terça-feira, 9 de maio de 2017

Sherwood Anderson - Quem foi este cara?


Em alguma página de "O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio", Bukowski fala desse escritor. Confesso que nada li. Vou em busca de traduções dele nesta semana. Eis um trecho que encontrei no google:

"No princípio quando o mundo era novo havia um grande número de pensamentos, mas não aquilo que se chama uma verdade. O homem fez ele próprio as verdades e cada verdade era um composto de um grande número de pensamentos vagos. As verdades estavam por todo o mundo e todas elas eram bonitas.
O velho tinha enumerado centenas de verdades no seu livro. Não vou tentar contá-las todas. Havia a verdade da virgindade e a verdade da paixão, a verdade da riqueza e da pobreza, da frugalidade e da prodigalidade, da atenção e do abandono. Eram centenas e centenas, as verdades, e todas elas eram bonitas.
E então vieram as pessoas. Cada uma delas assim que aparecia agarrava uma das verdades e algumas que eram mais fortes apoderavam-se de uma dúzia delas.
Foram as verdades que tornaram as pessoas grotescas. O velho tinha uma teoria bastante elaborada a tal propósito. Era ideia dele que no momento em que uma pessoa tomava uma das verdades para si própria, chamando-lhe a sua verdade, e se esforçava por conduzir a sua vida de acordo com essa verdade, a pessoa tornava-se grotesca e a verdade que abraçava tornava-se numa mentira."


- Sherwood Anderson, em "Winesburg, Ohio". [tradução José Lima; posfácio de John Updike]. Lisboa: Ahab Edições, 2011, p. 23-24.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

O amor bate na aorta - Carlos Drummond de Andrade


Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

E tinha a cabeça cheia deles - Marina Colasanti


Todos os dias, ao primeiro sol da manhã, mãe e filha sentavam-se na soleira da porta. E deitada a cabeça da filha no colo da mãe, começava esta a catar-lhe piolhos.
Os dedos ágeis conheciam sua tarefa. Como se vissem, patrulhavam a cabeleira separando mechas, esquadrinhando entre os fios, expondo o claro azulado do couro. E na alternância ritmada de suas pontas macias, procuravam os minúsculos inimigos, levemente arranhando com as unhas, em carícia de cafuné.
Com o rosto metido no escuro pano da saia da mãe, vertidos os cabelos sobre a testa, a filha deixava-se ficar enlanguescida, enquanto a massagem tamborilada daqueles dedos parecia penetrar-lhe a cabeça, e o calor crescente da manhã lhe entrefechava os olhos.
Foi talvez devido à modorra que a invadia, entrega prazerosa de quem se submete a outros dedos, que nada percebeu naquela manhã – a não ser, talvez, uma leve pontada – quando a mãe, devassando gulosa o secreto reduto da nuca, segurou seu achado entre polegar e indicador e, puxando-o ao longo do fio negro e lustroso em gesto de vitória, extraiu-lhe o primeiro pensamento.


https://www.youtube.com/watch?v=yT2WhqZs9iw

domingo, 7 de maio de 2017

Uma luz na neblina


A casa toda é uma bagunça, como o quarto do adolescente. A vida parece descarrilada. Parte é o caos do seu país, e outra parte aceita na sua conta. 
Tudo se repete. Não sabe pra onde vai.
Nessas horas, alguns fios de conversa com amigas ou até conhecidos, uma sugestão, uma lembrança boa, ela vê despontar uma luz. Pelo menos durante uns dois dias. 
Como a chuva rápida que refresca o clima, a angústia empalidece. Corre, reorganiza os livros da estante, empolga-se de novo com trechos soltos que um dia sublinhara com sincera emoção. 
Canta, não apenas no chuveiro, músicas que emergem do fundo de sua alma.
E de novo ela junta as peças, dá-lhes um sentido. Sim, a confusão não se foi de todo, a angústia é um tigre a espreitar. Mas agora ela ri, pouco importa se está sem pai. Filosofa: a falta de sentido também faz parte do jogo. Se há salvação, por que tanta gente depende de um pai, seja um governo, um líder religioso ou educacional? Ou inventaram a "salvação" por causa de sua dependência?
Agora ela ri dos seus limites. E dos outros. Os que precisam de um pai, que seja bússola no horizonte.
A multidão suplica, xinga, grita. De sua janela, não disfarça o semblante cético. Parece que se dissipou a névoa. Em suas mãos eu vejo um cartaz: fuck you

sexta-feira, 5 de maio de 2017

O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio - Charles Bukowski


“Outro dia, fiquei pensando no mundo sem mim. Há o mundo continuando a fazer o que faz. E eu não estou lá. Muito estranho. Penso no caminhão do lixo passando e levando o lixo e eu não estou lá. Ou o jornal jogado no jardim e eu não estou lá para pegá-lo. Impossível.
E, pior, algum tempo depois de estar morto, vou ser verdadeiramente descoberto.
E todos aqueles que tinham medo de mim ou que me odiavam enquanto eu estava vivo vão subitamente me aceitar. Minhas palavras vão estar em todos os lugares. Vão se formar clubes e sociedades. Será nojento. Será feito um filme sobre a minha vida. Me farão muito mais corajoso e talentoso do que sou. Muito mais.
Será suficiente para fazer os deuses vomitarem.
A raça humana exagera tudo: seus heróis, seus inimigos, sua importância.”
***
Todas aquelas pessoas. O que estão fazendo? O que estão pensando? Todos nós vamos morrer, que circo! 
Só isso deveria fazer com que amássemos uns aos outros, mas não faz. Somos aterrorizados e esmagados pelas trivialidades, somos devorados por nada.”

***
Somos feitos de papel. Existimos graças à sorte, no meio de percentagens, temporariamente. E isso é a parte melhor e a parte pior, a questão temporal. E não há nada a fazer. (…) Podemos mudar a nossa aceitação, mas talvez isso também seja errado. Se calhar pensamos demais. É preciso sentir mais, pensar menos.
***
“Não há nada mais para se lamentar a respeito da morte do que se lamenta o crescimento de uma flor. O que é terrível não é a morte, mas as vidas que as pessoas vivem ou não vivem até suas mortes. Elas não honram suas próprias vidas, elas mijam em suas próprias vidas. Elas a jogam fora. Idiotas de merda. Se concentram demais em sexo, filmes, dinheiro, família e sexo. Suas mentes estão cheias de algodão. Engolem Deus sem pensar, engolem o país sem pensar. Logo esquecem como se pensa, deixam os outros pensarem por elas. Seus cérebros estão entulhados de algodão. São feias, falam feio, andam feio. Toque as grandes músicas do século para eles e eles não vão ouvir. A maioria das mortes das pessoas é um engano. Não sobrou nada para morrer”.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Uma história quase mínima


Quando a vejo brincar com um bebê, dar papinha e emitir aqueles sons de professora de maternal, espanta-se o meu amor.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

Augusto Monterroso - O grilo professor


Será que esta fábula ainda é atual para pensarmos nossas escolas? 
Este autor afirmou: "Os animais se parecem tanto com o homem que às vezes é impossível distingui-los".


quarta-feira, 3 de maio de 2017

Vamos acabar com esta folga - Stanislaw Ponte Preta


O negócio aconteceu num café. Tinha uma porção de sujeitos, sentados nesse café, tomando umas e outras. Havia brasileiros, portugueses, franceses, argelinos, alemães, o diabo.

De repente, um alemão forte pra cachorro levantou e gritou que não via homem pra ele ali dentro. Houve a surpresa inicial, motivada pela provocação e logo um turco, tão forte como o alemão, levantou-se de lá e perguntou:

— Isso é comigo?

— Pode ser com você também — respondeu o alemão.

Aí então o turco avançou para o alemão e levou uma traulitada tão segura que caiu no chão. Vai daí o alemão repetiu que não havia homem ali dentro pra ele. Queimou-se então um português que era maior ainda do que o turco. Queimou-se e não conversou. Partiu para cima do alemão e não teve outra sorte. Levou um murro debaixo dos queixos e caiu sem sentidos.

O alemão limpou as mãos, deu mais um gole no chope e fez ver aos presentes que o que dizia era certo. Não havia homem para ele ali naquele café. Levantou-se então um inglês troncudo pra cachorro e também entrou bem. E depois do inglês foi a vez de um francês, depois de um norueguês etc. etc. Até que, lá do canto do café levantou-se um brasileiro magrinho, cheio de picardia para perguntar, como os outros:

— Isso é comigo?

O alemão voltou a dizer que podia ser. Então o brasileiro deu um sorriso cheio de bossa e veio vindo gingando assim pro lado do alemão. Parou perto, balançou o corpo e... pimba! O alemão deu-lhe uma porrada na cabeça com tanta força que quase desmonta o brasileiro.

Como, minha senhora? Qual é o fim da história? Pois a história termina aí, madame. Termina aí que é pros brasileiros perderem essa mania de pisar macio e pensar que são mais malandros do que os outros.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

o homem no piano - Charles Bukowski


O homem ao piano toca uma música que ele não compôs, canta palavras que não são suas, em um piano que não é seu.
Enquanto as pessoas à mesa comem, bebem e conversam, o homem ao piano termina sem aplausos.
Então começa a tocar uma nova canção que ele não escreveu...
Começa a cantar palavras que não são suas, em uma piano que não é seu...
E como as pessoas às mesas continuam a comer, beber e conversar, quando ele termina sem ser aplaudido, ele anuncia pelo microfone que vai fazer uma pausa de dez minutos.
Ele vai até o banheiro masculino, entra em um reservado, tranca a porta, senta, puxa um baseado e acende, satisfeito de não estar ao piano. E as pessoas às mesas - comendo, bebendo e conversando - satisfeitas por ele também não estar lá.

Assim acontece em quase toda a parte, com todos e com tudo, enquanto ferozmente, no interior, o gueto negro incendeia.

Charles Bukowski "The man at the piano"

sábado, 29 de abril de 2017

Filhos - L. F. Verissimo


Tem a história daquele pai que concebeu dois filhos, Adão e Eva. Naquele tempo, não precisava mãe. O pai fez o que pôde pelas crianças. Elas tinham tudo, nunca lhes faltou alimento ou agasalho. Se queriam um cachorro ou um macaco para brincar, o pai fazia. 
Se queriam uma pizza, o pai criava, ou mandava buscar. Se queriam saber como era o mundo lá fora, o pai dizia que não precisavam saber. Eles não eram felizes não sabendo nada, ou só sabendo o que o pai sabia por eles? A felicidade era não saber. As crianças eram felizes porque não sabiam.

Adão ainda era acomodado, mas a Evinha... Um dia, o pai a pegou descascando uma banana. Nem ele sabia o que a banana tinha por dentro, mas a danada da menina descobriu e, antes que ele pudesse dizer “Dessa fruta não co...”, ela já tinha comido. E gostado. 
Foi então que ele decidiu impor sua autoridade paterna, pelo menos na área dos hortifrutigranjeiros, e determinar quais frutas do jardim podiam e não podiam ser comidas, e escolheu uma fruta como a mais proibida, pois se comesse dela a menina saberia. Saberia o quê? O pai não especificou. Só disse que o que ela saberia seria terrível, e que depois não se queixasse.

Eva comeu da fruta mais proibida, claro, e o pai foi tomado de grande tristeza. E disse a Eva que agora ela sabia o que não precisava saber, e que nunca mais seria a mesma.
– O que eu sei de tão terrível que não sabia antes? – perguntou Eva, ainda mastigando a fruta proibida.
– Que você pode desobedecer. Que você pode escolher, e pensar com a própria cabeça, e me desafiar.
E então o pai disse a frase mais triste que um pai pode dizer a um filho:
– Que você não é mais uma criança.

E Eva cresceu diante dos olhos do pai, e no momento seguinte já estava dizendo que queria morar sozinha, e fazer bolsa de inglês em Nova York, e saber como era o mundo lá fora. E Deus disse que ela podia ir, e que levasse o palerma do Adão com ela. E que os dois jamais voltassem e pedissem sua ignorância de volta.

(Zero Hora, sábado e domingo, 29 e 30 de abril 2017)

sexta-feira, 28 de abril de 2017

Amor imortal morre de tarde - José Cândido de Carvalho


De tarde, ao dobrar uma esquina, aquele encontrão.
Mercedes Pires nem reparou nele, que foi sua grande paixão. Aniceto de castro, o Castrão das Rendas aduaneiras, também em Mercedes não reparou. Esteve na curva 122, a pique de meter bala no casco pela beleza em flor de Mercedes. E Mercedes, pelo bem querer de Castro, quase abriu os pulsos com uma faca de cortar mortadela.
Do talho aos jornais era pulo de periquito. e até imaginou o berro das manchetes: "Linda moça de Cordovil morre por um amor impossível. "
Mas entre o tiro que não houve e a faca que não cortou, a folhinha da parede desfolhou 40 anos bem passados. E de repente, na dobra de uma esquina, aquele esbarrão. Castro nem reparou em Mercedes. Falou para Dentro, para o ouvido de seu suspensório:
- Uma ilha dessa tonelagem devia andar no meio da rua, com placa de caminhão nas costas. É pário para ônibus e não para gente de calça e botina.
Mercedes também não reparou em Castro. Falou sozinha:
- Cada tipo esquisito! Parece, de tão gordo, que está esperando criança. Se tivesse espelho em casa, devia reparar que aquela sua cara de engomador elétrico não pode usar óculos nem costeletas. É cara para tomada de parede.
E assim um passou pelo outro. Perdidos na distância de 40 anos.

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...