NÃO VAMOS ATROPELAR O BOM GOSTO
Texto literário é aquele que sobrevive ao passar do tempo. Não é descartável dias depois, é, no mínimo, reutilizável. Pode/deve ser reescrito, lapidado, como o artista faz com sua obra.
O que acontece, cada vez mais, principalmente com o velocidade da internet, é o apelo para espalhar pelo mundo nossa "obra". Mas aí estamos enredados mais ao narcisismo e à vontade de "aparecer", do que à necessidade de fazer balançar a sociedade com nossa literatura.
Com essa pressa e presos ao desejo de que olhem para nós, "vejam como tenho idéias brilhantes", ficamos atolados à superfície, e pouco tocamos/alcançamos os conceitos e imagens, que tornam possível pensar e sentir a beleza.
Antes de semearmos nossa "obra" no mundo, deveríamos dar-lhe um tempo para germinar, acostumar-se com as condições ambientais, para que de fato seja fértil. Aguardar alguns dias para então relê-la e perguntar: vai para o lixo? É descartável? Reutilizável? Como pode ser melhorada?
O pior é que a maioria de nós, escritores de província, está convencido de que escreve bem. Claro, nossos familiares e amigos, mesmo tendo ressalvas e algum conhecimento da coisa, quase sempre vão nos elogiar.
Acima de tudo, não quero que meu texto suscite, ou o amor, ou o ódio, mas que possibilite, minimamente, uma abertura para a reflexão.
Genial, entre outras coisas da crônica abaixo, é a afirmação de Sant'Anna de que "aos 17 anos (...) não entendia por que Bandeira ou Drummond levavam cinco anos para publicar um livrinho com quarenta e tantos poeminhas."
Vejam como a pressa caminha na direção contrária da "boa" poesia/literatura.
Eu tinha uns 17 anos. E Manuel Bandeira era, então, considerado o maior poeta do país. E com 17 anos é não só desculpável, mas aconselhável que as pessoas façam a catarse de seus sentimentos em forma de versos. Os reincidentes, é claro, continuam vida afora e podem pelos versos chegar à poesia.
Morando numa cidade do interior, eu olhava o Rio de Janeiro onde resplandecia a glória literária de alguns mitos daquela época. Então fiz como muito adolescente faz: juntei os meus versos, saí com eles debaixo do braço fui mostrá-los a Bandeira e Drummond.
Toda vez que, hoje em dia, algum poeta iniciante me procura, me lembro do que se passou comigo em relação a Manuel Bandeira. Para alguns tenho narrado o fato como algo, talvez, pedagógico. Se todo autor quer ver sua obra lida e divulgada, o jovem tem uma ansiedade específica. Ele não dispõe de editoras, e, ainda ninguém, precisa do aval do outro para se entender. E espera que o outro lhe abra o caminho e reconheça seu talento.
Ser jovem é muito dificultoso.
O fato foi que meu irmão Carlos, no Rio, conseguiu um encontro nosso com Bandeira. E um dia desembarco nesta cidade pela primeira vez vendo o mar, pela primeira vez cara a cara com os poetões da época.
Encurtarei a estória. De repente, estou subindo num elevador ali na Av. Beira-Mar, onde morava Bandeira. Eu havia trazido um livro com centenas de poemas, que um amigo encadernou. Naquela época escrevia muito, trezentos e tantos poemas por ano. E não entendia por que Bandeira ou Drumond levavam cinco anos para publicar um livrinho com quarenta e tantos poeminhas. A necessidade de escrever era tal, que dormia com papel e lápis ao lado da cama ou, às vezes, com a própria máquina de escrever. Assim, quando a poesia baixava nos lençóis adolescentes, bastava pôr os braços para fora e registrar. E assim podia dormir aliviado.
Mas o poeta havia pedido aos intermediários que eu fizesse uma seleção dos textos. O que era justo. E Bandeira tinha sempre uma exigência: o estreante deveria trazer algum poema com rima e métrica, um soneto, por exemplo. Era uma maneira de ver se o candidato havia feito opção pelo verso livre por incompetência ou por conhecimento de causa.
Abriu-se a porta do apartamento. Eu nunca tinha estado em apartamento de escritor. A rigor não posso nem garantir se havia visto algum escritor de verdade assim tão perto. E não estava em condições emocionais de reparar em nada. Fingia uma tensa naturalidade mineira. O irmão mais velho ali ao lado para garantir.
A conversa foi curta. Tudo não deve ter passado de dez a quinze minutos. Lembro que Bandeira estava preparando um café ou chá e nos ofereceu. Havia uma outra pessoa, um vulto cinza por ali, com o qual conversava quando chegamos. Bandeira se levantava de vez em quando para pegar uma coisa ou outra. E tossia. Tossia talvez já profissionalmente, como tuberculoso convicto.
Lá pelas tantas, ele disse: pode deixar aí os seus versos. Não precisa deixar todos, escolha os melhores. Vou ler. Se não forem bons, eu digo, hein?!
– Claro, é isso que eu quero – respondi juvenilmente, certo de que ele ia acabar gostando.
Voltei para Juiz de Fora. Acho que não esperava que o poeta respondesse.Um dia chega uma carta. Envelope fino, papel de seda, umas dez linhas. Começava assim: “Achei muito ruins os teus versos”. A seguir citava uns três poemas melhores e os versos finais do “Poema aos poemas que ainda não foram escritos”. Oh! Gratificação! ele copiara com sua letra aqueles versos: “saber que os poemas que ainda não foram escritos/ virão como o parente longínquo,/como a noite/ e como a morte”.
Não fiquei triste ou chocado com sua crítica sincera. Olhei as bananeiras do quintal vizinho com um certo suspiro esperançoso. Levantei-me, saí andando pela casa, com um ar de parvo feliz. Eu havia feito quatro versos que agradaram ao poeta grande.
A poesia, então, era possível.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Porta de colégio e outras crônicas. 3 ed. São Paulo: Ática, 2000.
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