou nós) acordássemos para que o encanto fosse desfeito. E as oposições são tão tentadoras, tão novela das oito, que eu já andava ansiando por uma paixão lamacenta. Na verdade, estava me atirando dentro dela. Com maiô executivo e tudo.
Saímos. No meu carro porque a moto estava quebrada. A princípio eu o fitava como se estivesse observando um formigueiro: com curiosidade cientifica, ócio e nenhuma emoção. Puro divertimento. Dentes um tanto amarelados (feitos de doce de leite, desses com vaquinha no rótulo); olhos que jamais se fixavam no interlocutor, uma aflição mal disfarçada pelo paradeiro que dar às mãos, o crânio ligeiramente achatado, mas ao contrário do achatamento produzido pelo fórceps, bebê Robi parecia ter sido retirado da mamãe com uma forminha de tostex, Deus me perdoe, mas era só um defeitinho à toa; um belo nariz e um bom corte de cabelo, em camadas. Como James Dean, comparei mentalmente. Mas só mentalmente, não verbalizaria a comparação. Talvez ele não conhecesse James Dean. Talvez me achasse velha demais ao compará-lo a alguém antigo como James Dean. Imagino o que pensaria se exumasse coisas como George Raft ou Johnny Weismüller, tango, Tarzã, bolero e Gilda!
Mudando um pouco de assunto, estávamos num bar. Eu bebia vodca com suco de laranja, ele coca-cola. O problema não era propriamente a bebida, mas sim a falta de grana, explicou. A gente acostuma a não beber e também não fumar, vive-se de hamburgers e chiclete, é isso. Classe média alta paulistana, Robi estudava bastante, o colégio era um bocado puxado, tinha papai, mamãe, uma governanta romena (babá neném) e só pensava em duas coisas: garotas e moto. E isso quer dizer que não pensava. Devaneava. Flutuava. Flanava. Fluía. Ele simplesmente existia! A frase de Nelson Rodrigues "toda mulher devia amar um menino de 17 anos" furou-me o ventre e atingiu em cheio o, digamos, coração. Depois havia lido numa revista feminina que o homem atinge sua potência máxima dos 13 aos 22 anos. Robi, com 19, estava na faixa. Ótimo. O problema nessa idade é que se pensa tanto em sexo que na hora de fazer quedamo-nos psicologicamente impotentes, em pânico. A realidade é tão besta comparada à fantasia, àquele ser esplendido que julgamos ser. Dos 13 aos 22 anos fazemos portanto muita ginástica. Física e mental. Mas nunca em sincronia, eis a questão. Nunca estamos onde devíamos estar, nunca estamos em parte alguma. A eterna dicotomia corpo e alma. E falando em dicotomia, a razão dos meus devaneios, no momento, fazia observações, aliás muito interessantes, sobre a sua (dele) conceituação de bem e mal. Para ele não existia. Porque, veja, garota, o que é legal pra mim pode não ser pra você, tudo é relativo, aquele mendigo fodido ali na esquina pode estar muito mais numa boa que nós aqui bebendo, meu pai se acha muito certo quando dá esmolas ou vai à porcaria duma missa, mas o mendigo pega a grana e vai comprar cachaça e o padre vai gastar o dinheiro nas corridas de cavalo e todo mundo então fica muito feliz pensando estar certo, era só não pensar porra nenhuma ou até cometer um crime que ia ter um sujeito feliz, sei lá, vai que o cadáver tivesse inimigos ou você própria morresse de tesão por sangue, tudo é um jogo, garota, o cara dança se não souber jogar; quer dizer, dança como meu pai, puta babaca, ou o padre viciado ou o mendigo da esquina... Menos você Robi, pensei, julgando-os todos. Arquivando-os, classificando-os para poder controlá-los, dominá-los senão você se perde na floresta e começa a chorar de medo, neném. Fazendo voltar o filme do tempo, vi-me a mim própria dizendo aquelas s coisas. Com aquele mesmo ar de rarefeito desprezo: Mas, o coração é um. caçador solitário, sentenciei emocionada, Carson MacCullers tinha razão, e Flanery 0'Connor e todas essas irlandesas e irlandeses passionais, e até Faulkner, Scott Fitzgerald, inclusive você Robi, que nada sabe de nada, também com seu tacape envenenado.
Estávamos na época do Natal. Natal de 1976, amaldiçoado Natal fodido, mais precisamente no dia 22 de dezembro, sexta-feira, e Robi tinha um problema: a irmãzinha de quatro anos, faltava comprar o presente dela. Ele descobrira que Gugui (Maria Augusta) lhe daria umas luvas bacanérrimas de moto, tinham custado uma grana, garotinha genial a Gugui, ele precisava retribuir, saca? Não sabia com quê.
Uma boneca, sugeri irrefletidamente. Ele fez cara de "não dá pra inventar um presente mais criativo?" Fosse então por isso, comecei a defender veementemente a ideia: porque uma boneca voltou a ser um presente criativo, porque é o sonho de toda garotinha, porque hoje em dia tem bonecas geniais, porque era um presente que a Gugui não esqueceria, porque eu ajudaria a escolher e porque e porque. E perguntei quanto ele tinha porque, além de tudo, uma boneca custa uma nota preta. Robi espiou a carteira: uma quina e dois duques. Setecentos, somei e traduzi mentalmente, deve dar.
Mas a tal boneca custou duas quinas que eu tive de ajudar a pagar. Enquanto ele pegava o dinheiro, meio sem jeito, eu argumentava:
- Fica como um presente meu para a Gugui. Sem ela saber, claro. Papai Noel é invisível. E depois, até que eu gostaria de ter uma irmãzinha só pra dar um presente como esse...
Ele me olhou como quem diz "não faz média. Paga e pronto". O.K. Robi; neném, vou ser clara. Para falar a verdade não ligo a mínima pra dinheiro, mas esta noite eu acho que tenho de suborná-lo. A você e à sua juventude. Pensava tudo isso enquanto ele guiava sem destino (a boneca no banco de trás), perdidos no trânsito pesado daquela cidade cheia de luzes, vozes arranhando alto-falantes, sinos transistorizados de Belém, reflexos dourados, homens-sanduíche, lixo, gritos de crianças ensandecidas pela Noite Feliz.
E agora? O olhar dele desceu agudo, filhote de falcão da campina, sobre minhas pernas cruzadas. Senti-me desconfortável. Sugeri comermos. Ele disse está bem e eu olhei bem firme para frente. Não queria ver aqueles olhos, não queria ver aquele rosto, não queria ver aquela expressão especialmente perversa, infantilmente perversa, não queria me sentir velha demais, o outro lado do espelho desse rosto cuja expressão também já fora minha, e sabia que ele pressentia haver algo errado comigo, essa minha pretensa segurança, pretensa maturidade, um vago movimento de mendicância, e que, por exemplo, nem ao menos eu gostava de mim, senão não prosseguiria por tempos imemoriais caçando aves implumes na orla do pântano. Se não estivesse ferida, estaria voando.
Fomos a uma cantina italiana. Ou melhor, eu o levei a uma cantina italiana. Garçons amigos, contas penduradas, etc. A luz avermelhada das velas incidindo sobre o xadrez vermelhinho das toalhas e lambendo-lhe o rosto, Robi ficava com uma expressão solene, de coroinha. Mas não era bem assim, principezinho do ritual de iniciação. Ajeitei-me na cadeira, pedi mais vinho, segurei sua mão debaixo da mesa (ele não admitia demonstrações em público), apalpei suas pernas musculosas debaixo do grosso índigo blue, pedi-lhe para afastar as coxas, mergulhei a mão com segurança, fechei os olhos e pensei: Meu Deus. Retirei a mão, voltei ao vinho. Robi continuava sério, olhando além da janela, além dos queijos, dos salames, dos presuntos que oscilavam sobre sua cabeça. Como quem acompanha o vôo de uma mosca, foi descendo a vista e perguntou o que está olhando? Eu disse nada / me deixa encabulado / porque? / fica me olhando assim / assim como? — mordi os lábios, não confessar nunca! Nada. Não quer mais vinho? Estendeu o copo, enchi, sorrimos. Não gostaria de ir para outro lugar? Os olhos negros baixos no prato foram levantando lentamente, emergindo da sombra com macia ironia, mas o foco não subiu além dos meus lábios. bem. Apague a vela, neném.
Sensivelmente alterada, informei-lhe que guiaria o automóvel. Não disse nada. Sentou ao meu lado num silêncio noturno de animal confiante. As ruas que percorremos estão na minha lembrança como um longo corredor recheado de espessa nebulosa cinza-chumbo varrida por vento escuro. De esquina em esquina, clarões e colares de luzes assaltavam a mente enevoada, mas, nem por isso, desviei-me do trajeto impresso em meu cérebro como uma fita gravada, alheia ao álcool, aos impulsos, à minha dor.
Bati a porta do carro. Robi, do outro lado, hesitava, olhando o pacote, retângulo negro de estrelinhas prateadas sobre o banco traseiro. É só uma boneca, ninguém vai roubar, ela tem destinatário. Encarou-me magoado — "é só uma boneca" — mas eu já não estava pensando mais nisso.
0 quarto tinha um espelho redondo sobre a cama, e foi nele que eu e Robi nos vimos pela primeira vez. Aparentemente não havia nenhuma diferença: uma mulher de estatura média, cabelos castanhos sobre os ombros, rosto oval e pálido. Um homem, também de estatura mediana, cabelos, etc. Nada. Nenhum indício do buraco negro, o corte no tempo. Robi respirou fundo e agarrou-me por trás, grudando-se ao longo do corpo. Eu disse calma e ele me jogou no colchão como uma bola de pingue-pongue. Oscilei umas duas vezes, o colchão gemeu dolorosamente. Deitou sobre mim, tentando desabotoar-me. Está perdendo tempo, eu disse levantando e me despindo. Cabeça pousada nas mãos, Robi sorria, preparando-se para assistir. Muito esperto. Despi-me rapidamente e fiquei olhando bem na cara dele. Pronto, eu disse, agora você. Desviou o rosto. Com a mão esquerda foi tirando o blusão, a direita apagou a luz do teto, permanecendo apenas o foco avermelhado do abajur. Estava deitada, fumando, quando sua massa rija desabou sobre mim. Procurei seus lábios mas ele disse não, estou resfriado. Então esperei. Você gosta assim? perguntou ajeitando-me de bruços. Abraçava-me com palmas e dedos gelados, comprimindo minhas costelas, machucando-as, em vez de acariciá-las. A coisa funciona só da cintura para baixo, como um vibrador elétrico, mas é bom, pensei, deixando-me penetrar rijamente pelas costas, usando, por assim dizer, só uma parte do meu corpo, como se o resto estivesse paralisado, ou morto, como se aqui ninguém suportasse um dramático relacionamento frontal, com beijos, orifícios, acidentes e cicatrizes, com um rosto, um nome, uma biografia. 0 prazer é bom, pensei, costuma ser forte, mesmo assim... Espiei Robi e seu desempenho: cabelos grudados na testa molhada, uma das sobrancelhas arqueadas de perversidade, lábios entreabertos para respirar, braços esticados, mantendo-me firmemente afastada de seu corpo para ver melhor. 0 que me chateia ?esse distanciamento crítico, parece estar consertando a moto — essa máquina de prazer — está olhando a coisa funcionar, como seu próprio coração a bater fora do corpo, as engrenagens da máquina molhadas de suor e gosma orgânica, mais lento, mais acelerado, mais lento, agora rápido, acelere, mais rápido, mais rápido. Pronto. Terminou. Ouvi Robi ofegar. Continuei de costas. Estendi o braço e peguei um cigarro. A respiração agora era regular, pesada. Virei-me para olhá-lo: havia algo de comovedor — sempre há algo de comovedor — num jovem adormecido. Ficam tão desamparados. Braços estirados de sonâmbulo (os mesmos que me empurravam, potentes, há quinze minutos), mãos como dois pássaros gêmeos, aninhados, desvalidos, o sexo recolhido no meio das pernas, envolto em espumas de marés mortas, os músculos faciais desabados, descompostos, oferecendo-se e negando-se ao mesmo tempo, supremamente, a qualquer contato humano, fosse um soco ou um beijo, esse rosto inumano das crianças e dos deuses, esse destruidor florido por sobre quem paira agora essa atmosfera verde de piscina lunar salgada, esse vapor ardente e mortal, bafo primordial de mundos e canteiros de estrelas, de sentimentos em estado gasoso, sóis e planetas.
Bem, pensei, é tarde. Vesti-me rapidamente, em silêncio. Fechei a porta sem ruído. Desci. O saguão deserto. Ao entrar no automóvel,vi o pacote no banco de trás. Essa agora, pensei. Carreguei essa boneca tempo demais, as juntas dos dedos me doem, o barbante áspero imprimiu marcas profundas, roxas, em cruz, nas palmas feridas, o seu peso é insuportável. Reunindo minhas últimas forças, consegui tirá-la do carro e levá-la até a portaria do hotel. Um empregado sonolento atendeu-me:
— É para o rapaz do 35. Acorde-o às seis e quarenta e entregue o presente. Com votos de Feliz Natal, pensei. Virei as costas e saí.
Guiando de volta para casa, eu me intrigava porque havia mandado o sujeito acordá-lo às seis a quarenta, porque especificamente seis e quarenta? Anoto mentalmente: perguntar ao analista.
(Do livro Os cem melhores contos brasileiros do século. Seleção de Ítalo Moriconi. Editora Objetiva).
Eu o conheci precisamente no dia que completava trinta anos, dirigindo amargurada meu automóvel para o analista. Pensava: o Superman também tem trinta anos — mas o fato é que ele não existe, eu sim, e muito passageiramente, pelo visto. Fisgava-me freqüentemente refletindo sobre a minha transitoriedade e a imutabilidade da natureza. Esse mesmo céu, esse mesmo crepúsculo, essa mesma intensidade de tons avermelhados e laranja que contemplei aos quinze anos, estão agora testemunhando meus trinta, inalterados, imperturbáveis, tão odiosamente imutáveis, mas, se ter consciência disso é o preço da mortalidade, eu prefiro pagá-lo a permanecer nesse estado bestialício de eternidade inanimada como as areias, os corvos, o crepúsculo, as montanhas e o mais.
O que não deixa de ser putamente injusto, prosseguia pensando, quando o ronco de uma motocicleta ao lado do automóvel sobrepujou a música em FM como também os pensamentos acima descritos, além de todo o resto, o que acabou por irritar-me. Havia esquecido que deixara o vestido levantar exibindo as coxas, daí Robi, o motoqueiro, aparecer na minha janela, caninos pingando sangue.
Por segundos, foi como se estivesse me vendo lá fora, do outro lado da juventude, há dez, doze anos atrás, o sorriso entre tímido e malicioso, olhos irrequietos, inseguros, lábios naturalmente úmidos, cabelos emaranhados e elétricos como filamentos de cobre molhado e, Deus meu, que beleza!
Quando desviei o rosto tinha envelhecido o suficiente a ponto de fixar os olhos embaçados nos ponteiros luminosos mas, empurrando a dor para baixo, sete palmos no inconsciente, senti só irritação pela intromissão do rapazinho que perturbava meus pensamentos, minha solidão, minha maturidade, espiando, sem mais nem menos, para dentro do carro, com a mesma sem cerimônia que um bebê escondido debaixo da mesa, espiaria as calcinhas das senhoras.
Devo acrescentar que, dentro de um automóvel, sinto-me tão absolutamente só e segura como no ventre materno e, além do mais, não havia notado as coxas. A bem da verdade, fiz tudo para livrar-me dele, mas o destino conspirou:
Destino I: Motoca seguiu-me até vaga da zona azul e, após observar divertido cerca de dezoito manobras humilhantes e mal sucedidas, ofereceu-se para estacionar o automóvel de madame.
Destino II: Acertou na primeira (não que fosse muito bom, ruim sou eu, especialmente se observada por crianças. Elas me põem nervosa).
Destino III: Obrigada / Você tem telefone? / Não me importa nem um pouco deixar que os homens fa . . . / Estou sem lápis / Mas quantos anos você tem? / Oitenta e cinco. Tem caneta? / Não saberia exatamente o que fazer com você/ (Risinho pilantra, procura pedaço de papel na carteira) / 62-3145. Tchau, tenho hora no médico / Médico? / Analista / Pra que o psiquiatra, garota? / Analista / ? Analista / Demora pra explicar / Eu telefono / Então telefona / Meu nome é Robi / Wood? / O quê? / O meu é Diana. Tchau.
O tempo fluiu (como sempre) . Passaram-se duas semanas. Não paro em casa, mas o garoto tinha um faro diabólico. Sempre me pegava nos intervalos da muda de roupa, banho, jantar e outra escapada. Enquanto isso eu: a) estava sendo perseguida por um cineasta maldito; b) batia cartas comerciais; c) fazia um tratamento dentário intensivo; d) chateava-me com os amigos no bar; e) ou seja, merdava.
Certa tarde, final de expediente no escritório, eis Robi que surge ao lado da minha escrivaninha: vamos sair? Caninos pingando sangue. Sem saber como, ele vencera as estruturas de aço da burocracia e, munido de crachás, credenciais de apoio e um sorriso tentador, me apanhara sobre uma IBM, dois diretores afoitos e quarenta e cinco atentos funcionários entrincheirados na vastidão do expediente. Como se eu não tivesse coisa melhor a fazer no mundo que sair com ele. E não mesmo. Para mim a situação se afiguraria esmagadora, mas Robi era um caçador nato. De toda uma vasta multidão de admiradores, ele se destacara surpreendendo-me na minha própria cidadela. Ele, Robi, o motoqueiro. Era incrível.
— Sente-se, sorri divertida, já termino essa carta. Mas meus dedos tremiam. Cruzar ou não as pernas? Dirigir-me como agora ao meu chefe? E se ele dirigir-se a mim? Teria forças psicológicas para proceder aos processos e pareceres? Então era assim que eu sobrevivia? Aquele garoto de jeans, blusão de couro e botas de montaria, sentado displicente numa das poltronas da sala de espera, transformara-se no meu inquisidor, meu juiz de alçada, meu anjo vermelho, Lúcifer, o decaído, piscando de sua torre flamejante, reduzindo a cinzas e ao ridículo aquele santuário simétrico da burocracia. E não tinha consciência disso. Tanto melhor. Consciência tenho eu, por isso as coisas dão no que dão. Ficam mal paradas. A evidente oposição do garoto ao ambiente produzia-se como um fenômeno natural. Bastaria que ele (ou nós) acordássemos para que o encanto fosse desfeito. E as oposições são tão tentadoras, tão novela das oito, que eu já andava ansiando por uma paixão lamacenta. Na verdade, estava me atirando dentro dela. Com maiô executivo e tudo.
Saímos. No meu carro porque a moto estava quebrada. A princípio eu o fitava como se estivesse observando um formigueiro: com curiosidade cientifica, ócio e nenhuma emoção. Puro divertimento. Dentes um tanto amarelados (feitos de doce de leite, desses com vaquinha no rótulo); olhos que jamais se fixavam no interlocutor, uma aflição mal disfarçada pelo paradeiro que dar às mãos, o crânio ligeiramente achatado, mas ao contrário do achatamento produzido pelo fórceps, bebê Robi parecia ter sido retirado da mamãe com uma forminha de tostex, Deus me perdoe, mas era só um defeitinho à toa; um belo nariz e um bom corte de cabelo, em camadas. Como James Dean, comparei mentalmente. Mas só mentalmente, não verbalizaria a comparação. Talvez ele não conhecesse James Dean. Talvez me achasse velha demais ao compará-lo a alguém antigo como James Dean. Imagino o que pensaria se exumasse coisas como George Raft ou Johnny Weismüller, tango, Tarzã, bolero e Gilda!
Mudando um pouco de assunto, estávamos num bar. Eu bebia vodca com suco de laranja, ele coca-cola. O problema não era propriamente a bebida, mas sim a falta de grana, explicou. A gente acostuma a não beber e também não fumar, vive-se de hamburgers e chiclete, é isso. Classe média alta paulistana, Robi estudava bastante, o colégio era um bocado puxado, tinha papai, mamãe, uma governanta romena (babá neném) e só pensava em duas coisas: garotas e moto. E isso quer dizer que não pensava. Devaneava. Flutuava. Flanava. Fluía. Ele simplesmente existia! A frase de Nelson Rodrigues "toda mulher devia amar um menino de 17 anos" furou-me o ventre e atingiu em cheio o, digamos, coração. Depois havia lido numa revista feminina que o homem atinge sua potência máxima dos 13 aos 22 anos. Robi, com 19, estava na faixa. Ótimo. O problema nessa idade é que se pensa tanto em sexo que na hora de fazer quedamo-nos psicologicamente impotentes, em pânico. A realidade é tão besta comparada à fantasia, àquele ser esplendido que julgamos ser. Dos 13 aos 22 anos fazemos portanto muita ginástica. Física e mental. Mas nunca em sincronia, eis a questão. Nunca estamos onde devíamos estar, nunca estamos em parte alguma. A eterna dicotomia corpo e alma. E falando em dicotomia, a razão dos meus devaneios, no momento, fazia observações, aliás muito interessantes, sobre a sua (dele) conceituação de bem e mal. Para ele não existia. Porque, veja, garota, o que é legal pra mim pode não ser pra você, tudo é relativo, aquele mendigo fodido ali na esquina pode estar muito mais numa boa que nós aqui bebendo, meu pai se acha muito certo quando dá esmolas ou vai à porcaria duma missa, mas o mendigo pega a grana e vai comprar cachaça e o padre vai gastar o dinheiro nas corridas de cavalo e todo mundo então fica muito feliz pensando estar certo, era só não pensar porra nenhuma ou até cometer um crime que ia ter um sujeito feliz, sei lá, vai que o cadáver tivesse inimigos ou você própria morresse de tesão por sangue, tudo é um jogo, garota, o cara dança se não souber jogar; quer dizer, dança como meu pai, puta babaca, ou o padre viciado ou o mendigo da esquina... Menos você Robi, pensei, julgando-os todos. Arquivando-os, classificando-os para poder controlá-los, dominá-los senão você se perde na floresta e começa a chorar de medo, neném. Fazendo voltar o filme do tempo, vi-me a mim própria dizendo aquelas s coisas. Com aquele mesmo ar de rarefeito desprezo: Mas, o coração é um. caçador solitário, sentenciei emocionada, Carson MacCullers tinha razão, e Flanery 0'Connor e todas essas irlandesas e irlandeses passionais, e até Faulkner, Scott Fitzgerald, inclusive você Robi, que nada sabe de nada, também com seu tacape envenenado.
Estávamos na época do Natal. Natal de 1976, amaldiçoado Natal fodido, mais precisamente no dia 22 de dezembro, sexta-feira, e Robi tinha um problema: a irmãzinha de quatro anos, faltava comprar o presente dela. Ele descobrira que Gugui (Maria Augusta) lhe daria umas luvas bacanérrimas de moto, tinham custado uma grana, garotinha genial a Gugui, ele precisava retribuir, saca? Não sabia com quê.
Uma boneca, sugeri irrefletidamente. Ele fez cara de "não dá pra inventar um presente mais criativo?" Fosse então por isso, comecei a defender veementemente a ideia: porque uma boneca voltou a ser um presente criativo, porque é o sonho de toda garotinha, porque hoje em dia tem bonecas geniais, porque era um presente que a Gugui não esqueceria, porque eu ajudaria a escolher e porque e porque. E perguntei quanto ele tinha porque, além de tudo, uma boneca custa uma nota preta. Robi espiou a carteira: uma quina e dois duques. Setecentos, somei e traduzi mentalmente, deve dar.
Mas a tal boneca custou duas quinas que eu tive de ajudar a pagar. Enquanto ele pegava o dinheiro, meio sem jeito, eu argumentava:
- Fica como um presente meu para a Gugui. Sem ela saber, claro. Papai Noel é invisível. E depois, até que eu gostaria de ter uma irmãzinha só pra dar um presente como esse...
Ele me olhou como quem diz "não faz média. Paga e pronto". O.K. Robi; neném, vou ser clara. Para falar a verdade não ligo a mínima pra dinheiro, mas esta noite eu acho que tenho de suborná-lo. A você e à sua juventude. Pensava tudo isso enquanto ele guiava sem destino (a boneca no banco de trás), perdidos no trânsito pesado daquela cidade cheia de luzes, vozes arranhando alto-falantes, sinos transistorizados de Belém, reflexos dourados, homens-sanduíche, lixo, gritos de crianças ensandecidas pela Noite Feliz.
E agora? O olhar dele desceu agudo, filhote de falcão da campina, sobre minhas pernas cruzadas. Senti-me desconfortável. Sugeri comermos. Ele disse está bem e eu olhei bem firme para frente. Não queria ver aqueles olhos, não queria ver aquele rosto, não queria ver aquela expressão especialmente perversa, infantilmente perversa, não queria me sentir velha demais, o outro lado do espelho desse rosto cuja expressão também já fora minha, e sabia que ele pressentia haver algo errado comigo, essa minha pretensa segurança, pretensa maturidade, um vago movimento de mendicância, e que, por exemplo, nem ao menos eu gostava de mim, senão não prosseguiria por tempos imemoriais caçando aves implumes na orla do pântano. Se não estivesse ferida, estaria voando.
Fomos a uma cantina italiana. Ou melhor, eu o levei a uma cantina italiana. Garçons amigos, contas penduradas, etc. A luz avermelhada das velas incidindo sobre o xadrez vermelhinho das toalhas e lambendo-lhe o rosto, Robi ficava com uma expressão solene, de coroinha. Mas não era bem assim, principezinho do ritual de iniciação. Ajeitei-me na cadeira, pedi mais vinho, segurei sua mão debaixo da mesa (ele não admitia demonstrações em público), apalpei suas pernas musculosas debaixo do grosso índigo blue, pedi-lhe para afastar as coxas, mergulhei a mão com segurança, fechei os olhos e pensei: Meu Deus. Retirei a mão, voltei ao vinho. Robi continuava sério, olhando além da janela, além dos queijos, dos salames, dos presuntos que oscilavam sobre sua cabeça. Como quem acompanha o vôo de uma mosca, foi descendo a vista e perguntou o que está olhando? Eu disse nada / me deixa encabulado / porque? / fica me olhando assim / assim como? — mordi os lábios, não confessar nunca! Nada. Não quer mais vinho? Estendeu o copo, enchi, sorrimos. Não gostaria de ir para outro lugar? Os olhos negros baixos no prato foram levantando lentamente, emergindo da sombra com macia ironia, mas o foco não subiu além dos meus lábios. bem. Apague a vela, neném.
Sensivelmente alterada, informei-lhe que guiaria o automóvel. Não disse nada. Sentou ao meu lado num silêncio noturno de animal confiante. As ruas que percorremos estão na minha lembrança como um longo corredor recheado de espessa nebulosa cinza-chumbo varrida por vento escuro. De esquina em esquina, clarões e colares de luzes assaltavam a mente enevoada, mas, nem por isso, desviei-me do trajeto impresso em meu cérebro como uma fita gravada, alheia ao álcool, aos impulsos, à minha dor.
Bati a porta do carro. Robi, do outro lado, hesitava, olhando o pacote, retângulo negro de estrelinhas prateadas sobre o banco traseiro. É só uma boneca, ninguém vai roubar, ela tem destinatário. Encarou-me magoado — "é só uma boneca" — mas eu já não estava pensando mais nisso.
0 quarto tinha um espelho redondo sobre a cama, e foi nele que eu e Robi nos vimos pela primeira vez. Aparentemente não havia nenhuma diferença: uma mulher de estatura média, cabelos castanhos sobre os ombros, rosto oval e pálido. Um homem, também de estatura mediana, cabelos, etc. Nada. Nenhum indício do buraco negro, o corte no tempo. Robi respirou fundo e agarrou-me por trás, grudando-se ao longo do corpo. Eu disse calma e ele me jogou no colchão como uma bola de pingue-pongue. Oscilei umas duas vezes, o colchão gemeu dolorosamente. Deitou sobre mim, tentando desabotoar-me. Está perdendo tempo, eu disse levantando e me despindo. Cabeça pousada nas mãos, Robi sorria, preparando-se para assistir. Muito esperto. Despi-me rapidamente e fiquei olhando bem na cara dele. Pronto, eu disse, agora você. Desviou o rosto. Com a mão esquerda foi tirando o blusão, a direita apagou a luz do teto, permanecendo apenas o foco avermelhado do abajur. Estava deitada, fumando, quando sua massa rija desabou sobre mim. Procurei seus lábios mas ele disse não, estou resfriado. Então esperei. Você gosta assim? perguntou ajeitando-me de bruços. Abraçava-me com palmas e dedos gelados, comprimindo minhas costelas, machucando-as, em vez de acariciá-las. A coisa funciona só da cintura para baixo, como um vibrador elétrico, mas é bom, pensei, deixando-me penetrar rijamente pelas costas, usando, por assim dizer, só uma parte do meu corpo, como se o resto estivesse paralisado, ou morto, como se aqui ninguém suportasse um dramático relacionamento frontal, com beijos, orifícios, acidentes e cicatrizes, com um rosto, um nome, uma biografia. 0 prazer é bom, pensei, costuma ser forte, mesmo assim... Espiei Robi e seu desempenho: cabelos grudados na testa molhada, uma das sobrancelhas arqueadas de perversidade, lábios entreabertos para respirar, braços esticados, mantendo-me firmemente afastada de seu corpo para ver melhor. 0 que me chateia ?esse distanciamento crítico, parece estar consertando a moto — essa máquina de prazer — está olhando a coisa funcionar, como seu próprio coração a bater fora do corpo, as engrenagens da máquina molhadas de suor e gosma orgânica, mais lento, mais acelerado, mais lento, agora rápido, acelere, mais rápido, mais rápido. Pronto. Terminou. Ouvi Robi ofegar. Continuei de costas. Estendi o braço e peguei um cigarro. A respiração agora era regular, pesada. Virei-me para olhá-lo: havia algo de comovedor — sempre há algo de comovedor — num jovem adormecido. Ficam tão desamparados. Braços estirados de sonâmbulo (os mesmos que me empurravam, potentes, há quinze minutos), mãos como dois pássaros gêmeos, aninhados, desvalidos, o sexo recolhido no meio das pernas, envolto em espumas de marés mortas, os músculos faciais desabados, descompostos, oferecendo-se e negando-se ao mesmo tempo, supremamente, a qualquer contato humano, fosse um soco ou um beijo, esse rosto inumano das crianças e dos deuses, esse destruidor florido por sobre quem paira agora essa atmosfera verde de piscina lunar salgada, esse vapor ardente e mortal, bafo primordial de mundos e canteiros de estrelas, de sentimentos em estado gasoso, sóis e planetas.
Bem, pensei, é tarde. Vesti-me rapidamente, em silêncio. Fechei a porta sem ruído. Desci. O saguão deserto. Ao entrar no automóvel,vi o pacote no banco de trás. Essa agora, pensei. Carreguei essa boneca tempo demais, as juntas dos dedos me doem, o barbante áspero imprimiu marcas profundas, roxas, em cruz, nas palmas feridas, o seu peso é insuportável. Reunindo minhas últimas forças, consegui tirá-la do carro e levá-la até a portaria do hotel. Um empregado sonolento atendeu-me:
— É para o rapaz do 35. Acorde-o às seis e quarenta e entregue o presente. Com votos de Feliz Natal, pensei. Virei as costas e saí.
Guiando de volta para casa, eu me intrigava porque havia mandado o sujeito acordá-lo às seis a quarenta, porque especificamente seis e quarenta? Anoto mentalmente: perguntar ao analista.
(Do livro Os cem melhores contos brasileiros do século. Seleção de Ítalo Moriconi. Editora Objetiva).
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