domingo, 4 de setembro de 2016

Doutor, eu devia ter dado flores a ela


- Enfrentei o medo de conhecer a garota. Convidei-a para tomar um café numa padaria do centro da cidade. Bem, receava sentir de novo a indiferença. É assim, Doutor, você mostra interesse, manda recado, porém a garota não diz nada. Será que as mulheres desejam que você rasteje, implore? Sei, Doutor, que o jogo é simples, primeiro precisamos cativar, seduzir. Tenho percebido certa esterilidade nas relações, quando a pessoa, de cara, desiste de conhecer alguém, e colher os frutos, doces ou amargos. Será que isso acontece apenas comigo? Doutor, tenho lido sobre “fórmulas mágicas” para conquistar uma mulher. No Google há muito conteúdo (será que tem conteúdo?) falando sobre isso, de que, veja só a expressão, “as mulheres se tornam presas fáceis pela emoção”. Até parece, Doutor, que a magia da conquista se resume numa caça!
- Hum...
- Convidei-a para conversar sobre nossas leituras. Aguardava com expectativa a chegada de um livro que encomendei pela internet, de um autor que até hoje nada li. Chama-se Knut Hamsun, e o título do livro é “A fome”. Como tomei contato com este autor? Em seu livro, “Mulheres”, Charles Bukowski diz que Knut foi o maior escritor do mundo. Enquanto aguardávamos o café, por baixo da mesa a mãos tremiam e suavam frio, os pés estavam incontroláveis. Tentava desviar do seu olhar, mas não conseguia. Não saberia dizer se os seus cabelos, pretos e lisos, tinham pintura ou eram naturais. Mas isso não importava. Reparava nos seus brincos e já me distraia com seus olhos. Doutor, isso é o ETERNO, este instante, momento em que tudo para, os carros na rua ali em frente, o noticiário da TV, a garçonete que fica como estátua, ao trazer o café. Quem prega que a alma e os valores são eternos está sendo um grande cínico! Dane-se a vida eterna! O momento em que estive diante dela é que se eternizou!
- Aham...
Então ela começou a falar... Foi tão bonito! Seus lábios em câmera lenta, a música de sua voz... Tudo me enfeitiçava. As mãos saíram do esconderijo, debaixo da mesa, e não foi apenas para sacudir o sachê com açúcar, Doutor. Os dedos tamborilavam, insinuavam aproximar-se das mãos dela. E ela aceitou entrelaçar seus dedos aos meus! Até consegui lembrar um poema, que dizia algo a respeito do meu amor. Incrível, Doutor, declamei o poema sem esquecer nenhum verso!
- Aham...
- Aí ela exclamou: “Nossa, que lindo! Amei!” Então pensei “Você que é linda!” “Muito mais do que linda, você é gostosa!” E então, no mesmo instante, ouvia-se ao fundo a música do Chico Buarque Quero ficar no teu corpo / Feito tatuagem / Que é pra te dar coragem / Pra seguir viagem / Quando a noite vem... E eu fiquei cantarolando apenas com o movimento dos lábios...
- Aham...
- Foi bom demais... Mas, enfim...
- Hum...
- Embora não saiba, quem vende flores não é um vendedor qualquer. Se aquela criança que vendia flores entrasse na padaria e viesse em direção à nossa mesa, com aquelas rosas vermelhas, impulsionaria um grande amor! Notei a menina cruzar a rua e vir em nossa direção, mas, não sei por qual motivo, não entrou na padaria, seguiu em frente pela calçada. Doutor, juro que pensei correr em direção à porta, chamá-la e comprar um botão de rosas para dar à Ninfa. Porém, vacilei naquele INSTANTE. Sério, Doutor, minha obsessão pelo eterno presente me levou a deixar escapar aquele MOMENTO mais do que romântico da ação: dar uma flor à garota.
- Aham...
- Aquele vacilo, que durou poucos segundos, foi a gota d’água para que eu mergulhasse numa melancolia sem fim, que não sei se vou superar. Sim, é como uma tatuagem que se instalou  no meu corpo, como espinhas num corpo adolescente, ou como a agonia expressa pela barriga enorme ou pelas costas curvadas de alguém. É isso, Doutor, a melancolia, e seu peso invisível, compenso com muita masturbação. Óbvio, depois do gozo me sinto mal, e aí busco o bar mais próximo para beber e ver futebol pela TV.
- Bem... Todos cultivamos lugares que servem de refúgio... Será que você se acostumou a habitar uma zona de conforto?
- Será, Doutor, o tal amor platônico?


(Diário de B. B. Palermo)
Imagem do site https://www.one.org/us/2014/06/23/should-you-be-buying-from-children-on-the-streets/.

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