sexta-feira, 5 de abril de 2013

Cândido

Ela disse que não, mas eu pensei que conhecia sua beleza interior quando a desfrutasse nua, como veio ao mundo.
Eu era mais um ingênuo, um cândido, que acreditava em príncipes e fadas pornográficos.
Ao superar a ingenuidade, enumerei uma lista de "verdades", que vocês podem chamar de "meias verdades", ou "meias verdades do momento".
- Para conhecer sua beleza interior, não pode ser na pressa, na afobação.
- Para conhecer suas virtudes e defeitos, é preciso mais do que um dia, uma "ficada". Precisamos alongar o namoro, fazer o tema de casa.
- Para tê-la em sua plenitude, em vez de ficar na pegação, é preciso cheirá-la como flor, tocá-la suavemente, como a uma tela do tablet ou celular, uma tecla de cada vez.
- Para ser um amante íntegro, não seguir o senso comum dos amigos, de contar vantagens sobre o seu (próprio) amor. Não sei explicar, mas acho que tem a ver com amor próprio.
- Para ser um amante bem-sucedido, cuide para que o sexo mantenha certa distância da cabeça. Muito? Pouco? Quanto, eu não sei. Nesse assunto acho que ainda sou bem cândido!

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Minhas bunda - Mario Prata

A parte carnosa do corpo formada pelas nádegas.

A principal diferença entre a revista Playboy americana e a Playboy brasileira é a língua? Errado. É a bunda.
Na americana, temos seios, úberes, verdadeiras tetas que mal cabem nas páginas duplas. Na nossa, temos bundas. Bundinhas de penugem loira, bundinhas de contorno marrom, até bundinhas cor-de-rosa.
Americano não gosta de bunda? Eu diria que americano não conhece a bunda. Aliás, no mundo inteiro, não existem bumbuns como os nossos, ou melhor, como as nossas. A bunda é um produto interno e bruto tipica¬mente brasileiro. Às vezes, a revista americana faz edições especiais sobre seios. Aqui, fazemos verdadeiros compêndios sobre (e sob) bundinhas. Narcisamente, o brasileiro adora a própria bunda.
Mas de onde veio a nossa bunda? Não das alvas portuguesas, muito menos das esparramadas italianas e, menos ainda, das desbundadas japone¬sas. Muito menos das amassadas índias. Sempre me intrigou esta tanajúrica pergunta. Quem arrebitou com pincel de ouro, com formão de prata, a bundinha brasileira?
Tinha essa dúvida até conhecer Cabo Verde, um país de dez vulcâni¬cas ilhas na costa oeste da África. Quase fora do mapa. Foi lá que tudo começou.
O país tem, atualmente, mais ou menos, 300 mil bundas ambulan¬temente espalhadas pelo arquipélago. Bundas livres de Portugal desde 1975. E a bunda brasileira, antes de chegar aqui, passou por lá, vindo do continente africano. Ou seja, foi lá que inventaram a fórmula, lúdico, o molde mais que esteticamente perfeito. A bunda politicamente correta. Tenho certeza dessa afirmação e vou tentar provar.
Foi em Cabo Verde que surgiram as primeiras mulatas. Apesar de a palavra mulata ter origem espanhola, o conteúdo foi uma criação dos ingleses, holandeses e dos franceses que por lá passavam desde o começo do século XVI, com seus navios negreiros trazendo escravos para o Brasil. Lá era o point no meio do Atlântico. E lá os brancos deixaram o sêmen (do latim sêmen, que significa semente) para a fabricação das mulatas com suas respectivas bundas. Gostavam tanto das cabo-verdianas que Sir Francis Drike, pirata-mor daqueles tempos, chegou até a saquear o país em 1590 a tal Companhia das Índias Ocidentais. O saque durou sete anos e milhares de sementes foram im(plantadas). Tinham sacado a bunda.
Esta mistura deu a cor atual das nativas. Não são negras como vizinhas senegalesas, são marrons. Ou castanhas, como preferem. E lindas. As cabo-verdianas são lindas. Uma espécie de Sônia Braga bem queimada. Olhos claros como dos piratas bisavós. Uma porção de Patrícia França.
Fica difícil descrever a bunda das mulheres de Cabo Verde. Tem que ver para crer. São Tome não acreditaria em seus próprios olhos. Mas olhando uma delas passar, você percebe que ela está no doce balanço a caminho do mar (do Brasil).
Um dia estava com um amigo português, o cineasta Paulo de Souza, especialista em cinema africano, numa praça de Mindelo, a capital intelectual do país e das bundas (a capital do país chama-se Praia, pode?). Eis que passa na nossa frente uma bunda vestida com uma minissaia verde. Justíssima. Não tivemos dúvida. Seguimos a bunda por vários quarteirões em homenageante silêncio, até que ela entrou numa casa e nós voltamos para a praça sem a necessidade de dizermos nenhuma palavra um para o outro. Era uma obra-prima da natureza aquela menina. De noite, lá pelas duas da manhã, estou eu no meu hotel a dormir e batem na porta. Era o Paulo que havia ido a uma boate. Estava trêmulo, suado:
— Vem, vem, lembra daquela bunda?
— Estava sonhando com ela.
— Veste, veste! Ela está na boate. A bunda está dançando na boate. E lá fomos nós dois para a boate. Não só a "nossa" bunda de verde (agora num fulgurante amarelo) dançava, mas uma infinidade delas, espetáculo.
Só que, no princípio, era o verbo e não a carne e, naquele tempo, na época do tráfico dos escravos, quando surgia a bunda no meio do Atlântico, qual ilha vulcânica, a bunda ainda não se chamava bunda. Como, aliás, até hoje em Portugal não se chama. Bunda só no Brasil. Em Portugal a bunda é um cu.
Mas foi na mesma África que fomos buscar a sonoríssima e mais do que adequada palavra bunda. Diz a lenda que a origem seria das danças dos africanos. Ficavam as mulheres dançando no meio e o crioléu em volta batendo tambor e fazendo som com a boca: bun-da!,bun-da! Mas isso é lenda. Na verdade, a palavra veio da língua quimbundo (kimbundu), da palavra bunda (mbunda, tubundas, elebunda?), lá para os lados de Angola, local onde viviam os bantos, raça negra sul-africana à qual pertenciam, en¬tre outros, os negros escravos chamados no Brasil angolas, cabindas, benguelas, congos, moçambiques.
Nós, brasileiros e cabo-verdianos, nascemos com a bunda virada para a lua.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Em busca de mim - Andiara Pereira Nunes

Onde eu poderia me encontrar?
Quase nada sei sobre mim...
Acho que me perdi em alguma cidade grande,
ou então
o vento me carregou.
Será que eu não saí voando feito pássaro?!
Quase nada sei sobre mim...
Acho que evaporei como as águas dos rios.
Talvez
eu esteja no fundo de algum baú,
esperando para ser descoberta.
Outro dia,
pensei que havia me encontrado.
Que nada!
Encontrei foi uma fotografia em preto e branco
de uma garota parecida comigo.
Quase nada sei sobre mim...
Será que não fiquei presa no fundo do mar?
Ou então
peguei carona em algum cometa!
Quase nada sei sobre mim...
Só espero
que eu me encontre antes que alguém me roube.


Do livro: "Crianças do Rio Grande Escrevendo Histórias" - 1996

sábado, 30 de março de 2013

Tragédia concretista - Luís Martins


O poeta concretista acordou inspirado. Sonhara a noite toda com a namorada. E pensou: lábio, lábia. O lábio em que pensou era o da namorada, a lábia era a própria. Em todo o caso, na pior das hipóteses, já tinha um bom começo de poema. Todavia, cada vez mais obcecado pela lembrança daqueles lábios, achou que podia aproveitar a sua lábia e, provisoriamente desinteressado da poesia pura, resolveu telefonar à criatura amada, na esperança de maiores intimidades e vantagens. Até os poetas concretistas podem ser homens práticos.

Como, porém, transmitir a mensagem amorosa em termos vulgares, de toda a gente, se era um poeta concretista e nisto justamente residia (segundo julgava) todo o seu prestígio aos olhos das moças? Tinha que fazer um poema. A moça chamava-se Ema, era fácil. Discou. Assim que ouviu, do outro lado da linha, o “alô” sonolento do objeto amado, foi logo disparando:
- Ema. Amo. Amas?
- Como? – surpreendeu-se a jovem – Quem fala?
- Falo. Falas. Falemos.
A pequena, julgando-se vítima de um “trote”, ficou por conta e, como era muito bem-educada (essas meninas de hoje!), desligou violentamente, não antes de perpetrar, sem querer, um precioso “hai-kai” concretista:
- Basta, besta!
O poeta ficou fulminado. Não podia, não podia compreender. Sofreu, que também os concretistas sofrem; estava apaixonado, que também os concretistas se apaixonam, quando são jovens – e todo poeta concretista é jovem. Não tinha lábia. Não teria os lábios. Por que não viajar para a Líbia? Desaparecer, sumir… Sentia-se profundamente desgraçado, inútil. Um triste. Um traste.
O consolo possível era a poesia. Sentou e escreveu:
“Bela. Bola. Bala.”
O que, traduzindo em vulgar, vem a dar esta banalidade: “A minha bela, não me dá bola. Isto acaba em bala.”
Não acabou, naturalmente. Tomou uma bebedeira e tratou de arranjar outra namorada, a quem dedicou um soneto parnasiano. Foi a conta. Casaram-se e são muito falazes… Oh! Perdão: felizes.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Biruta - Lygia Fagundes Telles



Alonso foi para o quintal carregando uma bacia cheia de louça suja. Andava cm dificuldade, tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus bracinhos finos.
  - Biruta, eh, Biruta! - chamou sem se voltar.
O cachorro saiu de dentro da garagem. Era pequenino e branco, uma orelha em pé e a outra completamente caída.
  - Sente-se aí, Biruta, que vamos ter uma conversinha - disse Alonso pousando a bacia ao lado do tanque. Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os pratos.
  Biruta sentou-se muito atento, inclinando interrogativamente a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda, como se quisesse apreender melhor as palavras do seu dono. A orelha caída ergueu-se um pouco, enquanto a outra empinou, aguda e ereta. Entre elas, formaram-se dois vincos, próprios de uma testa franzida do esforço de meditação.
  - Leduína disse que você entrou no quarto dela - começou o menino num tom brando. - E subiu em cima da cama e focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou lá. A carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira nova, Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga agora o que é que ia acontecer se ela fosse uma carteira nova!? Leduína te dava uma surra e eu não podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina, lembra? Você se lembra muito bem, sim senhor, não precisa fazer essa cara de inocente!...
  Biruta deitou-se, enfiou o focinho entre as patase baixou a orelha. Agora, ambas as orelhas estavam no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu olhar interrogativo parecia perguntar:
"Mas o que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro de nada..."
  - Lembra sim senhor! E não adianta ficar aí com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! - repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos. Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha as mãos de velho
  - Alonso, anda ligeiro com essa louça! - gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da cozinha. - Já está escurecendo, tenho que sair!
  - Já vou indo - respondeu o menino enquanto removia a água da boca. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por que? Por que razão não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona Zulu já andava impaciente. Leduína também. Biruta fez isso, Biruta fez aquilo...
  Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os pastéis, "Alonso, você não viu onde deixei a carne?" Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro num velho colchão metido num ângulo de parede. Biruta estava lá deitado bem em cima do travesseiro, com a posta de carne entre as patas, comendo tranquilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu que a carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, "o que é que eu faço, dona Zulu?"
  Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão
  - Está aqui Leduína.
  - Mas falta um pedaço!
  - Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.
  - Mas por que você escondeu o resto? - perguntou a patroa, aproximando-se
  - Por que fiquei com medo.
Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar mais.
  - Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãzinho!
  Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. "Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal."
  Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.
  Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de dona Zulu?
  - Hem, Biruta?! E se fosse a carteira de dona Zulu?
  Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.
  - Por que você não arrebenta minhas coisas? - prosseguiu o menino elevado a voz. - Você sabe que tem todas as minhas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal, está acabado. você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!...
  Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida, calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.
  Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças?
  Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. "Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse, Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pêlo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!"
  - Alonso! - Era a voz de Leduína. - Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase noite, menino.
  Alonso ergueu-se afobadamente. Mas antes de pegar a bacia meteu a mão na água e espargiu-a no focinho do cachorro.
  - Chega de dormir, seu vagabundo!
  Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas dianteiras, num longo espreguiçamento.
  O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe os tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu avental.
  - Aproveita, seu bandidinho! - riu-se Alonso. - Aproveita que eu estou com a mão ocupada, aproveita!
  Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas Biruta esquivou-se, latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.
  - Aí, Leduína que o Biruta judiou de mim!...
  A empregada pôs-se guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola com batatas:
  - Olhaí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.
  - Mas só eu vou jantar? - surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.
  - Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.
  Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olhinhos brilharam no escuro: Biruta estava lá. Alonso suspirou. Era bom quando Biruta resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia. Tinha então a certeza de que não estava acontecendo nada. A
trégua. Voltou-se para Leduína.
  - O que o seu filho vai ganhar?
  - Um cavalinho - disse a mulher. A voz suavizou. - Quando ele acordar amanhã, vai encontrar o cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentado que queria um cavalinho, que queria um cavalinho...
  Alonso pegou uma batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.
- Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moços com uns saquinhos debalas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapato, um casaquinho de malhae uma camisa.
  - Por que ela não ficou com você?
  - Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...
  Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno a vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas " a madrinha". Intilmente a preocurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de pesentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quando então se reunia aos meninos da capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo!
                            
                                "... O bom jesus é quem nos traz
                                A mensagem de amor e alegria"...

- Também é muita responsabilidade tirar crianças para criar! - disse Leduína desamarrando o avental. - Já chega os que a gente tem...
  Alonso baixou o olhar. E de repente sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo. Riu-se:
  -Eh, Biruta! Está com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!... Sabe, Leduína, Biruta também vai ganhar um presente que está escondido lá debaixo do meu travesseiro. Com aquele dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma beleza de bola! Agora dele não vai precisar mais morder suas coisas, tem a bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nda, sabe, Ledeuína?
  - Hoje cedo ele não esteve no quarto da dona Zulu?
  O menino empalideceu.
  - Só se foi na hora em que fui lavar o automóvel... Por que Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?
  Ela hesitou. E encolheu os ombros.
  - Nada. Perguntei à toa.
  A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela estava sorridente. O menino sorriu também.
- Ainda não foi pra sua festa, Leduína? - perguntou a moça num tom afável. Abotoava os punhos do vestido de renda. - Pensei que você já estivesse saído... - E antes que a empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: - Então? Preparando seu jantarzinho?
  O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava assim mansamente, ele não sabia o que dizer.
  - O Biruta está limpo, não está? - Prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se debaixo do fogão.
  Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:
  - Biruta, Biruta! Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder... - Voltou-se para a patroa. E sorriu desculpando-se: - Até de mim ele se esconde.
  A mulher passou mão no ombro do menino:
  - Vou a uma festa onde tem um menino assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de levar o Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar radiante, o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só por hoje, não emnpresta? O automóvel ja está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.
  O rosto do menino resplandeceu num sorriso. Mas então era isso?!... Dona Zulu pedido o Biruta emprestado, precisando do Biruta!... Abriu a boca para dizer-lhe que sim, que o Biruta estava limpinho, e que ficaria contente de emprestá-lo para o menino doente, estava muito contente com isso... Mas sem dar-lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.
  - Viu, Biruta? Você vai numa festal - exclamou Alonso, beijando repetidas vêzes o focinho do cachorro. - Você vai numa festa, seu sem-vergonha! Numa festa com crianças, com doces. com tudo! Mas pelo amor de Deus, tenha juizo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu sapato ... - acrescentou num sussurro, com a boca encostada na orelha do cachorro. Apertou-lhe a pata. - Te espero acordado, Biru ... Mas não demore muito!
  O patrão já estava na direção do carro. Alonso aproximou-se.
  - O Biruta, doutor...
  O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.
  - Está bem, está bem. Pode deixá-lo ai atrás.
  Alonso ainda beijou furtivamente o focinho do cachorro. Em seguida, fêz·lhe uma última carícia, colocou-o no assento do automóvel e afastou-se correndo.
  - Biruta vai adorar a festa! - exclamou assim que entrou na cozinha. - E lá tem doces, tem crianças, ele não quer outra coisa! - Fez uma pausa. Sentou-se. - Hoje tem festa em teda parte, não, Leduina?
  A mulher já se preparava para sair.
- Decerto.
  Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.
  - Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?
  - Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é
que aquele rei manda prender os três.
  Alonso concentrou-se, apreensivo:
  - Sabe, Leduina, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois!... - Riu-se metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruido do carro que já saia. - Dona Zulu estava linda, não?
  - Estava.
  - E tão boazinha também. Você não achou que hoje ela estava boazinha?
  - Estava, estava muito boazinha, sim... - concordou a empregada. E riu-se.
  - Por que você está rindo?
  - Nada - respondeu ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta. Mas antes, parecia querer dizer qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.
  Alonso observou-a. E julgou adivinhar o que a preocupava.
  - Sabe, Leduína, você não precisa dizer para Dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com ele, já surrei ele, ele não vai fazer mais isso nunca mais, eu prometo que não.
  A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez encarou-o. E após vacilar ainda um instante, decidiu-se:
  - Olha aqui, se êles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu para você, Biruta não vai mais voltar.
  - Não vai o quê? - perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca e levantou-se. - Não vai o quê, Leduína?
  - Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.
  Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca.
A voz era um sopro quase inaudível:
  - Não? ..
  Ela perturbou-se.
  - Que gente também! - explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. - Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar...
  Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu­se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria, chegava até a borda do colchão desmantelado.
  Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou­se. E estendeu a mão tateante. Tirou debaixo do travesseiro uma bola de borracha.
  - Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.
  Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.
Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração.

terça-feira, 26 de março de 2013

Canção do boi Nelore


Minha terra tem boi nelore
e vacas holandesas
frigoríficos dos States
e pizza Portuguesa.

Minha terra embala 
enlata carimba boi vaca boi
foi boi não foi foi boi não foi...

A gente fica remoendo 
                   e babando
quando vê comercial
de hamburger na TV.

Agitam-se as lombrigas
já não sonho com bife a cavalo
pastando nas campinas.

Mas ainda corcoveio
desligo a TV
quando lembro que nasci
cresci no campo solto
brigão como um touro
louco pra não perder meu espaço
- um dia ainda volto pra lá.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Negócio de menino com menina - Ivan Angelo

O menino, de uns dez anos, pés no chão, vinha andando pela estrada de terra da fazenda com a gaiola na mão. Sol forte de uma hora da tarde. A menina de uns nove anos ia de carro com o pai, novo dono da fazenda. Gente de São Paulo. Ela viu o passarinho na gaiola e pediu ao pai:
_ Olha que lindo! Compra pra mim?
O homem parou o carro e chamou:
_ Ô menino.
O menino voltou, chegou perto, carinha boa. Parou do lado da janela da menina. O homem:
_ Este passarinho é pra vender?
_ Não senhor.
O pai olhou para a filha com uma cara de deixa pra lá.
A filha pediu suave como se o pai tudo pudesse:
_ Fala pra ele vender.
O pai, mais para atendê-la, apenas intermediário:
_Quanto você quer pelo passarinho?
_ Não tou vendendo não senhor.
A menina ficou decepcionada e segredou:
_ Ah, pai, compra.
Ela não considerava, ou não aprendera ainda, que negócio só se faz quando existe um vendedor e um comprador. No caso, faltava o vendedor.
Mas o pai era um homem de negócios, águia da Bolsa, acostumado a encorajar os mais hesitantes ou a virar a cabeça dos mais recalcitrantes:
_ Dou dez mil.
_ Não senhor.
_ Vinte mil.
_Vendo não.
O homem meteu a mão no bolso, tirou o dinheiro, mostrou três notas, irritado.
_ Trinta mil.
_ Não tou vendendo, não, senhor.
O homem resmungou “que menino chato” e falou pra filha:
_ Ela não quer vender. Paciência.
A filha, baixinho, indiferente às impossibilidades da transação:
_ Mas eu queria. Olha que bonitinho.
O homem olhou a menina, a gaiola, a roupa encardida do menino, com um rasgo na mangam o rosto vermelho de sol.
_ Deixa comigo.
Levantou-se, deu meia volta, foi até lá. A menina procurava intimidade com o passarinho, dedinho nas grestas da gaiola. O homem, maneiro, estudando o adversário:
_ Qual é o nome deste passarinho?
_ Ainda não botei nome nele, não. Peguei ele agora.
O homem, quase impaciente:
_ Não perguntei se ele é batizado não, menino. É pintassilgo, é sábia, é o quê?
_ Aaaah. É bico-de-lacre.
A menina, pela primeira vez, falou com o menino:
_ Ele vai crescer?
O menino parou os olhos pretos nos olhos azuis.
_ Cresce nada. Ele é assim mesmo, pequenininho.
O homem:
_Canta?
_Canta nada. Só faz chiar assim.
_ Passarinho besta, hein?
_ É. Não presta pra nada. É só bonito.
_ Você Pegou ele dentro da fazenda?
_ É. Aí no mato.
_ Essa fazenda é minha. Tudo que tem nela é meu.
O Menino segurou com mais força a alça da gaiola, ajudou com a outra mão nas grades. O homem achou que estava na hora e falou já botando a mão na gaiola, dinheiro na outra mão.
_ Dou quarenta mil! Toma aqui.
_Não senhor, muito obrigado.
O Homem, meio mandão:
_Vende isso logo, menino. Não ta vendo que é pra menina?
_Não, não tou vendendo não.
_ Cinqüenta mil! Toma! _ e puxou a gaiola.
Com cinqüenta mil se comprava um saco de feijão, ou dois pares de sapatos, ou uma bicicleta velha.
O menino resistiu, segurando a gaiola, voz trêmula.
_Quero não senhor. Tou vendendo não.
_ Não vende por quê, hein? Por quê?
O menino acuado, tentado explicar:
_ É que eu demorei a manhã todinha pra pegar ele e tou com fome e com sede, e queria ter ele mais um pouquinho. Mostrar pra mamãe.
O homem voltou para o carro, nervoso. Bateu a porta, culpando a filha pelo aborrecimento.
O menino chegou pertinho da menina e falou baixo, para só ela ouvir:
_ Amanhã eu dou ele pra você.Ela sorriu e compreendeu.

sábado, 23 de março de 2013

Café da manhã


Quando assisti ao malabarismo do motoboy, tudo virou notícia e, 
antes do sol chegar, me tornei dependente de jornal.
Notícias chegam sem festa, sem patins ou bicicleta.
Notícias de gente que morre. Notícias de gente que mata.
Notícias de chuvas soterrando casas, pessoas...
Deus do céu! 
Gente que morre para virar notícia fresquinha
- como mamão, cereal, melancia, 
no meu café da manhã!

sexta-feira, 22 de março de 2013

Passeio - Fernando Sabino


 - Aonde vamos, papai?         

  Seguiam devagar, de mãos dadas, em direção ao túnel. Ele olhou em redor, desorientado.          
   - Dar um passeio...
Vamos passar pelo túnel – resolveu.
 – A pé, você já passou pelo túnel a pé?           
  - Não – disse a menina, extasiada. Num passeio com o pai, tudo era motivo de prazer
– A gente pode?            
 - Pode. Tem um lugar do lado que é para a gente passar.             
- De que é feito o túnel, papai?          
   De que era feito o túnel? Essa era uma pergunta meio tola. Tinha oito anos e parecia inteligente... O túnel era um buraco na montanha, não era feito de nada.           
  - Ah...            
 De repente, porém, ela o surpreendeu:      
  - Túnel deprime muito a gente.             
- Deprime? Com quem você aprendeu isso?            
 - Com mamãe: nós duas andamos muito deprimidas.         
    Positivamente, a mulher deveria ter mais cuidado com o que falava. O que seria daquela menina, sem ela perto, para... para.          
   - E por que vocês andam deprimidas?             
- Não sei: acho que é porque não temos vontade de comer:            
 Era preciso falar – e falar com jeito, sem escandalizar a menina, assustá-la para a vida. Não dê motivo fútil – era o que recomendavam. O que uma menina de oito anos entenderia por motivo fútil?           
  - Aonde nós vamos, papai?          
   Saíram do túnel. O melhor era procurar um lugar calmo, sossegado. Uma confeitaria, talvez.            
 - Você quer tomar um sorvete?          
   - Mamãe disse que está muito frio.            
 - Não tem importância – disse ele apressadamente:
 - Vamos tomar um sorvete.            
 Satisfeitos ambos com a resolução, entraram num ônibus e saltaram à porta da confeitaria. Ela se deteve junto à vitrine:         
    - Olha, papai, que bonito.             Era uma horrorosa caixa de bombons em forma de coração.             
- Dou de presente, você quer? – e puxou-a pelo braço, em direção á entrada. Dar-lhe-ia tudo que quisesse, como a comprar sua simpatia para o que tinha a dizer.           
  Mamãe falou que não posso comer bombom senão não janto.          
  Hoje você pode, sim.         
    A mãe também estava exagerando, oprimindo a menina. Não tinha nada de mais comer um bombom de vez em quando. E aquele dia não era um dia comum – pensou sem perceber que violentava as regras intransigentes de educação da filha que ele próprio firmara e que a mulher agora não fazia senão obedecer. Oprimido a menina. Nós duas andamos muito deprimidas.         
    Pessoas entravam e saíam da confeitaria, movimentada àquela hora da tarde. Moças e rapazes esperavam mesa, conversando em grupos, alguns olharam aquele homem tímido, meio curvado, que entrava com uma menina pela mão. Sentiu-se constrangido no ambiente elegante da confeitaria, sentiu-se velho entre aqueles rapazes de suéter e aquelas moças de calça comprida, como rapazes. Em dez anos a filha estaria assim. Dez anos passam de pressa. Dez anos haviam passado.           
  - Aqui tem sorvete também. Não está bom?           
  A menina sacudiu a cabeça, submissa:         
    - Lá na frente era melhor..     
        Lá na frente não tem lugar.          
   - Mas aqui não tem bombom.             
- Ah, me esqueci de sua caixa de bombons! Espere aí que vou buscar.             Sentou-se a uma das mesas e ordenou ao garçom:             
- Traga um sorvete para esta menina, Que sorvete você quer, minha filha? De coco? Chocolate?         
    - Milk shake – disse ela, com displicência, o garçom logo a entendeu. O pai olhou-a espantado:            
 - Que é que você pediu?             
- Milk shake. Venho aqui sempre com a mamãe e ela pedi milk shake.           
  - Então espera aí direitinho que vou buscar seus bombons, volto já.           
  Passou à outra parte da confeitaria, dirigiu-se ao balcão:       
      - Quero aquela caixa de bombons que está ali na vitrine, aquela feia, em forma de coração.      
       De longe avistou a filha, perninhas dependuradas, a chupar o canudo do refresco, olhos vagos, distraídos, inconstantes – os olhos da mãe.           
  - Demorei? – e sentou-se ao lado dela.            
 - Fiquei com medo de você ir embora.           
  - Então eu ia fazer uma coisa dessas, minha filha, ir embora?          
   A menina apontou a mesa com os olhos, sem abandonar a palha do refresco:           
  - Pedi um milk shake para você.          
   Ele se ajeitou na cadeira e acendeu um cigarro. Chegara o momento – como começar?         
 - Você sentiu saudade do papai?        
- Não, porque demorou pouco. Comprou?    
  - Comprei, olha aqui – e exibiu-lhe o embrulho.      
 - Vou levar para mamãe – resolveu ela, subitamente inspirada.
– Pode?            
 - Pode – e ele passou a mão pelo rosto, desconcertado.
 – Um presente para ela.           
  - Meu, não: seu – fez a menina, como a experimentá-lo. Não respondeu. Ela voltara a chupar o canudo de palha, agora soprava para dentro do copo, fazendo espuma no refresco.        
  - Eu pergunto se você sentiu saudade de mim não foi agora não, foi quando estive viajando.      
 - Você esteve viajando mesmo?            
 Meu Deus, como começar? Era preciso começar, já se fazia tarde, o refresco se acabava, em pouco tinha de levá-la de volta para a mãe. Estivera viajando sim, por que haveria de mentir?            
 - E chegou assim, sem mala, sem nada?             
- É porque eu cheguei... Isto é... Olha aqui. Toma este outro também, papai não está com vontade – e passou-lhe o copo.             
- Assim não janto e mamãe zanga – disse ela, indecisa, a boca a meio caminho do segundo refresco.             
- Não tem importância. Diga que fui eu.            
 Não tinha importância – o importante era dizer, contar tudo, escandalizar, violentar a inocência da menina. Assim recomendavam todos hoje em dia: as crianças devem saber de tudo, porque senão inventam por conta própria, e é pior. O que não é capaz de inventar uma criança? Antigamente na escola, entre as amigas, a criança se sentia a única, mas hoje em dia podia-se dizer que era a regra, tantos casais separados! E sacudiam a cabeça, convictos: sobretudo não de motivos fútil.             - Escuta, minha filha, você é uma mocinha, já deve saber das coisas.            
 Voltava à formula da mocinha. Agora era continuar, custasse o que custasse. Daria tudo para não viver jamais aquele instante. Pensou se não era bom tomar antes um conhaque.           
  - Estive viajando sim, mas não é por isso que não estou morando mais com você. Agora, por exemplo, já cheguei e não vou dormir lá em casa.           
  - Onde é que você vai dormir?             
- Noutro lugar – respondeu ele, evasivo: não pensava em dizer onde estava morando, ela poderia querer ir com ele.             
- E quem é que vai dormir com a mamãe?             
A pergunta apanhou-o desprevenido, sentiu-se jogado de súbito naquela atmosfera de ansiedade que precedera a separação.             
- Me diga uma coisa, filhinha – ele não resistia, e se inclinava, ansioso, sobre a mesa, segurando a mão da filha:
- Você disse que vem sempre aqui com sua mãe... Sozinha? Não vem ninguém mais com vocês?             A menina limitou-se a negar com a cabeça, sempre tomando o refresco.             
- E lá em casa? Tem ido alguém visitar mamãe?             
Desta vez ela sacudiu a cabeça afirmativamente.             
- Quem?            
 Desgarrou os lábios da palha já amassada para responder:             
- Vovó.             
Ele chamou o garçom e pediu um conhaque. Voltou a acomodar-se na cadeira, perturbado. Não interessava! Tudo acabado para sempre. Agora restava contar para filha:             
- Sabe, filhinha, você já é uma... Bem, isso eu já disse. Quero dizer o seguinte: você sabe que papai gosta muito de sua mãe...             
Antes de mais nada, deixar bem a mãe: era também o que aconselhavam. Tomou de uma só vez o conhaque e prosseguiu:             
- Sua mãe é muito boa, sabe? Muito boa mesmo, gosta muito de você, você deve ser obediente e boazinha para ela.             Não, não era isso. Precisava dizer logo, ou não diria nunca:            
 - Papai gosta dele e ela do papai. Mas acontece sabe?, que ela é muito diferente do papai, gosta de uma coisa, papai de outra...             
Motivo fútil. O que não seria motivo fútil?             
- Bem, eu e sua mãe gostamos muito um do outro mas eu andava muito cansado, trabalhando o dia todo, sua mãe muito nervosa, nós vivíamos discutindo... brigando...             
- Se gostam, por que é que brigam?             
Foi a única vez que a menina o interrompeu. Dali por diante ficou calada, olhando para outro lado, e ele prosseguiu como pôde, dizendo: ela não tinha amiguinha no colégio? Não gostavam uma da outra? e de vez em quando não brigavam? Pois então? Com eles também era assim. E para viver junto era preciso não brigar nunca, era preciso ser muito bom um para o outro, era preciso...             
- Minha filha, você não está me escutando.             
- Estou sim, papai...             
A menina terminara o refresco e agora riscava distraidamente a mesa coma palha umedecida.             
- Que é que estou dizendo?             
Ela voltou-se para ele:             
- Está dizendo que você e mamãe vão se separar.             
Ele respirou fundo, num misto de angústia e alivio:             
- Mas vou visitar vocês sempre...             
- Eu se.            
 - Posso levar você para passear.             
-Sei.             
-Posso... Posso...             
Ela se levantou, puxando-o pela mão:             
- Papai, me leva embora que já está ficando tarde.             
- Minha filha – disse ele, confuso e comovido, e não resistiu, tomou-a no colo, abraçou-a com força, enquanto lágrimas lhe enchiam os olhos. Quis falar e as palavras se prenderam num engasgo. Um casal sentado ao fundo da confeitaria, mãos dadas sobre a mesa, voltou-se curiosamente para vê-lo. Ele depositou a menina no chão, sem que ela oferecesse resistência. Chamou o garçom, pagou, reteve a filha:            
 - Olha, você está esquecendo os bombons.            
 Saíram, e a menina o conduzia pela mão, como a um cego.    

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...