terça-feira, 5 de abril de 2011

Confuso - Luis Fernando Veríssimo




O Consumidor acordou confuso. Saíam torradas do seu rádio-despertador. De onde saía então - quis descobrir - uma voz do locutor? Saía do fogão elétrico, na cozinha, onde a empregada, apavorada, recuara até a parede e, sem querer, ligara o interruptor da luz, fazendo funcionar o gravador na sala. O Consumidor confuso sacudiu a cabeça, desligou o fogão e o interruptor, saiu da cozinha, entrou no banheiro e ligou seu barbeador elétrico. Nada aconteceu. Investigou e descobriu que a sua Mulher, na cama, é que estava ligada e zunia como um barbeador. Abriu uma torneira do banheiro para lavar o sono do rosto. Talvez aquilo tudo fosse só o resto de um pesadelo. Pela torneira jorrou um café instantâneo.


Confuso, o Consumidor escovou os dentes com o novo desodorante e sentou na tampa da privada - fazendo soar a campainha da porta - para pensar. Acendeu um batom Roxo Purple, nova sensação, da Mulher. O que estaria acontecendo? Resolveu telefonar para o Amigo. Saiu do banheiro e foi para a sala.


Quando girou o disco do telefone a televisão a cores começou a funcionar. Pensou com rapidez. Foi até o televisor e, no selecionador de canais, discou o número do amigo. Saiu laranjada do telefone. Apagou o batom num cinzeiro e voltou para o quarto. A Mulher acabava de acordar e, sonolenta, caminhava na direção do banheiro. Viu a Mulher fechar a porta do banheiro e dali a pouco ouviu a campainha da porta tocar de novo. Esperou.


Quando a mulher abriu a porta do banheiro e, confusa, lhe disse, "Querido..." ele antecipou:


- Já sei. Saiu café da torneira da pia.


- Não. Liguei o chuveiro e uma voz disse "Alô?"


Era o Amigo.


- Deixe que eu falo com ele.


Foi até o chuveiro falar com o Amigo. Contou tudo que estava acontecendo. O Amigo disse que na sua casa era a mesma coisa, saía música do condicionador de ar e a televisão corria atrás das crianças dizendo bandalheira; era o fim do mundo.


Foi quando o Consumidor, confuso, viu que o novo secador de cabelo descia sozinho da sua prateleira, atravessava o chão do banheiro como um pequeno mas decidido tanque e saía pela porta. Disse para o Amigo que o chamaria de volta, desligou o chuveiro e saiu correndo. O secador encaminhava-se lentamente para a cozinha, onde a Mulher e a Empregada, assustadas, testavam todas as utilidades domésticas. A janela da máquina de lavar roupa trasmitia o padrão do Canal 10, e o fogão, agora, dava o noticiário das oito. O Consumidor chegou a tempo de evitar que o secador atacasse sua Mulher por trás. Atirou o secador com força contra a parede. Ouviu-se um berro de dor e fúria partindo dos alto-falantes do estéreo, na sala, e ao mesmo tempo a geladeira começou a movimentar-se pesadamente na direção do Consumidor, da Mulher e da Empregada.


- A chave! - gritou o consumidor.


Saíram todos correndo pela porta da cozinha. Chegaram até a chave geral. O Consumidor abriu a portinhola, puxou a alavanca e ouviu nitidamente que se ligava o motor do Dodge Dart na garagem. O melhor era fugir!


Correram para a garagem, entraram no carro, o Consumidor botou em primeira, apertou o acelerador e um Boeing caiu em cima da casa.

domingo, 3 de abril de 2011

Millor Fernandes



Rapazinho
estuda depressa
pois burro aos trinta
é burro à beça.


Poemas. Porto Alegre. L&Pm, 1984.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Ficção científica - José Paulo Paes

 

UM PLANETA DOS MAIS RAROS:
O SEU OURO ERA DE GRAÇA,
O LIXO CUSTAVA CARO.

O ASTRONAUTA NÃO GOSTOU
E FOI-SE EMBORA. QUANDO
PENSOU ESTAR MUITO LONGE,
VIU-SE OUTRA VEZ CHEGANDO

NUM PLANETA ONDE, ALIÁS,
O EM-BAIXO FICAVA EM-CIMA
E A FRENTE ESTAVA POR TRÁS...

DEPOIS DE UMA VIAGEM
PELO ESPAÇO SIDERAL,
O ASTRONAUTA CHEGOU
AO SEU DESTINO FINAL:

UM PLANETA DIFERENTE
CUJO EM-CIMA ESTAVA EM-BAIXO
E O ATRÁS FICAVA NA FRENTE.

UM PLANETA TÃO ESTRANHO
QUE A SUJEIRA ERA LIMPA
E A ÁGUA TOMAVA BANHO.

UM PLANETA MESMO LOUCO,
ONDE O MUITO ERA NADA
E O TUDO, MUITO POUCO.

JOSÉ PAULO PAES. É ISSO ALI. RIO DE JANEIRO: SALAMANDRA, 1984.

terça-feira, 29 de março de 2011

Os olhos, preguiçosos



Olhos preguiçosos
demoram para dizer
qual será a cor
do seu olhar.

Eles precisam seguir
lentamente
ser avançar crescer.
Novatos, tornam-se
indecisos e medrosos
e super-dimensionam
e se distraem
com as cores exteriores.


Penso nisso tudo
enquanto olho nos olhos da flor
amparada pelo leito do copo
em minha sala.

Sem nenhum medo 
decidiu ir em frente
para eu poder admirá-la
eternamente.


A flor tem consciência
de que sua existência
depende do meu olhar...

segunda-feira, 28 de março de 2011

Nadamos todos contra a corrente





Nadamos todos
contra a corrente
atrás da piracema da vida.

Depositamos
sonhos semente
que buscam
fecundar
as estrelas.

Somos areia água
mato chuva e vento
somos terra ar oceanos
fogo rio e tempo

o que eu sou é que não sei...
não aprendi a olhar-me por dentro.

domingo, 27 de março de 2011

A porta fechada - Carlos Queiroz Telles


A porta fechada.
A cara no espelho.
A torneira aberta.
A cara no espelho.
A água escorrendo.
A cara no espelho.
A espuma espumando.
A cara no espelho.
A mão emocionada.
A cara no espelho.

A primeira faz tcham!
A segunda faz... Ai!

Sonhos, grilos e paixões. Ed. Moderna, 1990.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Da difícil arte de redigir um telegrama


Há uma história famosa de uns parentes que tinham que comunicar por telegrama, a uma senhora que estava viajando, o falecimento de uma irmã. Reuniram-se em volta de uma mesa e toca a escrever. Primeiro foi o primo quem redigiu a nota. Depois de alguns minutos mostrou o resultado do seu trabalho: "INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. TUA IRMÃ MORREU". Todos leram e um dos tios fez o seguinte comentário:

-Eu acho que não está bom. Afinal de contas, vocês sabem que ela é cardíaca, está viajando e um telegrama assim pode ser um choque. -Todos concordaram, inclusive um outro primo afastado que era sovina e achou o telegrama muito longo:

-Depois, com o preço que se paga por palavra, isso não é mais um telegrama, é um telegrana.

Ninguém riu do infame trocadilho, mesmo porque, velório não é lugar para gargalhadas. Foi a vez do cunhado tentar redigir uma forma mais amena que não assustasse a senhora em passeio. Sentou-se e escreveu: "INTERROMPA VIAGEM E VOLTE CORRENDO. TUA IRMÃ PASSANDO MUITO MAL". Novamente o telegrama não foi aprovado. Um irmão psicólogo observou:

-Não sejamos infantis. Se ela está viajando pela Europa e recebe esta notícia, não vai acreditar na história de "passando muito mal". Sobretudo com o "volte correndo" no meio.

-Também concordo - falou o primo afastado sempre pensando no custo. Então o genro aproximou-se:

-Acho que tenho a forma ideal. - Pegou no bloco e rabiscou rapidamente: "INTERROMPA VIAGEM E VOLTE DEVAGAR. TUA IRMÃ PASSANDO MAIS OU MENOS". Todos examinaram atentamente o telegrama. A filha reclamou:

-Vocês acham que mamãe é boba? Se a gente escrever que a tia está pasando mais ou menos e que ela pode voltar devagar, ela já vai adivinhar que todas estas precauções são pelo fato de ela ser cardíaca e que na realidade a irmã dela morreu!

-Concordo plenamente - disse o facultativo da família que era também sobrinho da senhora em questão. Resolveu, como médico, escrever o telegrama: "PACIENTE FORA DE PERIGO. VOLTE ASSIM QUE PUDER. PACIENTE TUA IRMÃ".

De todas as fórmulas até então apresentadas, esta foi a que causou mais revolta.

-Que troço imbecil - gritou o netinho que passeava pela sala no momento em que a mensagem era lida. Puseram o menino para fora da sala, mas no íntimo a família toda concordava com ele.

-Não, isso não. Se a gente mandar dizer que ela está fora de perigo, para que vamos pedir que ela interrompa a viagem? - argumentou o tio.

-Também acho - responderam todos num coro de aprovação. O filho mais velho resolveu tentar. Pensou bem, ponderou, sentou-se, molhou a ponta do lápis na língua e caprichou: "SE POSSÍVEL VOLTE. TUA IRMÃ SAUDOSA. PASSANDO QUASE MAL. POR FAVOR ACREDITE. CUIDADO CORAÇÃO. VENHA LOGO. SAUDADES SURPRESA".

-Realmente, esse bate todos os recordes! - disse uma nora professora. - Em primerio lugar não é "se possível", ela tem que voltar mesmo. Em segundo lugar, "saudosa" tem duplo sentido. Em terceiro lugar, ninguém passa "quase mal". Ou passa mal ou bem. "Quase mal" e "quase bem" é a mesma coisa. "Por favor acredite" é um insulto à família toda. Ninguém aqui é mentiroso. Depois "cuidado coração" não fica claro. Como telegrama não tem vírgula, ela pode pensar que a gente está dizendo "cuidado, coração",  já que a palavra coração também é usada como uma forma carinhosa de chamar os outros. Por exemplo: "Oi, coração, tudo bem?" E finalmente a palavra "surpresa" no telegrama chega a ser um requinte de crueldade. Qual é a surpresa que ela pode esperar?

- Ela pode pensar que a tia está tendo neném - falou um sobrinho.

- Aos noventa anos de idade?

Abandonaram a idéia rapidamente. Seguiu-se um longo período de silêncio em que a família andava de lá pra cá, pensando numa solução. Pela primeira vez estavam se dando conta de que não era tão fácil assim mandar um telegrama. Serviu-se o costumeiro cafezinho, enquanto cada qual do seu lado procurava uma maneira de escrever para a senhora em viagem sem que isso tivesse consequências desastrosas. De repente o irmão psicólogo explodiu num grito eurekiano de descoberta:

-Achei!

Escreveu febrilmente no papel. O telegrama passou de mão em mão e foi finalmente aprovado por todo mundo. Seu texto dizia: "SIGA VIAGEM DIVIRTA-SE. TUA IRMÃ ESTÁ ÓTIMA".


Soares, Jô. Da difícil arte de redigir um telegrama. O Globo, 26 Out, 1973.


quinta-feira, 17 de março de 2011

MINHA JANELA

Minha janela, Fulano,
quer ter vista para o mar
mas tem a vila, nos fundos
o bosque e o pomar.

São tantas janelas, Fulano,
posso ver tudo, se imaginar
mas as asas que libertam
não consigo encontrar.

A janela do meu mundo vê tudo, Fulano,
mas não diz nada
se o dissesse
pediria pra voar.

Todos querem voar, Fulano,
sonhadores de sacada
mas as janelas estão
gradeadas.

Da sacada o mundo se abre, Fulano,
despindo as almas da vila
o vento norte embala
cicatrizes no varal.


Dizem os políticos, Fulano,
que a vida pode ser colorida
basta encontrar dentro de nós
o Quixote do amanhã.

Cada movimento da vila, Fulano,
acelera meu coração
penso em mudar o mundo
mas me calo ao ouvir uma canção.

A música me tira do sério, Fulano,
igual vodka a passear pelas veias
é hora de requisitar  a memória
e contemplar antigas quimeras.

As luzes coloridas e os fartos goles, Fulano,
de nada valem ante a janela
a se abrir e a fechar
janela do meu mundo
que os outros vão arrombar.

Não consigo alterar a rota do mundo, Fulano,
não quero emprestar tanto sonho
abandonarei o meu ego
meus amigos e meus pais.

Como conciliar tanta desgraça, Fulano,
e o medo de ser a melhor pessoa do mundo?

A ordem do mundo cabe
nas cruzadas do jornal
dança de letras entrelaçadas
no abismo vertical e horizontal
cabe em meu coração
que ainda sonha se libertar.


domingo, 13 de março de 2011

Bola de meia, bola de gude - Milton Nascimento e Fernando Brant




Há um Menino!
Há um Moleque!
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem prá me dar a mão...


Há um passado
No meu presente
O sol bem quente
Lá no meu quintal
Toda vez que a bruxa
Me assombra
O menino me dá a mão...


E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade
Alegria e amor...


Pois não posso
Não devo e não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso
Aceitar sossegado
Qualquer sacanagem
Ser coisa normal...


Bola de Meia! Bola de Gude
O solidário não é solidão
Toda vez que a tristeza
Me alcança
O menino me dá a mão...


Há um Menino!
Há um Moleque!
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem prá me dar a mão...


E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade
Alegria e amor...


Pois não posso
Não devo, não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso
Aceitar sossegado
Qualquer sacanagem
Ser coisa normal...


Bola de Meia! Bola de Gude!
O solidário não é solidão
Toda vez que a tristeza
Me alcança
O menino me dá a mão...


Há um Menino!
Há um Moleque!
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem prá me dar a mão...


E me fala de coisas bonitas
Que eu acredito
Que não deixarão de existir
Amizade, palavra, respeito
Caráter, bondade
Alegria e amor...


Pois não posso
Não devo, não quero
Viver como toda essa gente
Insiste em viver
E não posso
Aceitar sossegado
Qualquer sacanagem
Ser coisa normal...


Bola de Meia! Bola de Gude!
O solidário não é solidão
Toda vez que a tristeza
Me alcança
O menino me dá a mão...


Há um Menino!
Há um Moleque!
Morando sempre no meu coração
Toda vez que o adulto balança
Ele vem prá me dar a mão...

sexta-feira, 11 de março de 2011

Motivo - Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico 
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.



Do livro Flor de poemas. Rio, Ed. Nova Fronteira.

quinta-feira, 10 de março de 2011

NÓS DOIS


Alguns cruzam nosso caminho
embarcam no mesmo barco
dividem bancos e causos
e fazem morada
em nossos sentimentos.

Indecisos
outros passam
nem se deixam notar
seguem apressados
para habitar
o velho mundo
particular...

Assim vamos todos
sem duvidar
de nossas crenças e hábitos
aceitamos que o normal
seja comer, dormir,
trabalhar...

Num gesto inusitado
você endoidou os pólos
da bússula de meu barco
sentou-se do meu lado e,
com mistério e com carinho,
me mostrou novo caminho!


Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...