quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Um copo aguarda o meu beijo


Sobre a mesa, diante dos olhos,
dois senhores prometem minha libertação.
Uma caixinha com chá de boldo
e um litro de uísque.
Mais ao lado, um copo vazio
observa, sorridente,
louco pra ser transbordado,
louco pra ganhar meu beijo.
Você já tem uma inclinação,
como o Maneta do bar,
que caminha pendendo pra esquerda,
e por isso direitistas raivosos o chamam
de comunista.
Você já tem  uma inclinação, e isso é irremediável,
apesar de desconfiar que não é esse o caminho,
e que isso te deixa culpado.

Se a TV está ligada e passa uma novela,
apanho o controle e aperto no mute,
e me ligo nos tipos de olhares dos atores,
se alegres, esperançosos,
tristes ou indiferentes.
Deixo no silencioso,
já que não posso dar um stop
no que se passa no mundo:
a economia não pode parar,
o dinheiro precisa girar,
bocas têm fome,
barrigas vazias
não mantêm o ritmo
das linhas de produção.

Ontem entrei num bar que nunca antes frequentara
e a senhora, detrás do balcão, me observava, curiosa,
enquanto eu rabiscava umas coisas num guardanapo.
Atrás da doce senhora, em cima da entrada pra cozinha,
uma placa dizia "BAR DOCE BAR".
Uma coceira no braço desviou meu olhar,
é um cobreiro miserável, que combato
com riscos de tinta da caneta,
a BIC faz círculos ao seu redor,
como se fosse míssil num bombardeio.
O cretino ganhou o mundo,
desceu até a panturrilha,
a parte posterior da coxa e também o saco,
e então lembrei da sentença do doutor Biza,
esses dias, ao observar o azul amarelado
dos meus olhos:
TU TEM GORDURA NO FÍGADO.

Agora me distraio com o telejornal.
A garota do tempo, linda, descontraída,
me faz lembrar da namo,
que ultimamente tem aparecido
muito tensa e com pouco tesão,
como se fosse uma cobra atiçada
pelas tardes mornas de 30 e poucos graus.
A voz da apresentadora é suave, límpida,
de quem quer muito mais da vida,
além de mostrar as condições climáticas na TV.
Ela diante das câmeras e eu aqui
supostamente escondido
dos sujeitos bem-sucedidos da city,
bebendo pra esquecer o quanto venho
decaindo.

Teimoso, carrego comigo o celular
e com ele me distraio.
Uma rápida conferida no Face e vejo fotos
dos preços disparando nos mercados.
Comida, comida, eterna necessidade básica.
Amigos, microempresários dos ifood delivery,
todos loucos pra alimentar pobres criaturas
desejosas de tanta coisa.
Jesus! Ninguém pergunta de quais comidas
minha alma precisa,
além das quentinhas e marmitex.
Passo os olhos nas postagens compartilhadas.
Uma boa diversão é ver a mãe
e funcionária,
e catequista,
e independente
explodir e putear vizinhas,
umas fofoqueiras
desocupadas
e invejosas.
As histéricas da comunidade insinuaram
que a nobre supermulher quis se matar.
CADELAS LINGUARUDAS.
A vingança não tarda,
agora ela compartilha fotos maravilhosas
que tirou no salão de beleza.
Novo corte de cabelo,
fotos de vários ângulos,
e sua postagem teve mais de meia dúzia
de dezenas de likes,
e comentários pra cima da comunidade.
E é bem assim:
o vento norte, dias e dias,
dilacera nossos nervos,
depois se  acalma e a temperatura
fica mais agradável,
é a primavera que está chegando.

O que importa é que todos somos especialistas.
Um amigo sabe todas as promoções dos supermercados,
como anda o preço do arroz, do óleo de soja e do feijão,
do queijo, da farinha e dos legumes...
e dos fardos de latões de cerveja.
Eu sou especialista em catar desejos intensos
compartilhados no face e no whats.
Também tenho me interessado por uns cursos que os caras
estão vendendo em pacotes virtuais.
Um deles ensina a ter dúzias de garotas
rastejando aos nossos pés.
O outro é de oficinas de escrita criativa.
Escritores jovens e simpáticos ensinam,
em meia dúzia de vídeos,
os 10 passos para ser um escritor
de sucesso.

Ainda chego lá.

(B. B. Palermo)


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