Durante esses dias todos fiz várias cobranças ao menino, para que contasse o segundo capítulo de sua história (que eu sugerira que inventasse). Encontrei-o no intervalo da aula de hoje e nem precisei insistir, para que ele desembuchasse.
“Uma semana após ter começado a dieta, a bruxa desistiu. Não tinha mais idade para tamanho sacrifício. Não seriam as verduras e os legumes que a fariam viver mil anos! Disse que se deixou enfeitiçar pela história de que devemos combater os radicais livres. A partir de agora taparia seus ouvidos e iria radicalizar: se dedicaria à meditação, ioga e academia.
Nascera carnívora. Ser vegetariano é faceirice de momento. De quem não tem outra conversa nas rodinhas de bate-papo. Ou dor na consciência, porque quer se redimir de seus antigos erros.
A primeira palavra que pronunciou, quando bebê, não foi ‘mama’ ou ‘papa’, mas sim ‘carne!’. Gosta de carne mal passada, o animal esfolado, sangue escorrendo.
Foi então que a bruxa deixou transparecer a sua face mais cruel: disse que também os animais, quando fazem algo errado, ficam vermelhos de vergonha, como nós, os humanos.
Para ela, os animais se equivocam, quando imitam as pessoas. Por isso devora-os. Se engalfinham e mordem o próprio rabo, só por causa dos conflitos entre eles. De acordo com a bruxa, alguns animais querem ser mais espertos, como se tivessem poderes sobrenaturais, e isso ela não tolera. ‘Esperteza se cura com maldade’, vociferou.
Então eu ponderei que os bichos não são maus, apenas são fiéis ao seu instinto de sobrevivência. E que são domesticados pelos homens - e acabam imitando as virtudes e defeitos desses.
A bruxa desconversou, e lembrou de uma fábula cuja moral é de que ‘Burro não entra no céu’.
Foi aí que eu comecei a questionar a história que diz que o melhor amigo do homem é o cachorro. Por que não o burro ou o cavalo? Todos são importantes, se formos pesquisar, desde os tempos mais antigos, sua relação e serviços prestados aos humanos.
Acho que a bruxa perdeu sua imaginação (coisas da idade?). Sugeri que ela fosse ler os clássicos de literatura para crianças, e como os animais aparecem aí, semelhantes ou parecidos com os personagens ‘homo sapiens’.
Ou, talvez, as idéias da bruxa têm fundamento, e os animais não são tão ingênuos quanto pensamos”.
O menino fez uma pequena pausa e eu lembrei que algumas semanas atrás eu havia contado, para sua turma de aula, a anedota do Millôr Fernandes, “O cavalo e o cavaleiro”. Antes que eu recontasse a anedota o menino arrematou, dizendo assim: “Dia desses fui até a casa da bruxa, para uma visitinha, e me surpreendi: recebeu-me cordialmente um casal de poodles adultos”.
Não entendi onde ele quis chegar, mas fiquei na minha. Vai a seguir a fábula do Millôr:
O CAVALO E O CAVALEIRO
Diz que, quando o homem chegou às portas do céu, São Pedro disse: “Não pode entrar!” “Como não posso entrar? Tenho folha corrida de bons antecedentes e tenho bons antecedentes mesmo”. “Sei” – respondeu São Pedro -, “mas no céu ninguém entra sem cavalo”.
E o homem voltou com o rabo entre as pernas. No caminho encontrou um velho amigo e perguntou a ele aonde ia. Disse o amigo que ia para o céu. Ele lhe explicou então que, sem cavalo, neca de céu. O amigo então sugeriu: “Olha aqui, São Pedro já está velho. Você fica de quatro, eu monto em você. Ele não percebe nada porque já está velho e míope e nós entramos no céu”. E assim fizeram.
Na porta, o Santo olhou o nosso herói: “Opa, você de novo? Ah, conseguiu cavalo, hem? Muito bem, amarre o cavalo aí fora e pode entrar”.
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