terça-feira, 5 de junho de 2018

Você é foda, hem?


Encontrei nos fundos de uma estante de casa um livro de poemas da família Galhos. Havia uma dedicatória na primeira página de dona Mire ao meu amigo Hilmo. Ela é filha de uma tradicional família de poetas, em São Luiz Gonzaga, no RS. Essa cidade fica na região das Missões, e tem muita história pra contar, muitos poetas conhecidos no sul do Brasil, sendo um deles o grande poeta e repentista Jayme Caetano Braun.
Depois de ficar viúva, dona Mire foi realizar os sonhos de menina, sair pelo mundo, conhecer lugares e pessoas. Mulher muito sociável, sempre disposta a ajudar os outros, mantém uma casa com várias garotas de programa aqui na minha cidade. Escolhidas e instruídas por dona Mire, elas são inteligentes, bonitas e hiperafetivas com os clientes.
O livro deve ter ficado comigo porque, mais do que meu amigo, gosto de poesia. É composto de poemas de avós, filhos e netos e, no geral, são bons poemas, sendo que a maioria dos componentes já está morta.
Recebi a visita de um desses poetas mortos, dias atrás. Não compreendi o que dizia, falava rápido, temendo que a qualquer momento saísse do ar. Misturava línguas e sotaques, português e francês e espanhol e portunhol. Deu uma aflição, sou um palerma que nunca ligou para outros idiomas. A sensação que tive foi de que me censurava pelo fato de não me envergonhar da vida escrota que levo, um desmemoriado que bebe e solta pum e arrota, que não consegue criar obras culturais que sobrevoem o tempo e o espaço das novas gerações, obras que sirvam de modelo e inspiração.
Creio que ele estabeleceu contato porque compartilhamos o gosto pela arte. Como não me deixava falar, eu admirava aquele terno e bigode e pensava Você é fodão, hem? Foi então que ele apontou pro relógio, gesticulou, acho que entendi aquelas palavras aceleradas, pareciam dizer Você pensa que é foda, hem, meu neguinho? Olha a hora, olha a hora, já é quase meia noite e você ainda não desenvolveu nem um terço de tua obra.
Assim sem mais, deixou-me falando sozinho. Fui até a geladeira, abri outra cerveja e constatei que tem morrido muita gente, inclusive gente conhecida. Bateu uma inveja da família Galhos, família de poetas. Li todo o livro e também a biografia de cada um, imaginei cenas e rostos e bravatas e batalhas.
E quanto à minha família? Minha memória não localizou nenhum poeta ou artista que fosse. Parece que se deram por satisfeitos em deixar para as novas gerações algo mais material, como casas ou terrenos ou apartamentos ou chácaras. Nada de artistas ou anarquistas ou revolucionários. Deve ser por isso que meus bisavós e avós e outros parentes mortos estão calados. Nenhum deles, ainda, veio me visitar.

(B. B. Palermo)

domingo, 3 de junho de 2018

A vida é muito triste



Vejo por aí loucos mansos que às vezes ficam injuriados. Alucinados, tomam o caminho mais torto para distorcer a realidade.
Voltei a rezar porque sei que não há hospícios pra todo mundo.
Voltei a blasfemar porque sei que a vida não está fácil, pão e circo andam em círculos.
Os esgotos não dão conta. Como disse o velho Braga, “essenciais são os esgotos da alma. Nossa pobre alma inesgotável”. Mas, coletivamente, ela está em frangalhos. Crianças gigantes clamam por um pai, mas esse está distante, ocupado com missões intergalácticas.
A vida é muito triste. É o que sempre dizem a cozinheira e o lavador de pratos e o açougueiro e a confeiteira e outros tantos. Há muito tempo fazem o que mandam os senhores. Nunca tiveram uma iluminação, como por exemplo matar e incendiar quem os oprime.
A vida é muito triste. Papai, por que não vens pra nos salvar?

(B. B. Palermo)

sábado, 2 de junho de 2018

Erro, ilusão e delírio - Cláudia Laitano


Diante do que não podemos controlar, uma das respostas mais comuns é a fantasia infantil de que alguém mais forte vai aparecer para nos salvar.

Freud distingue três formas de autoengano. A primeira é a que ele chama de “erro”. Uma pessoa mal-informada, convencida de que a Terra é plana ou de que as vacinas fazem mal para a saúde, está cometendo um erro. Esse tipo de equívoco tem cura, mas exige transfusão imediata de fontes de informação e alguma capacidade de autocrítica.
Já a “ilusão” não é necessariamente um erro, mas implica o forte desejo de acreditar em alguma coisa – mesmo contra todas as evidências em contrário. A donzela que espera encontrar um príncipe (ou vice-versa) com quem será feliz para sempre em doce e alegre harmonia cultiva uma das mais antigas e populares ilusões do mundo. Até pode acontecer, claro, mas amores de contos de fadas não são exatamente a regra na vida real. Também nos iludimos quando imaginamos que alguém (mais forte, mais sábio, mais poderoso) será capaz de resolver nossos problemas por nós. Acontece de vez em quando, é verdade, mas geralmente quando ainda somos crianças e nossos problemas estão ao alcance dos superpoderes de uma boa mãe.
Freud chama de “delírio” aquilo que apresenta uma contradição tão grande com a realidade que se aproxima da alucinação psiquiátrica.
Freud escreveu O Futuro de uma Ilusão, em 1927, movido pelo desejo de demonstrar como o nosso irremediável desamparo, como espécie, pode nos levar a trocar a razão pelo alívio fácil do pensamento mágico. A razão nos diz que: 1) desastres acontecem e 2) a morte é incontornável. Não controlamos o destino e, mesmo que tenhamos a sorte de levar uma vida tranquila e sem grandes atropelos, nunca sabemos como essa história vai terminar. Diante dessa sensação de desamparo e fragilidade frente ao que não podemos controlar, uma das respostas humanas mais comuns é a de recorrer à fantasia infantil de que alguém mais forte vai aparecer para nos proteger e salvar. Para a alquebrada Alemanha da época de Sigmund Freud, a resposta veio logo em seguida, na figura de um ditador que se autoproclamava simplesmente “o líder”.
Tornar-se adulto, ensina Freud, significa aceitar que quase nada que nos aflige seriamente será resolvido de forma simples e sem o concurso do nosso próprio esforço e sacrifício. Nos últimos dias, surgiram muitas vozes sensatas tentando entender as origens políticas e sociais da delirante campanha pela volta do regime militar que ganhou fôlego durante a paralisação dos caminhoneiros. Mas o tempo todo eu só me lembrava de Freud: “O ser humano não pode permanecer eternamente criança, tem de finalmente sair ao encontro da ‘vida hostil’. Podemos chamar a isso de educação para a realidade”.
O Brasil precisa crescer, sim, mas não apenas naquilo que pode ser medido pelo PIB.
(Zero Hora, sábado e domingo de 2 e 3 de junho de 2018)

quinta-feira, 12 de abril de 2018

Pós-verdade


Guardei no armário minhas verdades.
O solo é muito pobre. 
A semente bate nas pedras
e desliza e se perde.

Depositei as ferramentas, 
dei um tempo
à palavra e sua escuta.
Agora sou todo sentidos.

Vou bater asas até o alto,
é só o que tenho no currículo.

Penso de novo naquele conceito: liberdade.
Libertar-me das picuinhas do cotidiano e da manada.

Hoje seguirei Fernão Capelo Gaivota.
Voar, voar, subir, subir...
Não importa se isso não passe de um sonho de Ícaro.


(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

Varais de minha vida


a garota na varanda recolhe roupa e o vento e o sol e eu a observo do ônibus e meus olhos cheios de saudade de tantos varais de minha vida

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Nação ZUMBI - Claudia Tajes


A senhora de cabeça baixa estava alheia à conversa do marido e dos filhos. Também não dava a mínima para a gritaria dos três netos pequenos. Devia ter uns 60 e poucos anos e eu, almoçando ao lado, morri de pena por ver uma mulher tão moça com – deduzi – uma doença que a privava do convívio com a família. O garçom trouxe a comida, a senhora não se mexeu, a nora ajeitou melhor o prato, olha, a massa vai esfriar. A mulher pegou o garfo e ficou com ele parado, sempre olhando para baixo, a outra mão sob a mesa. Um dos filhos chamou: “Mãe, não vai comer?”. Ela respondeu sem levantar os olhos: “Depois, estou vendo as férias da Terezinha no Whats”.
Isso que dá ficar de olho na vida dos outros. Sem ter nada a ver com a situação, eu já havia pensado no pior. Nessas doenças que roubam a pessoa dela mesma, que levam embora a presença e a identidade de alguém. É a única coisa que me assombra ainda mais que a reforma da Previdência.
Na verdade, aquela senhora sofria era de Whastsapite aguda, mal que pode acometer gente de todos os gêneros, idades, padrões culturais, econômicos e etc. Pegar é simples, basta um smartphone. A partir daí, o uso que se faz dele é que determina o grau da contaminação. Que anda alta, diga-se.
A fila do supermercado empaca porque a moça se corresponde freneticamente no WhatsApp. Atrás dela, todo mundo bufando. Entretido com algum vídeo que os amigos mandaram, o motorista não vê que o sinal abriu. O sinal fecha, o pessoal começa a buzinar como se não houvesse amanhã. O motorista aproveita e assiste a mais alguns segundos. Pelas ruas, pessoas caminham com a cabeça enterrada nas telas dos seus celulares. Sai da frente, se não elas te atropelam. No restaurante, casais sentados frente a frente conversam animadamente – mas cada um no seu WhatsApp. Em casa, se a conversa da família não rende muito, pelo menos os WhatsApps de todos estão bombando. No cinema, bem na hora em que a tela fica mais escura, a luz de vários celulares denuncia que o WhatsApp não pode esperar pelo fim da sessão.
Era para ser comunicação, virou uma maldição zumbi. É que tudo se resolve pelo WhatsApp. Assuntos de mães e filhos e filhas e pais. DRs de namorados. Combinações de trabalho. Fofocas. Encomendas de remédio, comida, cremes manipulados, marcação de massagem, cabeleireiro, consultas médicas. Até as chamadas transações ilícitas, quais sejam, hoje rolam pelo WhatsApp. Quem insistir em se comunicar no velho estilo ao vivo, corre o risco de ser chamado de ser antissocial.
E quando a gente é incluído – sem pedir – em um grupo? Socorro. Conheço pessoas que nunca mais saíram do quarto por não sobrar tempo para outra atividade que não a de responder mensagens de grupos. Triste.
Para além da contaminação pelo WhatsApp, o celular ainda nos trouxe a epidemia da foto. Tudo agora precisa ser fotografado. Verdade que essa democratização da fotografia fez com que muitos se descobrissem bons fotógrafos. E fotografar é mesmo um prazer, chato é o excesso. Há alguns dias, no AquaRio, aquele aquário carioca onde a Ísis Valverde nadou com cauda de sereia, era quase impossível abrir caminho entre a multidão fotografando. Um menino reclamou: “Putz, o tubarão não fica quieto, cada vez que eu vou fotografar, ele sai nadando”. Pois é, meu jovem, a isso se chama natureza – ainda que subjugada.
E assim, entre mensagens e fotos, a gente segue fazendo o possível para não perder nada. Ou talvez perca um pouco da vida. Nada que não se possa recuperar em seguida, mandando uma foto no WhatsaApp ou fazendo um post que, se Deus quiser, terá dezenas de curtidas.
Zero Hora, 13/14/01/2018.

domingo, 26 de novembro de 2017

De que lado você está?


Descasco um ovo
Giro como quem gira o globo
E o ovo e o globo e todos perguntam:
- De que lado você está?

É duro descascar esse ovo cotidiano
Fazer escolhas sem causar danos
Aos dedos ao ovo ao globo a todos.
- De que lado você está?

Não sei. Embarco e vou até do outro lado e me encontro no início de novo. Sem casca. Sem verdades. Apenas a memória da viagem.
- de que lado você está?

Descasco um ovo giro como quem gira o globo e o ovo e o globo e eu e todos perguntam...


(B. B. Palermo)

domingo, 12 de novembro de 2017

Vai... Procura


Todos buscamos o amor, meu anjo.
Muito busquei. Sorri e também chorei.
Tão jovem, tens um longo caminho a percorrer.
Um dia, como eu, vais perceber: tudo o que nos mantém vivos é a busca...
Não desista dela, a busca. Do contrário, estarás +++++.


(B. B. Palermo)

Pílulas diárias de fofoca

  – Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém! Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”. Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ningu...