O jornal Zero Hora de terça-feira, 29/11/2011, traz como uma de suas manchetes o seguinte: "Morador de rua agredido por jovens". Ao ler a notícia, me deparo com a seguinte argumentação desses jovens idiotas, para defenderem seu ato: "O homem não era ninguém, era apenas um morador de rua".
Vendo o outro, seu semelhante, como "ninguém", nossos jovens sentiram-se autorizados a agir com violência. Em seu depoimento, o pai de um desses heróis, afirmou que seu filho manifestou comportamento agressivo depois que começou a usar drogas. Os pais desse jovem deviam se perguntar sobre a gênese da coisa: por quais motivos seu filho caiu no mundo da droga?
O que falta a esses jovens? Parece que a sedução das bebidas e drogas se apossa de um vazio existencial vivido por eles. Há uma energia reprimida que se manifesta, infelizmente, através da violência.
Uma explicação é de que essa garotada anda perdida, sem uma âncora de valores que sirva de ponto de apoio e equilíbrio. Daí surge o grupo, os estimulantes, e facilmente são persuadidos pelos argumentos da violência, que muitos deles dizem "não dar nada".
Para contrapor a essa explosão de violência por parte desses jovens, vou trazer para vocês um texto do escritor e poeta Affonso Romano Sant'Anna, "O incêndio de cada um".
O autor apresenta uma série de cenas, para mostrar pequenos acontecimentos (quase imperceptíveis) em que os personagens "desabrocham", detonam em si o que mais profundamente eles são. Viram outra pessoa.
Sant'Anna chama de "momento de sedução típico de cada um". Quando o indivíduo está assentado no que lhe é mais próprio e natural.
Obviamente, esses momentos são impulsionados pelo amor. "Estou falando de uma coisa simples e única, quando o que cada um tem de mais seu relampeja a olhos vistos. Quando isto se dá, quebra-se a monotonia e o indivíduo se transcendentaliza".
É isto o que importa. O incêndio de cada um. Cada um deve ter um jeito de deflagrar sua luz aprisionada.
No caso dos jovens agressores, em vez do incêndio criativo impulsionado pelo amor, eles foram impulsionados pela brutalidade, pelo instinto de morte, que é o que de mais assustador possui o ser humano.
O INCÊNDIO DE CADA UM
Affonso Romano de Sant'Anna
A cena foi simples. Ia eu passando de carro pela Lagoa quando vi na calçada uma moça esperando o ônibus com seu jeans e bolsa a tiracolo. Nada demais numa moça esperando o ônibus. Mas eis que passou um caminhão de som tocando uma lambada. Aí aconteceu. Aconteceu uma coisa quase imperceptível, mas aconteceu: os quadris da moça começaram a se mexer num ritmo aliciante. Já não era a mesma criatura antes estática, solitária, esperando o ônibus na calçada. Ela havia se coberto de graça, algo nela se incendiara.
A fotógrafa veio fazer umas fotos. Estava com o pescoço envolto num pano, pois tinha torcicolo. E eu ali posando meio frio, fingindo naturalidade, e ela cautelosa com seu pescoço meio duro, tirando uma foto aqui, outra aIi, quase burocraticamente. De repente, ela descobriu um ângulo, e pronto: se incendiou profissionalmente, jogou-se no chão, clic daqui, clic dali, vira para cá, vira para lá, este ângulo, aquele, enfim, desabrochou, o pescoço já não doía. Ela havia detonado em si o que mais profundamente ela era.
Estamos numa festa. Aquele bate-papo no meio daquelas comidinhas e bebidinhas. Mas de repente alguém insiste para que outro toque violão. Aparentemente a contragosto ele pega o instrumento. E começa a dedilhar. Pronto, virou outra pessoa. Manifestou-se. Elevou-se acima dos demais, está além da banalidade de cada um. Achou o seu lugar em si mesmo. Assim também ocorre quando vemos no palco o cantor dar seus agudos invejáveis, o bailarino dar seus saltos ou o atleta no campo disparar seus músculos e fazer aquilo que só ele pode fazer melhor que todos nós. Isto é o que ocorre quando o instrumentista pega o sax e sexualiza todo o ambiente com seu som cavernoso e erótico. Isto é o que se dá até quando um conferencista ou um professor entreabre o seu discurso e põe-se como uma sereia a seduzir a platéia, como um maestro seduz todo o teatro.
Há um momento de sedução típico de cada um. Quando o indivíduo está assentado no que lhe é mais próprio e natural. E isto encanta.
Claro, esses são exemplos até esperados. Mas há outros modos de o corpo de uma pessoa embandeirar-se como se tivesse achado o seu jeito único e melhor de ser. Digo, o corpo e a alma.
Mas nem todos podemos ser tão espetaculares. Nem por isso o pequeno acontecimento é menos comovente.
De que estou falando? De algo simples e igualmente comovente. Por exemplo: o jardineiro que ao ser jardineiro é jardineiro como só o jardineiro sabe e pode ser.
E que ao falar das flores, ao exibi-las cercadas de palavras, percebe-se, ele está em transe. Igualmente o especialista em vinhos, que ao explicar os diversos sabores nos quatro cantos da boca faz seus olhos verterem prazer e embalam a quem o ouve com sua dionisíaca sabedoria.
Feita com amor, até uma coleção de selos se magnifica. Se torna mais imponente que uma pirâmide se a pirâmide for descrita ou feita por quem não a ama. É assim que pode entrar pela sala alguém e servir um cafezinho, mas sendo aquele o cafezinho onde ela põe sua alma, ela se torna de uma luminosidade invejável.
Cada um tem um momento, um gesto, um ato em que se individualiza e brilha. Nisto nos parecemos com os animais e peixes ou quem sabe com as nuvens. Animais e peixes têm isto: têm trejeitos raros e sedutores, cada um segundo sua espécie. Até as nuvens, como eu dizia, tem seu momento de glória.
Uma vez vi um pintor em plena ação, pintando. Meu Deus! O homem era um incêndio só, uma alucinação. Sua face vibrava, havia uma febre nos seus gestos. Era uma erupção cromática, um assomo de formas e volumes.
Então é disso que estou falando. Dessa coisa simples e única, quando o que cada um tem de mais seu relampeja a olhos vistos. Quando isto se dá, quebra-se a monotonia e o indivíduo se transcendentaliza.
Pode parecer absurdo, mas já vi uma secretária transcendentalizar-se ao disparar seus dedos no teclado da máquina de escrever. Era uma virtuose como só o melhor violinista ou pianista sabem ser. E as pessoas achavam isto mais sensacional que se ela estivesse engolindo fogo na esquina.
lsto é o que importa: o incêndio de cada um. Cada qual deve ter um jeito de deflagrar sua luz aprisionada. As flores fazem isto sem esforço. Igualmente os pássaros. Todos têm seu momento de revelação. É aguardar, que o outro alguma hora vai se manifestar.