segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Manchete


No amor tudo é imposto,
multas, retaliações, taxas, 
cortes, tachações...
Amor infantil ou adulto,
todos pagam seu tributo.
E tem coisa bem pior:
aquele amor que é só manchete,
má notícia e muito susto!

(Carlos Silveira)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Amor, mais um jogo de palavras?



Para essas criaturas quase divinas,
bem-sucedidas em tudo,
o amor é perfeito,
pouco importa se muitas vezes não tenha fogo e paixão e corpo.
Cruzei diversas vezes por esse estranho cidadão.
A cada dia com seus disfarces e máscaras
e promessas e desculpas.
Ouço as criaturas cantarem em verso e prosa seu amor impossível,
tramado por um jogo de palavras, retas e redondas e quadradas,
claras ou obscuras, estressadas ou surdas, solitárias ou bem-resolvidas,
bem-mastigadas ou mal-comidas.
Cantam o amor jogando para o alto tais jogos de palavras,
enquanto as últimas sempre debocham de seus sonhos idealizados de amor.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Donas do mundo



Contemplo essas garotas poderosas que passam pela rua.
Olham pro lado, olham pra cima, olham pra baixo, menos os meus olhos.
Donas do mundo, eu poderia me dar por vencido.
Assim que elas passam me viro e mapeio quadris e bumbuns,
paraísos que os panos não mostram.
- E daí? - Você me pergunta.
- Daí que foi um jeito que eu inventei pra suportar a indiferença delas.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Passarinho engaiolado - Rubem Alves


Dentro de uma linda gaiola vivia um passarinho. De sua vida o mínimo que se poderia dizer era que era segura e tranquila como seguras e tranquilas são as vidas das pessoas bem casadas e dos funcionários públicos.

Era monótona, é verdade. Mas a monotonia é o preço que se paga pela segurança. Não há muito o que fazer dentro dos limites de uma gaiola, seja ela feita com arames de ferro ou de deveres. Os sonhos aparecem, mas logo morrem, por não haver espaço para baterem suas asas. Só fica um grande buraco na alma, que cada um enche como pode. Assim, restava ao passarinho ficar pulando de um poleiro para outro, comer, beber, dormir e cantar. O seu canto era o aluguel que pagava ao seu dono pelo gozo da segurança da gaiola.

Bem se lembrava do dia em que, enganado pelo alpiste, entrou no alçapão. Alçapões são assim; têm sempre uma coisa apetitosa dentro. Do alçapão para a gaiola o caminho foi curto, através da Ponte dos Suspiros.

Há aquele famoso poema do Guerra Junqueiro, sobre o melro, o pássaro das risadas de cristal. O velho cura, rancoroso, encontrara seu ninho e prendera os seus filhotes na gaiola. A mãe, desesperada com o destino dos filhos, e incapaz de abrir a portinha de ferro, lhes traz no bico um galho de veneno. "Meus filhos, a existência é boa só quando é livre. A liberdade é a lei. Prende-se a asa, mas a alma voa… Ó filhos, voemos pelo azul!… Comei!"

É certo que a mãe do passarinho nunca lera o poeta, pois o que ela disse ao seu filho foi: "Finalmente minhas orações foram respondidas. Você está seguro, pelo resto de sua vida. Nada há a temer. Não é preciso se preocupar. Acostuma-se. Cante bonito. Agora posso morrer em paz!"

Do seu pequeno espaço, ele olhava os outros passarinhos. Os bem-te-vis, atrás dos bichinhos; os sanhaços, entrando mamões adentro; os beija-flores, com seu mágico bater de asas; os urubus, nos seus voos tranquilos da fundura do céu; as rolinhas, arrulhando, fazendo amor; as pombas, voando como flechas. Ah! Os prudentes conselhos maternos não o tranquilizavam Ele queria ser como os outros pássaros, livres… Ah! Se aquela maldita porta se abrisse.

Pois não é que, para surpresa sua, um dia o seu dono a esqueceu aberta? Ele poderia agora realizar todos os seus sonhos. Estava livre, livre, livre!

Saiu. Voou para o galho mais próximo. Olhou para baixo. Puxa! Como era alto. Sentiu um pouco de tontura. Estava acostumado com o chão da gaiola, bem pertinho. Teve medo de cair. Agachou-se no galho, para ter mais firmeza. Viu uma outra árvore mais distante. Teve vontade de ir até lá. Perguntou-se se suas asas aguentariam. Elas não estavam acostumadas.

O melhor seria não abusar, logo no primeiro dia. Agarrou-se mais firmemente ainda. Neste momento, um insetinho passou voando bem na frente do seu bico. Chegara a hora. Esticou o pescoço o mais que pôde, mas o insetinho não era bobo. Sumiu mostrando a língua.

— Ei, você! – era uma passarinha. – Vamos voar juntos até o quintal do vizinho. Há uma linda pimenteira, carregadinha de pimentas vermelhas. Deliciosas. Apenas é preciso prestar atenção no gato, que anda por lá… Só o nome gato lhe deu um arrepio. Disse para a passarinha que não gostava de pimentas. A passarinha procurou outro companheiro. Ele preferiu ficar com fome. Chegou o fim da tarde e, com ele a tristeza do crepúsculo. A noite se aproximava. Onde iria dormir? Lembrou-se do prego amigo, na parede da cozinha, onde a sua gaiola ficava dependurada. Teve saudades dele. Teria de dormir num galho de árvore, sem proteção. Gatos sobem em árvores? Eles enxergam no escuro? E era preciso não esquecer os gambás. E tinha de pensar nos meninos com seus estilingues, no dia seguinte.

Tremeu de medo. Nunca imaginara que a liberdade fosse tão complicada. Somente podem gozar a liberdade aqueles que têm coragem. Ele não tinha. Teve saudades da gaiola. Voltou. Felizmente a porta ainda estava aberta.

Neste momento, chegou o dono. Vendo a porta aberta disse:

— Passarinho bobo. Não viu que a porta estava aberta. Deve estar meio cego. Pois passarinho de verdade não fica em gaiola. Gosta mesmo é de voar…

sábado, 29 de dezembro de 2018

Parece que algumas coisas não acontecem por acaso



Saindo do mercado, pensava se o melhor seria dar umas moedas pra aquelas crianças que ali pediam, filhas de índios Kaigang, ou se havia outra alternativa para dirimir a miséria desse mundo. Eis que me deparo com uma senhora no meio da rua movimentada, agarrando um filhote de gato. Minha pretensão de ser um homem melhor em 2019 me tirou do lugar de espectador. Pedi pro atendente da farmácia em frente, que assistia à cena, se poderia conseguir uma caixa. Dirigi-me à senhora, que agora tentava acalmar a gatinha assustada, e vi nos seus olhos aquele brilho, uma mistura de indignação e gratidão, aquele sentimento humanitário que muitas pessoas têm.
O rapaz veio com a caixa, juntaram-se mais duas garotas atendentes, opinaram que o bichinho estava apavorado e com sede e, na hora, baixou aquela chuva torrencial. Ficamos debaixo do toldo da farmácia e de novo olhei pra senhora que agarrou a gatinha no meio da rua e vi que ela, em silêncio, me suplicava por algo.
- Está bem. Vou levar o bichinho. Meses atrás envenenaram meu gato, companheiro de longos anos.
Enquanto esperava a chuva diminuir, brotaram as velhas dúvidas. Posso ou não posso adotar o bicho. Como fazer quando viajar? E o apego, e o risco de perder sua companhia, ante os perigos dessa vida?
Dirijo-me ao primeiro ponto de táxi. Preocupado com o calor e sufoco do bichinho dentro daquela caixa, o motorista ligou o ar condicionado. E falou e falou de mais essa problemática, a dos animais abandonados, além das ruas da cidade esburacadas. Eu apenas ouvia, e ele estava tão concentrado nas suas teses que, numa das esquinas, cruzou o sinal vermelho.
A primeira coisa que me veio foi de uma clínica veterinária perto de minha casa. Chama-se FELINNE. A gatinha devia ter menos de trinta dias, necessitava de alguns cuidados, antes de ser adotada.
Abri a porta da clinica com a caixa no colo e uma garota veio ao meu encontro. Não sei se o ano todo as pessoas têm esse sentimento humanitário, ou se isso surge à flor da pele quando se aproxima a virada de ano.
Narrei-lhe o que acontecera e a garota, formanda em Veterinária, falou-me que a filhote necessitava de vacinas e, logo, iria ser castrada, pra depois ser colocada pra adoção. Ato contínuo, disse-me que levaria pra sua casa aquela-abandonada-rejeitada-por-algum-humano. Não viajaria no feriado porque precisava cuidar de um outro gato seu, que teve uma fratura no fêmur.
Tratei de juntar uns trocos pra ajudar na ração e vacinas. Deixei meu número de telefone pra ser avisado, quando o filhote estivesse em condições de ser adotado. Ao me despedir, fiquei perplexo, aquele anjo ainda me disse "Obrigado". Eu é que agradeci, imagina, teremos um mundo melhor se todos tivermos esse cuidado para com os animais.
É, tenho certeza de que a filhote-de-felino-abandonada não cruzou o meu caminho por acaso.


domingo, 23 de dezembro de 2018

Saber pra viver


Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.


paulo leminski

sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Espelho


Existem, no entanto, várias formas de pobreza.
E há, entre todas, uma que escapa às estatísticas e aos indicadores:
é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos.

Mia Couto

Tudo seria perfeito



Eu, que busco a palavra perfeita pra colocar numa história perfeita, vejo um corpo perfeito saindo de uma academia e desfilando pela avenida. Tudo seria perfeito se eu não fosse um desocupado que insiste em rabiscar umas coisas numa folha em branco.

(B. B. Palermo)                           

terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Lembro que ele...



Lembro que ele guardava mágoas e praguejava e maldizia uns carinhas e umas fulaninhas, eles eram "cheios" e elas umas exibidas que se achavam.
Lembro que ele usava a expressão "cunhenhem", e significava algo como um "coitado", um "samoco" ou um "sem noção".
Lembro que ele buscava uma namorada que seria seu par perfeito.
Lembro que compartilhávamos a mesa no trabalho, e ele se deixava encantar com as histórias que eu inventava, de aproximação às garotas e fiascos e perdas e conquistas.
Chamava-se Edilson e nada sei de seus pais e irmãos, quem está por aí e quem já partiu.
Mais do que as palavras que saíam de sua boca, lembro que sua expressão facial refletia um sujeito ansioso e agitado.
Lembro que vim do norte do Rio Grande do Sul e que ele me instruía sobre os bares e boates e padarias e puteiros, onde rolavam orgias e outras coisas que deviam ser evitadas.
Lembro que naquela época não havia HIV e poucos usavam camisinha, e chato e gonorreia eram coisas normais.
Lembro que não tínhamos medo da morte e do futuro, que vivíamos o "Carpe diem", lição que aprendemos com o filme "Sociedade dos poetas mortos". Lembro que a cidade tinha dois cinemas e muitos filmes eram bons, e então assistíamos no domingo e, de novo, na terça-feira.
Lembro que o Edilson tinha temperamento explosivo e fazia cara feia para chefes e patrões e professores "xiitas", mas era nosso amigo e aceitava piadas e brincadeiras.
Lembro que ele dizia que quando fosse pra sala de aula os alunos iam se foder com ele.
Lembro que no futebol ele era pouco habilidoso e batia muito.
Lembro que ele sonhava ter um carro e, assim, conquistaria as garotas.
Lembro que nas festas ele enchia a cara e tinha soluços e crises de choro. Lembro que nessas horas necessitava de muita proteção, como se fosse o caçula da turma, ou a criança mais nova da família.
Lembro que ele lutou durante anos contra um tumor no cérebro, e que eu estava distante, enrolado com minhas tentativas e alguns sucessos e alguns fracassos e paranoias. E quando ele partiu dessa lembro de ouvir a notícia, mas viajava de férias e, indiferente, não fiz qualquer esforço pra levantar acampamento.
Hoje tento recordar em que região do cemitério ele jaz.
Agora não é uma questão de lembrar. Disso eu tenho certeza. O tempo é implacável. A indiferença para com meu amigo, a falta de memória e os olhos fixos para os desejos mundanos, tudo isso vai nos derrubar e deixar perplexos. O tempo nos leva de roldão, embora digam por aí que pensar nisso é mera filosofia irreal e inútil.

(B. B. Palermo)                           

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O Casarão



Sou o cara mais ingênuo desta cidade.
Quando o catador de lixo disse que leu
o livro "O mundo de Sofia" no Casarão,
eu não fazia a mínima ideia de que era na
Penitenciária Modulada.

(B. B. Palermo)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Encontrei Hellen numa parada de ônibus


Desenvoltura de bailarina, cabelos curtos pintados num tom esverdeado, cor semelhante à dos olhos.
Hellen frequenta aulas de dança desde menina, estuda fotografia e pensa cursar medicina.
Mas Hellen não deve ter pressa. Ela tem dezessete anos.
Hellen é minha amiga e fica à vontade para me dizer como é o seu jeito de ser. Com frequência ela abandona suas escolhas e parte pra algo novo.
Hellen é minha amiga, mas ficou ruborizada e eu fiquei ruborizado, pelo menos no início de nosso papo. Mas isso sempre acontece nos encontros aleatórios, numa parada de ônibus.
Prefiro ônibus ao carro, me enxergo nos diversos olhares e, se não fosse na parada de ônibus no centro da cidade, dificilmente me alegraria com aquele olhar da cor do mar.
Estudar em boas escolas, ser bem amparada econômica e afetivamente pelos pais, fazem com que Hellen tenha um futuro promissor.
E eu não posso reclamar, tendo essas fontes cristalinas que me inspiram.
Hellen trouxe tantas novidades, e logo nos despedimos, acho que foi por isso que tive dificuldade para acompanhar seu raciocínio, talvez ela falasse um pouco rápido demais, ou porque navegamos em diferentes gerações, Hellen no limite da adolescência e a meio passo da vida adulta, Cadelão pedalando na subida da meia idade.
Hoje não tive um choque de realidade, mas sim de juventude.
Hellen não precisa se estressar com doces e frituras, não precisa se resignar com meia dúzia de folhas de alface durante o almoço, nem suportar adoçantes no café da manhã.
Hellen, o mundo se descortina diante dos teus olhos verdes - fiquei pensando depois, mas não tive tempo nem coragem de dizer-Lhe.
Ser amigo de Hellen desde sua infância, ser amigo dos seus pais, ser um poeta fracassado, não impedem que eu tenha medo de tropeçar e despencar em direção ao abismo. Mas com a imagem de Hellen assim tão viva, saber que Ela existe, tornam o abismo uma tentação. Sim, acreditem, ele mora a meio passo do paraíso.



(B. B. Palermo)

Nada a ver, menino!

  Nada a ver, menino!   Baratas, sobreviventes neste planeta há 6 milhões de anos, passeiam pela sala cantarolando um samba do “Demô...