terça-feira, 16 de maio de 2017

Poetas de minha terra - Elisa Iv



Ainda jovem desenvolveu
Distúrbios de carinhos
Acabou internada entre braços e abraços
Dosada com beijos e caricias
Viciada em malicia
Coitada muito jovem teve seu primeiro surto
Saiu gritando pelas ruas, deem-me carinhos!
Me façam elogios
Se deitem comigo
Na metade da vida já não via mais saída
Foi trancada, envolvida
Na mais desgraçada clinica
Onde o chão é feito de camisas
Vestidos, corpos despidos
Sentidos jogados no piso!
O amor esse era o pior quarto
Um verdadeiro cubículo
Onde ela se esfregava, gritava
Respirava o medo
Uma doença que fazia com que ela passasse noites gemendo
Pobre mulher
Sedenta por cortejos
Sempre molhando seus dedos
Nas ruas das paixões era encontrada se lambendo
Uma vida de desespero
Ter sua mente tão vulnerável ao despejo
Sua cura ela imaginava ser o apego
Mas sua loucura era maior
Banhada pelo desejo
Não aguentava duas noites
Logo largava o tratamento
E se jogava no primeiro bueiro
Era tirada de la aos trapos
Enrolada em ramos de afetos
Despida por amores pornográficos
Com a boca cheia de silencio
E a mente perdida em devaneios
Pobre menina
Acabou a vida sendo amante das despedidas
Trancada na lucidez de amar sem saber amar a vida
Sua mente era capaz de aguentar uma companhia
Mas seu distúrbio por prazeres era muito valente
Suportava ser louca
Mas não suportava por muito tempo ser de outra pessoa
Seu fim foi exatamente assim
Sozinha entre paredes frias
Gritando por amores que ela mesmo sabia
Que depois de uma noite abandonaria.

O prazer de ouvir e contar histórias - Carlos Daitschman


A capital paranaense possui inúmeros contadores de histórias. Conheça um pouco dessa arte e também o trabalho de Carlos Daitschman, um dos pioneiros na retomada da arte de narrar, ouvir e dramatizar histórias na cidade.

“Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quente. E desde então, ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelo café. Como era tocante vê-los no ‘17’! O homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando do peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial… Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho: ‘Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!’ Dito isso, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho n’água. E a água fez redemoinho, que foi depois serenando, serenando… até que o peixinho morreu afogado…”

O poema em prosa é do gaúcho Mario Quintana, chamado Velha História, publicado em 1976. É a primeira história de autor que o ator e contador de histórias Carlos Daitschman discursou profissionalmente, quando conseguiu que as pessoas imaginassem a literatura apenas ouvindo-o, sozinho, sem adereço ou objeto para efeito especial. Daitschman é um dos pioneiros da retomada da contação de histórias em Curitiba. Ele começou na década de 90 e hoje, além de trabalhar com grupos e comunidades através da Fundação Cultural de Curitiba, atua no projeto Curitiba Qual é a Sua, junto com Lúcia Sartori, que pretende conhecer as origens dos habitantes locais.
Daitschman é exemplo de como o gosto por literatura faz a diferença na vida das pessoas. Nascido em Curitiba em 1955, foi recém-nascido para Paranaguá e só voltou à capital para estudar, aos 14 anos. Veio morar com a avó, em uma casa antiga onde, por ser tímido, se escondia atrás dos livros. “Minha mãe diz que contava histórias para a gente dormir, mas não me recordo, tenho uma memória terrível de infância; mas sei que existiam livros na estante de casa ao meu alcance, assim como as enciclopédias Barsa e Larousse na mesa do meu pai”, conta. “Havia muito Monteiro Lobato, também A Sabedoria da Índia e da China, e quando já tinha lido todos peguei os de adultos, até um do Henry Miller que sumiu quando descobriram que eu estava lendo.”
O tempo passou, Daitschman pensou em fazer Engenharia Química, mas desistiu pela falta de aptidão com as ciências exatas, e acabou na faculdade de Psicologia. Na época, já possuía certa sensibilidade artística, pois participara de um Festival de Arte no Colégio Estadual, mas o despertar ocorreu quando cursou uma oficina ministrada por Antonio Carlos Kraide. Seguiu-se a carreira de ator e, em 1991, passou num concurso para a Fundação Cultural de Curitiba. Trabalhou em centros culturais da instituição e, em 1995, foi convidado a contar histórias nas bibliotecas. “Sai contando histórias para crianças, depois para adultos. Percebi rapidamente que não era uma brincadeira, que mexia profundamente com as pessoas. Quando fui a hospitais psiquiátricos, a pedido de ex-colegas de faculdade, começaram a acontecer coisas como, por exemplo, pacientes que não entravam em contato verbal começarem a contar histórias e cantar junto quando eu instigava. Então decidi estudar psicologia, antropologia, história das civilizações e hoje sei que não sei nada, mas estou em busca da história essencial, que é a história comum, de todos nós.”
Ele explica as diferenças entre o trabalho do contador e do ator. “O contador de histórias é uma espécie de ator, mas com o personagem você interpreta, tem que fazer o outro acreditar que é aquilo. Para mim, a grande diferença, e só fui descobrir muito depois que comecei, é que um contador nunca é maior que a história que ele conta.” A busca de Daitschman são as histórias populares (de lobisomem, boi tatá) que geralmente não estão escritas, mas fazem parte de tradições folclóricas. “Com o tempo percebi a importância de escutar e saber a história de cada indivíduo. Na verdade, colocamos as pessoas em papéis, só que elas são mais do que a gente define. Os problemas, as emoções, as paixões estão em todos os lugares. O que há são diferenças sociais, econômicas e culturais no sentido de educação formal. Mas posso afirmar que algumas pessoas que me ensinaram muito não sabem nem ler, nem escrever, pois quando você se abre para a escuta, cria-se um vínculo muito forte.” Nas narrativas escolhidas pelo artista, não existe moral pronta. “Não gosto de histórias como ‘era uma vez um menininho que não sabia dizer bom dia’, porque a criança já sabe onde vai dar. Não tenho nada a ensinar, só conto histórias que têm sentido para mim, pois se não há empatia não haverá verdade.”

Do site https://melissacrocetti.wordpress.com/2010/07/15/era-uma-vez/

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Aquele clube - Carlos Drummond de Andrade


E se a desconfiança vira paranoia?

O Clube dos Desconfiados teve existência breve. Sua utilidade era indiscutível. Por isso congregou inúmeros desconfiados, que em sociedade se sentiram mais garantidos sobre possíveis más intenções e surpresas desagradáveis. Uma vez reunidos e organizados, com estatutos e diretoria, passaram a desconfiar dos outros e de si mesmos. Marcada assembleia-geral extraordinária para exame da situação, ninguém compareceu.
Ficaram todos na esquina próxima, espiando quem entrava na sede. O porteiro, desconfiadíssimo, sumiu.

domingo, 14 de maio de 2017

Autoajuda poética - Claudia Tajes


Os autores de autoajuda que não se ofendam, mas o que vem a seguir é resultado de uma pesquisa da Universidade de Liverpool, publicada em 2013. Postada aqui e ali, a tal pesquisa voltou à ativa. Diz o seguinte: “Especialistas em ciência, psicologia e literatura descobriram que a poesia é mais útil que os livros de autoajuda por afetar o lado direito do cérebro, onde são armazenadas nossas informações autobiográficas, ajudando a refletir sobre elas e entendê-las a partir de outras perspectivas”. Estava por baixo da carne seca e fiz o teste. Ao ler a ironia amarga de Fernando Pessoa na voz de Álvaro de Campos – “Nunca conheci na vida quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo” –, encontrei consolo. Ao topar com uma pílula de autoajuda – “Um homem só está derrotado quando desiste” –, quase me deprimi para sempre.
Já que funcionou, busquei remédio para outras mazelas na farmacopeia poética brasileira. Problemas com a família? Tente Meireles, Cecília: “Minha família anda longe. Reflete-se em minha vida, mas não acontece nada: por mais que eu esteja lembrada, ela se faz de esquecida: não há comunicação!”.
De repente, uma canseira? Tome Manuel Bandeira: “Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem comportado / Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente / protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor”.
Se chegou ao seu limite, Leminski: “Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonto. Ninguém tem nada com isso”.
Para todos os dias da semana, Quintana: “O mais feroz dos animais domésticos / É o relógio de parede: conheço um que já devorou / três gerações da minha família”.
E se o caso for de amor, sofrido ou correspondido, quem mais senão Drummond? “Amor é o que se aprende no limite, depois de se arquivar toda a ciência herdada, ouvida. Amor começa tarde.”
Para deixar uma pulga atrás da orelha, uma dose de Angélica Freitas: “Quando você viu na tv /aquelas pessoas em fila na chuva / à noite numa estrada / na fronteira de um país que não as deseja / (…)  não pensou duas vezes / nem trocou o canal / e foi pegar comida / na geladeira”. Ou então, Waly Salomão: “O que menos quero pro meu dia / polidez, boas maneiras / Por certo, um Professor de Etiquetas / não presenciou o ato em que fui concebido”.
De Antonio Cicero, bom para todas as horas, fica uma pequena prova: “Eu viveria tantas mortes / morreria tantas vidas / jamais me queixaria/ jamais”.
E quando o amor é tanto que nos derrete, Fabrício Corsaletti: “Se eu fosse um travesti usaria o seu nome/ se um dia eu mudar de sexo adotarei o seu nome”.
É possível encontrar poemas para todos os estados de espírito. Os bons poetas brasileiros são incontáveis, e os ruins ocupariam uma enciclopédia inteira, se ainda existissem enciclopédias. Desculpem só dois gaúchos, Quintana e Angélica, nessa lista. Não quis magoar os amigos poetas mais próximos deixando um ou vários de fora – então espero não ter magoado todos. Os estrangeiros ficam para o próximo tratamento. Sobre autoajuda e poesia, o caso mais curioso é o de Clarice Lispector, que não foi poeta na vida, mas tem seus supostos versos divulgados em sites, páginas, e-mails, bloquinhos, ímãs de geladeira, panos de prato, azulejos, camisetas, canecas e, se duvidar, cuecas. Já que é assim, e como é Dia das Mães, encerro com uma frase que, afirma a internet, é da Clarice. Se não for, fica a intenção: “À medida em que os filhos crescem, a mãe deve diminuir de tamanho. Mas a tendência da gente é continuar a ser enorme”.
(Zero Hora, 13 e 14 de maio de 2017)

sábado, 13 de maio de 2017

RAZÃO - L. F. Verissimo


(Da série "Poesia numa hora destas?!")

Você quer razão para um porre?
No fim deste corre-corre
- a gente morre!

Esses adolescentes


Adolescentes falam rápido demais. Onde querem chegar com tanta pressa?

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Qual seu número?


Em uma agência caça-talentos, o entrevistador pergunta:
- E aí, qual é o seu número?
O rapaz responde todo entusiasmado:
- Eu imito passarinhos!
Com desdém, o entrevistador logo diz:
- Meu filho, isso todo mundo faz!
Entristecido, o rapaz dirige-se até a janela e sai voando.

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Sfot poc - L. F. Verissimo


Chamava-se Odacir e desde pequeno, desde que começara a falar, demonstrara uma estranha peculiaridade. Odacir falava como se escreve. Sua primeira palavra não foi apenas “Gugu”. Foi:
— Gu, hífen, gu.
Os pais se entreolharam, atônitos. O menino era um fenômeno. O pediatra não pôde explicar o que era aquilo. Apenas levantou uma dúvida.
           — Não tenho certeza que “gugu” se escreve com hífen. Acho que é uma palavra só, como todas as expressões desse tipo. “Dadá” etc.
           — Da, hífen, dá – disse o bebê, como que para liquidar com todas as dúvidas.
Um dia, a mãe veio correndo. Ouvira, do berço, o Odacir chamando:
— Mama sfot poc.
E, quando ela chegou perto:
— Mama sfotoim poc.
Só depois de muito tempo os pais se deram conta. “Sfot Poc” era ponto de exclamação e “sfotoim poc”, ponto de interrogação.
Na escola, tentaram corrigir o menino.
— Odacir!
— Presente sfot poc.
— Vá para a sala da diretora!
— Mas o que foi que eu fiz sfotoim poc.
Com o tempo e as leituras, Odacir foi enriquecendo seu repertório de sons. Quando citava um trecho literário, começava e terminava a citaçao com “spt, spt”. Eram as aspas. Aliás, não dizia nada sem antes prefaciar um “zit”. Era o travessão. Foi para a sua primeira namorada que ele disse certa vez, maravilhado com a própria descoberta:
— Zit Marilda plic (vírgula) você já se deu conta que a gente sempre fala diálogo sfotoim poc.
— O quê?
— Zit nós sfot poc. Tudo que a gente diz é diálogo sfot poc.
— Olhe, Odacir. Você tem que parar de falar desse jeito. Eu gosto de você, mas o pessoal fala que você é meio biruta.
— Zit spt spt biruta spt spt sfotoim poc.
— Viu só? Você não pára de fazer esses ruídos. E ainda por cima, quando diz “sfotoim”, cospe no meu olho.
O namoro acabou. Odacir aceitou o fato filosoficamente, aproveitando para citar o poeta.
— Zit spt spt. Que seja eterno enquanto dure poc poc poc spt spt. Poc poc poc eram as reticências. 
Odacir era fascinado por palavras. Tornou-se o orador da turma e até hoje o seu discurso de formatura (em Letras) é lembrado na faculdade. Como os colegas conheciam os hábitos de Odacir, mas os pais e os convidados não, cada novo som do Odacir era interpretado, aos cochichos, na platéia:
— Zit meus senhores e minhas senhoras poc poc.
— Poc, poc?
— Dois-pontos.
— Que rapaz estranho…
— A senhora ainda não viu nada…
Quando lia um texto mais extenso, Odacir acompanhava a leitura com o corpo. As pessoas viam, literalmente, o Odacir mudar de parágrafo.
— Mas ele parece que está diminuindo de tamanho!
— Não, não. É que a cada novo parágrafo ele se abaixa um pouco.
Quando chegava ao fim de uma folha, Odacir estava quase no chão. Levantava-se para começar a ler a folha seguinte.
— Colegas sfot poc Mestres sfot poc Pais sfot poc. No limiar de uma era de grandes transformações sociais plic o que nós plic formandos em Letras plic podemos oferecer ao mundo sfotoim poc.
A grande realização de Odacir foi o trema. Para interpretar o trema, Odacir não queria usar poc, poc, que podia ser confundido com dois pontos. Poc plic era ponto e vírgula. Um spt só era apóstrofe. Como seria trema? Odacir inventou um estalo de língua, algo como tlc, tlc. Difícil de fazer e até perigoso. Ainda bem que tinha poucas oportunidades de usar o trema.
Odacir, apesar de formado em Letras, acabou indo trabalhar no escritório de contabilidade do pai. Levava uma vida normal. Lia muito e sua conversa era entrecortada de spt, spts, citações dos seus autores favoritos. Mesmo assim casou-se – na cerimônia, quando Odacir disse “Aceito sfot poc”, o padre foi visto discretamente enxugando um olho – e teve um filho. E qual não foi o seu horror ao ouvir o primeiro som produzido pelo recém-nascido:
— Zzzwwwwuauwwwuauzzz!
— Zit o que é isso sfotoim e sfot poc?
— Parece – disse a mulher, atônita – o som de uma guitarra elétrica.
O filho de Odacir, desde o berço, fazia a própria trilha sonora. Para a tristeza do pai, produzia até efeitos especiais, como câmara de eco. Cresceu sem dizer uma palavra. Até hoje anda por dentro de casa reverberando como um sintetizador eletrônico. É normal e feliz, mas o único som mais ou menos inteligível – pelo menos para seus pais – que faz é “tump tump”, imitando o contrabaixo elétrico.
— Zit meu filho poc poc poc. Meu próprio filho poc poc poc. – diz Odacir.
Poc, poc, poc.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Conhecer-se a si mesmo


"Quem conhece os outros é sábio; quem conhece a si mesmo é iluminado" (provérbio chinês).

"Eu sofro de minfobia
tenho medo de mim mesmo
mas me enfrento todo dia" (Millôr Fernandes).

Caçador de mim - 14 Bis


Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim

Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim

Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura

Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu, caçador de mim

(Sérgio Magrão e Luís Carlos Sá)

Sherwood Anderson - Quem foi este cara?


Em alguma página de "O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio", Bukowski fala desse escritor. Confesso que nada li. Vou em busca de traduções dele nesta semana. Eis um trecho que encontrei no google:

"No princípio quando o mundo era novo havia um grande número de pensamentos, mas não aquilo que se chama uma verdade. O homem fez ele próprio as verdades e cada verdade era um composto de um grande número de pensamentos vagos. As verdades estavam por todo o mundo e todas elas eram bonitas.
O velho tinha enumerado centenas de verdades no seu livro. Não vou tentar contá-las todas. Havia a verdade da virgindade e a verdade da paixão, a verdade da riqueza e da pobreza, da frugalidade e da prodigalidade, da atenção e do abandono. Eram centenas e centenas, as verdades, e todas elas eram bonitas.
E então vieram as pessoas. Cada uma delas assim que aparecia agarrava uma das verdades e algumas que eram mais fortes apoderavam-se de uma dúzia delas.
Foram as verdades que tornaram as pessoas grotescas. O velho tinha uma teoria bastante elaborada a tal propósito. Era ideia dele que no momento em que uma pessoa tomava uma das verdades para si própria, chamando-lhe a sua verdade, e se esforçava por conduzir a sua vida de acordo com essa verdade, a pessoa tornava-se grotesca e a verdade que abraçava tornava-se numa mentira."


- Sherwood Anderson, em "Winesburg, Ohio". [tradução José Lima; posfácio de John Updike]. Lisboa: Ahab Edições, 2011, p. 23-24.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

O amor bate na aorta - Carlos Drummond de Andrade


Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...