segunda-feira, 15 de abril de 2013

A bolsa e a vida - Carlos Drummond de Andrade




I. O achado



Jamais em minha vida achei na rua ou em qualquer parte do globo um objeto qualquer. Há pessoas que acham carteiras, jóias, promissórias, animais de luxo, e sei de um polonês que achou um piano na praia do Leblon, inspirando o conto célebre de Aníbal Machado. Mas este escriba, nada: nem um botão.


Por isso, grande foi a minha emoção ao deparar, no assento do coletivo, com uma bolsa preta de senhora. O destino me prestava esse pequeno favor: completava minha identificação com o resto da humanidade, que tem sempre para contar uma história de objeto achado; e permitia-me ser útil a alguém, devolvendo o que faria falta.

A bolsa pertencia certamente à moça morena que viajava a meu lado, e de que eu vira apenas o perfil. Sentara-se, abrira o livro e mergulhara na leitura. Eu senti vontade de dizer-lhe: Moça, não faça isso, olhe seus olhos, mas receei que ela visse em minhas palavras mais do que um cuidado oftalmológico, e abstive-me. Absorta na leitura, ao sair esquecera o objeto, que só me atraiu a atenção quando o lotação já ia longe.

Mas eu não estava preparado para achar uma bolsa, e comuniquei a descoberta ao passageiro mais próximo:

- A moça esqueceu isto.

Ele, sem dúvida mais experimentado, respondeu simplesmente:

 Abra.

Hesitei: constrangia-me abrir a bolsa de uma desconhecida ausente; nada haveria nela que me dissesse respeito.

 Não é melhor que eu entregue ao motorista?

 Complica. A dona vai ter dificuldade em identificar o lotação. Abrindo, o senhor encontra um endereço, pronto.

Era razóavel, e diante da testemunha abri a bolsa, não sem experimentar a sensação de violar uma intimidade. Procurei a esmo entre as coisinhas, não achei elemento esclarecedor. Era isso mesmo: o destino me dava as coisas pela metade. Fechei-a depressa.

 Leve para casa  ponderou meu conselheiro, como quem diz:  É sua. Mas acrescentou:  Procure direito e o endereço aparece.

Como ele também descesse logo depois, vi-me sozinho com a bolsa na mão, já deliberado a levá-la comigo. E para evitar que na saída o motorista me interpelasse: Ei, ó distinto, deixa esse troço aí, achei prudente envolvê-la no jornal que eu portava. Já percebe o leitor que, a essa altura, minha situação moral era pouco sólida, pois eu procurava esconder do motorista um objeto que não me pertencia, sob o fundamento de que pretendia restituí-lo à dona; como se eu conhecesse essa proprietária mais do que ele, motorista, que podia muito bem conhecê-la de vista; e como se eu duvidasse dele, que com igual razão podia desconfiar de mim, passageiro, quando o mais fácil seria explicar-lhe (ou não seria?) que eu duvidava, não dos motoristas em geral ou dele em particular, mas sim da eficácia do sistema de entrega de objetos perdidos em coletivos.
Assim, embuçada convenientemente a coisa, como algo tenebroso que convinha esquivar à curiosidade pública, paguei com dignidade a passagem e saltei sem impugnação. No próximo escrito, o que continha a bolsa, e o mais que sucedeu depois.




II. O conteúdo


Chegando à casa, o primeiro cuidado deste cronista foi esvaziar a bolsa e examinar-lhe o recheio, para o fim de identificar sua proprietária. Logo atinei com a conveniência de dispor os objetos em ordem, e inventariá-los, primeiro porque era minha intenção devolver tudo de maneira regular, devendo a moça verificar, em minha presença, se não faltava nenhum pertence; segundo, porque, vencida a repugnância de mexer em coisa alheia, era legítima, até científica, a curiosidade de apurar que utensílios contém uma bolsa feminina comum, em nossa época, na área cultural do Rio de Janeiro.

Bem, não continha artefatos de couro, metal ou pedra, reveladores de hábitos tribais ainda não estudados; não deslumbrava pela magnificência dos artigos de toalete nem encerrava crimes e paixões em objetos simbólicos. Eis, honestamente, o seu acervo:

2 batons; 1 lápis para cílios; 1 escovinha idem; 1 espelhinho; 1 trousse folheada a ouro; 1 pente; 2 grampos; 1 vidrinho de Nuit de Longchamp; 1 sabonete de papel; 1 lencinho branco; 1 dito amarelo estampado, para limpar batom; 1 flanela para óculos; 1 caneta-tinteiro; 2 lápis; 1 borracha; 3 clipes; 1 canivete; 1 figa de madeira; 1 atadura adesiva; 1 ampola de Pernemon Forte; 1 comprimido de magnésia bisurada; 1 bula de Xantinon B 12; 1 chaveiro com duas chaves; 1 chave maior, solta; 1 folha de papel de embrulho; 1 pedaço de barbante; 1 cartão de firma de representações; 1 nota de venda no valor de Cr$4.550,00 referente a   camisola de luxo, 1 anágua franzida e 1 calcinha com liga; 1 porta-níqueis com Cr$4,50; 1 calendário pequeno; 2 folhetos; 1 papel datilografado. Num escaninho dissimulado, o dinheiro maior: Cr$950,00.

A agenda foi explorada; em seu interior havia uma flor seca, a fotografia de um desenho, representando um rosto feminino de cabelos compridos, e uma carteira de estudante de medicina; na carteira, o retrato de frente de uma jovem em que não foi dificil reconhecer a moça do lotação, vista de perfil. Tive a alegria de uma descoberta; mas foi curta, pois em nenhuma folha do caderninho havia o endereço da moça. Os nomes não coincidiam, e como os endereços anotados fossem vários, pareceu incomodo e até desaconselhável discar para todos eles, indagando sobre a acadêmica de medicina. Que grau de intimidade teriam essas pessoas com ela, e por que precisavam ficar sabendo que a moça perdera sua bolsa?

Resolvi, por, telefonar para a secretaria da Faculdade de Medicina, na manhã seguinte, e voltei a guardar na bolsa o que dela retirara. Dormi mal, preocupado com a noite que a jovem estaria passando, sem dinheiro, sem chave de apartamento, numa cidade onde as moças nem sempre estão bem protegidas. Quem sabe se mesmo à noite eu poderia tranquilizá-la? Eram 24 horas. Corri à bolsa, li o papelzinho datilografado: Chave da Harmonia. Desejo Harmonia, Amor, Verdade e Justiça a todos os meus irmãos do Círculo da Comunhão do Pensamento. Estou satisfeita e em paz com o universo inteiro e desejo que todos os seres realizem suas aspirações mais íntimas.” Tais sentimentos me penetraram, e conciliei o sono. O resto, a seguir.




III. A busca


Às nove da manhã, pelo telefone, comuniquei-me com a secretaria da Faculdade de Medicina. Expus o objeto da consulta, de maneira a não deixar dúvida: procurava o endereço da senhorita Andréia de Poggia (era o nome da carteira) para restituir-lhe uma bolsa, não para isso assim assim. O homem ouviu-me atenciosamente, e depois:

- Ah, moço, só o senhor tocando outra vez depois das 11. Eu sou faxineiro.

Mais por pressentimento do que à base de fatos, comecei a perceber que não seria fácil desfazer-me daquele objeto. A razão dizia que dentro de duas horas o endereço de Andréia estaria em meu poder. Uma voz obscura me sussurrou: Duvido.

Às 11 e 15, uma funcionária gentil tomou conhecimento do caso, certificou-se de minha honorabilidade e prometeu tocar logo que colhesse a informação. E efetivamente o fez, instantes depois.

 O senhor deve estar equivocado. Não temos aluna chamada Andréia de Poggia.

 Talvez esteja com a matrícula trancada, e não conste do fichário.

 Não senhor.

 Mas está na carteira: número 215.

 215 é um rapaz.

Agradeci e fui à agenda. Para meu desapontamento, a maioria dos nomes anotados não dispunha de telefone, ou eram casas comerciais, que não queriam conversa. Os dois ou três telefonáveis não estavam em casa ou não conheciam nenhuma Andréia. Um julgando-se vítima de trote, ia proferir uma dessas expressões comuns na Câmara de Vereadores, mas desliguei. Outro conhecia André - o André Meireles, da Sursan, que perdeu uma pasta com ações da Brahma ao portador, e quase ficou maluco; eu tinha achado, é?

Expliquei-lhe que eram matérias completamente distintas, e que, já às voltas com uma bolsa feminina, eu não podia responsabilizar-me pela pasta de André, mas o homem queria de toda maneira estabelecer um vínculo entra a pasta e a bolsa.

Depois de tantas ligações infrutíferas, o jeito era botar no jornal um anúncio classificado. Verifiquei a eficácia desse meio de divulgação, em face de nove senhoras e senhoritas que, pelo fio, em carta ou pessoalmente, se declararam mais ou menos Andréia de Poggia, isto é, à procura de uma bolsa perdida. Mas todas se enganavam a respeito da própria identidade. Os nomes não coincidiam, ou os rostos é que não coincidiam com a foto, embora alguns fossem até mais bonitos. A quarta Andréia esclareceu que ao tirar o retratinho estava mais gorda, a sétima que estava mais magra, nenhum se zangou quando lhes expliquei que a bolsa era, indubitavelmente, de outra Andréia de Poggia - a décima, que não aparecia. Outra observação: sendo avultado o número de bolsas femininas perdidas no Rio, muitas (senhoras, não bolsas) se resignam a aceitar outra qualquer, em substituição à que perderam. Mulheres procurando bolsas, bolsas aguardando mulheres; desencontros.

Já nutrindo certo mau humor com relação a Andréia, que assim se ocultava às minhas investigações benignas, mais desejoso de cumprir até o fim de dever de um cavalheiro do velho estilo, que achou uma bolsa de senhora de lotação, anotei os nomes das ruas constantes da agenda, e empreendi pesquisas de campo. E como este rocambole já me vai caceteando, embora empolgue um ou outro leitor que me tem telefonado para saber se achei a dona da bolsa, darei o desfecho na próxima.




IV. O encontro


Bati em várias casas de bairros vários, e ninguém soube informar-me quem era Andréia de Poggia. Em geral, acolhia-se com ceticismo minha intenção de devolver alguma coisa a alguém. Na bolsa, o dinheiro se desvaloriza, e era de recear que, se um dia eu encontrasse a proprietária, já o conteúdo nada valesse.

Contemplando o retrato de Andréia, eu naturalmente lhe emprestava uma personalidade universitária; meditando a frase da Chave da Harmonia, outra Andréia se figurava à minha imaginação. Uma, racional, científica, técnica; outra, sonhadora e mágica, em ligação com o universo através das Instruções reservadas para uso do irmão do Círculo da Comunhão do Pensamento e das Meditações diárias do mesmo circulo, como se intitulavam os folhetos contidos na bolsa.

Cheguei a pensar que o objeto pertencesse em condomínio a duas moças, tão diversas me pareciam as tendências. Que uma se houvesse apoderado da bolsa da outra, não era agradável admitir. Pensei também — sem convicção  num caso de dupla personalidade, com visitas alteradas ao anfiteatro médico e a sessões espíritas; a bolsa serviria a ambos os interesses.

Nas idas e venidas em busca da moça, carregava comigo o objeto embrulhado. Às vezes sentia ímpetos de atirá-lo fora, livrando-me da obrigação incomoda. A mesma voz de antes me murmurava então Fraco! Fraco!. E dái, mesmo jogada do bondinho do Pão de Açúcar, ela seria talvez encontrada, iniciando novo ciclo de indagações.

Então, redobrava de cuidados, com receio de, por minha vez, perder a coisa perdida; ninguém me censuraria por isso, a não ser eu mesmo, pois a bolsa crescia em mim, cobria-me de imperativos morais, comandava-me. Sentia-me Homem do embrulho, vagamente suspeito à Polícia.

Quando de repente, um mês depois, na Rua Uraguaiana, dou de cara com Andréia. Ela mesma, como a vira de perfil e a decorara de retrato.

 É a senhorita Andréia de Poggia?

Não disse que sim nem que não; olhou-me com naturalidade, como se conhecesse ou me esperasse; apenas murmurou?

 Será que o senhor,...

 Exatamente. Encontrei sua bolsa. Aqui está.

 Ah, obrigada! Eu tinha certeza de que ela voltaria, sabe? Sou espiritualista. Com licença.

E abrindo-a sem cerimônia, o que me chocou um pouco, remexeu até encontrar a agenda e retirar dela a reprodução do desenho.

 Felizmente aqui está ele!

Perguntei-lhe a quem se referia, pois a figura era feminina, de cabelos compridos.

 Não senhor, é o meu guia, um principe indu, de cabelos longos. Veja que nobreza!

 Tenha a bondade de contar o dinheiro - pedi-lhe, constrangido.

 Não precisa, confio em seu cavalheirismo. O essencial para mim é o retrato do guia. Eu não podia perde-lo. Mas tinha certeza de que voltaria.

 Escute, D. Andréia...

 Não sou Andréia, interrompeu-me suavemente. Meu nome é Rita Peixoto, comerciária, sua criada.

 Então aquela carteira...

 Bem, de vez em quando a gente gosta de ir a um cineminha, o senhor compreende...

Compreendi; as carteiras de estudante são para isso. Contei-lhe então os problemas da consciência que me assaltaram por causa de sua bolsa, os esforços por descobri-la.

 Está vendo? Foi o meu guia que agiu em tudo isso. Me fez perder a bolsa para que o senhor se aproximasse mais da humanidade. Agor está explicado!

Separamo-nos, felizes; ela, com o retrato do guia; eu, livre da bolsa, e determinado a não pegar mais nada que encontre em lotação.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Antes de você chegar


Quando você chegou, minhas olheiras estavam maquiadas. Os olhos cansados não disseram que pássaros negros afugentaram meu sono. Feito cogumelos de cinza, projetaram em outdoors os medos que acreditei ter esquecido.
Antes de você chegar a angústia, como tia distante, me abordou na calçada, na porta de casa. Era um novo capítulo, de uma novela antiga.
Teu olhar suave fez as ondas baixarem. Abriu-se o sol, e a manhã tornou-se divã.
Calmamente você me acolhei nos braços, cruzou as pernas e um poeta, mendigo de abraços, abriu seu coração...

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Cãomício no calçadão - José Carlos de Oliveira

Reunidos no calçadão central da Avenida Atlântica, entre as Ruas Souza Aguiar e Sá Ferreira, dezenas de cães participaram sábado à tarde de um comício autorizado, em princípio, pela Administração Regional de Copacabana. Eram cachorros das mais variadas raças e dos mais diferentes tamanhos, desde Pastores Alemães até miniaturas Pintcher. Junto ao meio-fio, no local da concentração, um carro-choque do Batalhão de Gatos, armados de unhas e dentes, garantia a ordem.

O primeiro a subir ao tablado, que era um engradado de refrigerantes emborcado, foi um Poodle branquinho, de rabinho cotó.
- Nossos donos são irresponsáveis! - gritou ele.
- Abaixo os donos irresponsáveis! - respondeu a multidão raivosa (embora toda ela vacinada).
- Todo poder aos cachorros! - prosseguiu veemente o Poodle branco, cujo focinho lembrava vagamente o de Jane Fonda, e que era tido, entre o Posto 6 e o Posto 4, como o líder inconteste do Dog-Power.
Em seguida pediu a palavra um Weimaraner azulado, de olhos tristes. Do alto do caixote, falou ponderadamente:
- Meus modos if... if... (estava chorando o coitado)... Meus modos refletem o do meu dono... Não quero mais passar vergonha sujando a calçada!
- Nós também não! - responderam em uníssono os manifestantes caninos. Lá do meio do povo, alguém latiu com voz de Pointer:
- Nossos donos precisam aprender que lugar de cachorro fazer suas "coisas" é em casa!
- Bravo! Apoiado! - concordou a cãonalhada.
- Pipi-dog! Queremos pipi-dog! - Puseram-se a ladrar cadelinha Basser - cinco ou seis, provavelmente da mesma ninhada. - Somos moças de família, e portanto temos direito a um lugar no apartamento, onde possamos fazer a nossa toalete em que os intrusos invadam a nossa  privacidade"
- Muito bem! Falou! Podem crer! - entoaram em coro os cinco Dobermans que moram no Edifício Chopin, um dos mais luxuosos de Copacabana, e que fazem pipi - vejam só a heresia! - na piscina do Copacabana Palace, que fica ali ao lado.
Agora, estava no tablado um musculoso Boxer, com sua cara abobalhada e seu tradicional bom coração.
- Senhoras e senhores - disse ele - sejamos objetivos. Desejo colocar em votação uma proposta simples, de três pontos, a qual, se aprovada, será encaminhada aos nossos donos, em forma de abaixo-assinado. Primeiro ponto:
- "Quero meu pipi-dog no apartamento".
- Apoiado! - gritou a assembléia.
Segundo ponto: ... Mas, antes, para evitar tumulto, prefiro que os distintos companheiros, em vez de latirem, ladrarem, rosnarem e coisa e tal, balancem o rabo em sinal de aprovação. Aqueles que não mais possuem rabo poderiam uivar, mais docemente, pois uma de nossas preocupações principais há de ser a de não agravar a poluição sonora, de maneira a não indispor a opinião publica contra a nossa causa... 
Todos balançaram o rabo, em silêncio. A questão do orador fora aceita. Ele então prosseguiu:
- Segundo ponto: - "Queremos fazer nosso cooper canino apenas no calçadão central da Avenida Atlântica..."
Rabinhos balaçaram para lá e para cá: aprovado.
- Terceiro ponto: "É preferível que não nos levem à praia, onde involuntatiamente causamos uma porção de doenças!"
Rabinhos alegres: de acordo.
- Desta forma - finalizou o Boxer - poderemos afirmar que somos felizardos e que temos donos educados!
- Nosso dono vai ser superlegal! - exclamou a assembléia, esquecendo a recomendação de só balançar o rabo.
Nessa altura, todos ali estavam com vontade de fazer cocô e pipi. Sendo assim, o Poodle branco decidiu dar por encerrada a reunião, recomendando que os manifestantes se dispersassem em ordem.
Mas nesse instante pulou no caixote um autêntico Vira-Lata, magrinho, de olhos famintos, as costelas aparecendos sob o pêlo ralo, o rabo enre as pernas.
- Irmãos! - bradou ele, ou melhor, essa palavra num gemido - Irmãos! Todos somos irmãos! Todos os cachorros são iguais! Portanto, o verdadeiro problema não está no pipi-dog doméstico nem no pinicão de apartamento. O necessário é que todos nós, os de pedigrees e os da rua, os de raça e os vira-latas, tenhamos, todos. direito aos cuidados veterinários periódicos, à vacinação gratuita, à alimentação farta e balanceada, à coleira protetora com sua placa de identificação, aos banhos seguidos de talcos contra pulgas.. Viva pois a revolução! Todo o poder aos cachorros, sem distinção de raça, cor ou credo!
-Uh! Fora! - gritaram os cães de luxo, que pertencen todos, naturalmente, à Diretia, e preferem que as coisas continuem como estão, no plano da justiça social. - Fora! Sarnento! Babão! Comedor de restos! Ralé!
A multidão de sócios do Kennel Club avançou na direção do anarquista, rosnando ameaçadoramente. Foi preciso que os gatos salvassem o Vira-Lata do linchamento inevitável, para o que o cercaram, dispersando a cachorrada com bomba de gás lacrimogéneo.
Em seguida, o Batalhão de Gatos levou o Vira-Lata para o lugar adequado a essa espécie agitador. ele agora está sendo processado e é capaz de passar o resto da vida num canil-presídio. Acusação: trata-se de um CÃOMUNISTA.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Alguém viu, alguém leu...


Menina na janela, poodle no colo, curiosa com a passeata na avenida. Aniversário de sessenta anos de minha escola, o IMEAB  de Ijuí-RS. Vi num relance, mas a memória gravou e repete, a cada poucos minutos, o seu replay. Apenas mais um flash, um clarão, uma estrela que nasceu. A todo instante, momentos como esse, nascem, morrem, sem ninguém perceber.
Vivo de replays. Ingênuo, creio que os que passaram, retornarão.
Ainda agora leio poemas de Marina Tsvetáieva, Russa, anticonformista, que viveu nas primeiras décadas do século XX. Ponho-me a imaginar como foi sua vida e dos que viveram essas décadas, tão cheias de descobertas e de guerras. Duas guerras mundiais,  o Nazismo, enfim, como foi o céu e o inferno que viveu, o tamanho do desespero que a afastou da família e a levou ao suicídio.
Reencontro Marina, através de sua poesia. Leio, releio, seu recado, neste poema:

Para meus versos, escritos num repente,
quando eu nem sabia que era poeta,
jorrando como pingos de nascente,
como cintilas de um foguete,

Irrompendo como pequenos diabos,
no santuário, onde há sono e incenso,
para meus versos de mocidade e morte,
- versos que ler ninguém pensa! -

Jogados em sebos poeirentos
(onde ninguém os pega ou pegará)
para meus versos, como os vinhos raros,
chegará seu tempo.

Marina Tsvetáieva, teus versos venceram o tempo e o espaço. E comoveram meu coração. São os mais recentes replays que vão me acompanhar, passo a passo.
Não há barreira de tempo, espaço e de língua, enquanto houver homens que amam os livros, os traduzem e os publicam.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Sou um dos 999.999 poetas do país - Affonso Romano de S'antaAnna


Fragmento 1
INTRODUÇÃO SÓCIO-INDIVIDUAL DO TEMA
Sou um dos 999.999 poetas do país
que escrevem enquanto caminhões descem pesados de cereais
e celulose
ministros acertam o frete dos pinheiros
carreados em navios alimentados com o óleo
que o mais pobre pagará.
(- Estes são dados sociais
de que não quero falar, embora
tenha aprendido em manuais
que o escritor deve tomar o seu lugar na História
e o seu cotidiano alterar.)
Sou um dos 999.999 poetas do país
com mãe de olhos verdes e pai amulatado
ela – a força de áries na azáfama da casa
a decisão do imigrante que veio se plantar
ele – capitão de milícias tocando flauta em meio
às balas
lendo salmos em Esperanto sobre a mesa
domingueira.
(- Estes são sinais particulares
que não quero remarcar, embora
tenha aprendido em manuais
que o que distingüe a escrita do homem
são seus traços pessoais que ninguém pode
imitar.)
Fragmento 2
DESENVOLVIMENTO HÁBIL E CONTÁBIL DO (P)R(O)BL(EMA)
Sendo um dos 999.999 poetas do país
desses sou um dos 888.888
que tiveram Mário, Bandeira, Drummond,
Murilo, Cecília, Jorge e Vinícius como mestres
e pelas noites interioranas abriam suas obras
lendo e reescrevendo os versos deles nos meus versos
com deslumbrada afeição.
Desses sou um dos 777.777 poetas
que se ampliaram ao descobrir Neruda, Pessoa,
Petrarca, Eliot, Rilke, Whitman, Ronsard e Villon
em tradução ou não
e sem qualquer orientação iam curtindo
um bando de poetas menores/piores
que para mim foram maiores
pois me alimentavam com a in-possível poesia
e a derramada emoção.
Desses sou um dos 666.666 poetas
que fundando revistinhas e grupelhos aspiravam
(miudamente)
à glória erótica & literária
e misturando madrugadas, festas, citações, sonhos
de escritor maldito e o mito das gerações
depois da espreita aos suplementos
batem à porta do poeta nacional para entregar
poemas
(com a alma na mão)
esperando louvor e afeição.
Desses sou um dos 555.555
que um dia foram o melhor poeta de sua cidade
o melhor poeta de seu estado
dos melhores poetas jovens do país
e quando já se iam laureando aqui e ali em plena arcádia surpreenderam-se nauseados
e cobrindo-se de cinza retiraram-se para o deserto
a refazer a letra do silêncio
e o som da solidão.
Desses sou um dos 444.444 poetas
que depois da torrente de versos adolescentes e noturnos
se estuporaram per/vertidos nas vanguardas
e por mais de 20 anos não falamos de outra coisa
senão da morte do verso e da palavra e da vida do sinal
acreditando que a poesia tendia para o visual
e que no séc. XXI etc. e etc. e tal.
Desses sou um dos 333.333 poetas
que depois de tanto rigor, ardor, odor, horror
partiram para a impureza (consciente) das formas
podendo ou não rimar em ar e ão
procurando o avesso do aprendido
o contrário do ensinado
interessado não apenas em calar, mas em falar
não apenas em pensar, mas em sentir
não apenas em ver, mas contemplar
fugindo do falso novo como o diabo da cruz
porque nada há de mais pobre que o novo ovo de ouro
gerado por falsas galinhas prata.
Desses sou um dos 222.222 poetas
que penosamente descobriram que uma coisa
é fazer um verso, um poema ou mais
e receber os elogios médio-medianos dos amigos
e outra, bem outra, é ser poeta
e construir o projeto de uma obra
em que vida & texto se articulem
letra & sangue se misturem
espaço & tempo se revelem
e que nesta matéria revém o dito bíblico
- muitos os chamados, poucos os escolhidos.
Desses sou um dos 111.111 professores
universitários ou não
que antes de tudo eram poetas-patetas-estetas-profetas
e que depois de ver e viver da obra alheia
estupefactos
descobrem que só poderiam/deveriam
sobreviver com a própria
que escondem e renegam
por pudor
recalque
e medo.
Sou um dos 999 poetas do país
que
sub/traídos dos 999.999
serão sempre 999 (anônimos) poetas
expulsos sistematicamente da República por Platão
que um dia pensaram em mudar a História com
dois versos pena & espada
(o que deu certo ao tempo de Camões)
e que escrevendo páginas e páginas não mudaram nada
senão de tinta e de endereço.
Mas foi dessa inspeção ao nada que aprenderam
que na poesia o nada se perde
o nada se cria
e o nada se transforma.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Cândido

Ela disse que não, mas eu pensei que conhecia sua beleza interior quando a desfrutasse nua, como veio ao mundo.
Eu era mais um ingênuo, um cândido, que acreditava em príncipes e fadas pornográficos.
Ao superar a ingenuidade, enumerei uma lista de "verdades", que vocês podem chamar de "meias verdades", ou "meias verdades do momento".
- Para conhecer sua beleza interior, não pode ser na pressa, na afobação.
- Para conhecer suas virtudes e defeitos, é preciso mais do que um dia, uma "ficada". Precisamos alongar o namoro, fazer o tema de casa.
- Para tê-la em sua plenitude, em vez de ficar na pegação, é preciso cheirá-la como flor, tocá-la suavemente, como a uma tela do tablet ou celular, uma tecla de cada vez.
- Para ser um amante íntegro, não seguir o senso comum dos amigos, de contar vantagens sobre o seu (próprio) amor. Não sei explicar, mas acho que tem a ver com amor próprio.
- Para ser um amante bem-sucedido, cuide para que o sexo mantenha certa distância da cabeça. Muito? Pouco? Quanto, eu não sei. Nesse assunto acho que ainda sou bem cândido!

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Minhas bunda - Mario Prata

A parte carnosa do corpo formada pelas nádegas.

A principal diferença entre a revista Playboy americana e a Playboy brasileira é a língua? Errado. É a bunda.
Na americana, temos seios, úberes, verdadeiras tetas que mal cabem nas páginas duplas. Na nossa, temos bundas. Bundinhas de penugem loira, bundinhas de contorno marrom, até bundinhas cor-de-rosa.
Americano não gosta de bunda? Eu diria que americano não conhece a bunda. Aliás, no mundo inteiro, não existem bumbuns como os nossos, ou melhor, como as nossas. A bunda é um produto interno e bruto tipica¬mente brasileiro. Às vezes, a revista americana faz edições especiais sobre seios. Aqui, fazemos verdadeiros compêndios sobre (e sob) bundinhas. Narcisamente, o brasileiro adora a própria bunda.
Mas de onde veio a nossa bunda? Não das alvas portuguesas, muito menos das esparramadas italianas e, menos ainda, das desbundadas japone¬sas. Muito menos das amassadas índias. Sempre me intrigou esta tanajúrica pergunta. Quem arrebitou com pincel de ouro, com formão de prata, a bundinha brasileira?
Tinha essa dúvida até conhecer Cabo Verde, um país de dez vulcâni¬cas ilhas na costa oeste da África. Quase fora do mapa. Foi lá que tudo começou.
O país tem, atualmente, mais ou menos, 300 mil bundas ambulan¬temente espalhadas pelo arquipélago. Bundas livres de Portugal desde 1975. E a bunda brasileira, antes de chegar aqui, passou por lá, vindo do continente africano. Ou seja, foi lá que inventaram a fórmula, lúdico, o molde mais que esteticamente perfeito. A bunda politicamente correta. Tenho certeza dessa afirmação e vou tentar provar.
Foi em Cabo Verde que surgiram as primeiras mulatas. Apesar de a palavra mulata ter origem espanhola, o conteúdo foi uma criação dos ingleses, holandeses e dos franceses que por lá passavam desde o começo do século XVI, com seus navios negreiros trazendo escravos para o Brasil. Lá era o point no meio do Atlântico. E lá os brancos deixaram o sêmen (do latim sêmen, que significa semente) para a fabricação das mulatas com suas respectivas bundas. Gostavam tanto das cabo-verdianas que Sir Francis Drike, pirata-mor daqueles tempos, chegou até a saquear o país em 1590 a tal Companhia das Índias Ocidentais. O saque durou sete anos e milhares de sementes foram im(plantadas). Tinham sacado a bunda.
Esta mistura deu a cor atual das nativas. Não são negras como vizinhas senegalesas, são marrons. Ou castanhas, como preferem. E lindas. As cabo-verdianas são lindas. Uma espécie de Sônia Braga bem queimada. Olhos claros como dos piratas bisavós. Uma porção de Patrícia França.
Fica difícil descrever a bunda das mulheres de Cabo Verde. Tem que ver para crer. São Tome não acreditaria em seus próprios olhos. Mas olhando uma delas passar, você percebe que ela está no doce balanço a caminho do mar (do Brasil).
Um dia estava com um amigo português, o cineasta Paulo de Souza, especialista em cinema africano, numa praça de Mindelo, a capital intelectual do país e das bundas (a capital do país chama-se Praia, pode?). Eis que passa na nossa frente uma bunda vestida com uma minissaia verde. Justíssima. Não tivemos dúvida. Seguimos a bunda por vários quarteirões em homenageante silêncio, até que ela entrou numa casa e nós voltamos para a praça sem a necessidade de dizermos nenhuma palavra um para o outro. Era uma obra-prima da natureza aquela menina. De noite, lá pelas duas da manhã, estou eu no meu hotel a dormir e batem na porta. Era o Paulo que havia ido a uma boate. Estava trêmulo, suado:
— Vem, vem, lembra daquela bunda?
— Estava sonhando com ela.
— Veste, veste! Ela está na boate. A bunda está dançando na boate. E lá fomos nós dois para a boate. Não só a "nossa" bunda de verde (agora num fulgurante amarelo) dançava, mas uma infinidade delas, espetáculo.
Só que, no princípio, era o verbo e não a carne e, naquele tempo, na época do tráfico dos escravos, quando surgia a bunda no meio do Atlântico, qual ilha vulcânica, a bunda ainda não se chamava bunda. Como, aliás, até hoje em Portugal não se chama. Bunda só no Brasil. Em Portugal a bunda é um cu.
Mas foi na mesma África que fomos buscar a sonoríssima e mais do que adequada palavra bunda. Diz a lenda que a origem seria das danças dos africanos. Ficavam as mulheres dançando no meio e o crioléu em volta batendo tambor e fazendo som com a boca: bun-da!,bun-da! Mas isso é lenda. Na verdade, a palavra veio da língua quimbundo (kimbundu), da palavra bunda (mbunda, tubundas, elebunda?), lá para os lados de Angola, local onde viviam os bantos, raça negra sul-africana à qual pertenciam, en¬tre outros, os negros escravos chamados no Brasil angolas, cabindas, benguelas, congos, moçambiques.
Nós, brasileiros e cabo-verdianos, nascemos com a bunda virada para a lua.

terça-feira, 2 de abril de 2013

Em busca de mim - Andiara Pereira Nunes

Onde eu poderia me encontrar?
Quase nada sei sobre mim...
Acho que me perdi em alguma cidade grande,
ou então
o vento me carregou.
Será que eu não saí voando feito pássaro?!
Quase nada sei sobre mim...
Acho que evaporei como as águas dos rios.
Talvez
eu esteja no fundo de algum baú,
esperando para ser descoberta.
Outro dia,
pensei que havia me encontrado.
Que nada!
Encontrei foi uma fotografia em preto e branco
de uma garota parecida comigo.
Quase nada sei sobre mim...
Será que não fiquei presa no fundo do mar?
Ou então
peguei carona em algum cometa!
Quase nada sei sobre mim...
Só espero
que eu me encontre antes que alguém me roube.


Do livro: "Crianças do Rio Grande Escrevendo Histórias" - 1996

sábado, 30 de março de 2013

Tragédia concretista - Luís Martins


O poeta concretista acordou inspirado. Sonhara a noite toda com a namorada. E pensou: lábio, lábia. O lábio em que pensou era o da namorada, a lábia era a própria. Em todo o caso, na pior das hipóteses, já tinha um bom começo de poema. Todavia, cada vez mais obcecado pela lembrança daqueles lábios, achou que podia aproveitar a sua lábia e, provisoriamente desinteressado da poesia pura, resolveu telefonar à criatura amada, na esperança de maiores intimidades e vantagens. Até os poetas concretistas podem ser homens práticos.

Como, porém, transmitir a mensagem amorosa em termos vulgares, de toda a gente, se era um poeta concretista e nisto justamente residia (segundo julgava) todo o seu prestígio aos olhos das moças? Tinha que fazer um poema. A moça chamava-se Ema, era fácil. Discou. Assim que ouviu, do outro lado da linha, o “alô” sonolento do objeto amado, foi logo disparando:
- Ema. Amo. Amas?
- Como? – surpreendeu-se a jovem – Quem fala?
- Falo. Falas. Falemos.
A pequena, julgando-se vítima de um “trote”, ficou por conta e, como era muito bem-educada (essas meninas de hoje!), desligou violentamente, não antes de perpetrar, sem querer, um precioso “hai-kai” concretista:
- Basta, besta!
O poeta ficou fulminado. Não podia, não podia compreender. Sofreu, que também os concretistas sofrem; estava apaixonado, que também os concretistas se apaixonam, quando são jovens – e todo poeta concretista é jovem. Não tinha lábia. Não teria os lábios. Por que não viajar para a Líbia? Desaparecer, sumir… Sentia-se profundamente desgraçado, inútil. Um triste. Um traste.
O consolo possível era a poesia. Sentou e escreveu:
“Bela. Bola. Bala.”
O que, traduzindo em vulgar, vem a dar esta banalidade: “A minha bela, não me dá bola. Isto acaba em bala.”
Não acabou, naturalmente. Tomou uma bebedeira e tratou de arranjar outra namorada, a quem dedicou um soneto parnasiano. Foi a conta. Casaram-se e são muito falazes… Oh! Perdão: felizes.

quarta-feira, 27 de março de 2013

Biruta - Lygia Fagundes Telles



Alonso foi para o quintal carregando uma bacia cheia de louça suja. Andava cm dificuldade, tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus bracinhos finos.
  - Biruta, eh, Biruta! - chamou sem se voltar.
O cachorro saiu de dentro da garagem. Era pequenino e branco, uma orelha em pé e a outra completamente caída.
  - Sente-se aí, Biruta, que vamos ter uma conversinha - disse Alonso pousando a bacia ao lado do tanque. Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os pratos.
  Biruta sentou-se muito atento, inclinando interrogativamente a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda, como se quisesse apreender melhor as palavras do seu dono. A orelha caída ergueu-se um pouco, enquanto a outra empinou, aguda e ereta. Entre elas, formaram-se dois vincos, próprios de uma testa franzida do esforço de meditação.
  - Leduína disse que você entrou no quarto dela - começou o menino num tom brando. - E subiu em cima da cama e focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou lá. A carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira nova, Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga agora o que é que ia acontecer se ela fosse uma carteira nova!? Leduína te dava uma surra e eu não podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina, lembra? Você se lembra muito bem, sim senhor, não precisa fazer essa cara de inocente!...
  Biruta deitou-se, enfiou o focinho entre as patase baixou a orelha. Agora, ambas as orelhas estavam no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu olhar interrogativo parecia perguntar:
"Mas o que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro de nada..."
  - Lembra sim senhor! E não adianta ficar aí com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! - repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos. Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha as mãos de velho
  - Alonso, anda ligeiro com essa louça! - gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da cozinha. - Já está escurecendo, tenho que sair!
  - Já vou indo - respondeu o menino enquanto removia a água da boca. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por que? Por que razão não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona Zulu já andava impaciente. Leduína também. Biruta fez isso, Biruta fez aquilo...
  Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os pastéis, "Alonso, você não viu onde deixei a carne?" Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro num velho colchão metido num ângulo de parede. Biruta estava lá deitado bem em cima do travesseiro, com a posta de carne entre as patas, comendo tranquilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu que a carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, "o que é que eu faço, dona Zulu?"
  Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão
  - Está aqui Leduína.
  - Mas falta um pedaço!
  - Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.
  - Mas por que você escondeu o resto? - perguntou a patroa, aproximando-se
  - Por que fiquei com medo.
Ele ainda tinha bem viva na memória a dor brutal que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo, como se não pudesse parar mais.
  - Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãzinho!
  Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. "Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal."
  Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos.
  Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de dona Zulu?
  - Hem, Biruta?! E se fosse a carteira de dona Zulu?
  Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.
  - Por que você não arrebenta minhas coisas? - prosseguiu o menino elevado a voz. - Você sabe que tem todas as minhas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal, está acabado. você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!...
  Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida, calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.
  Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças?
  Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. "Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse, Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. Ah Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pêlo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!"
  - Alonso! - Era a voz de Leduína. - Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase noite, menino.
  Alonso ergueu-se afobadamente. Mas antes de pegar a bacia meteu a mão na água e espargiu-a no focinho do cachorro.
  - Chega de dormir, seu vagabundo!
  Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas dianteiras, num longo espreguiçamento.
  O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe os tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu avental.
  - Aproveita, seu bandidinho! - riu-se Alonso. - Aproveita que eu estou com a mão ocupada, aproveita!
  Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas Biruta esquivou-se, latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.
  - Aí, Leduína que o Biruta judiou de mim!...
  A empregada pôs-se guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola com batatas:
  - Olhaí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.
  - Mas só eu vou jantar? - surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.
  - Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.
  Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olhinhos brilharam no escuro: Biruta estava lá. Alonso suspirou. Era bom quando Biruta resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia. Tinha então a certeza de que não estava acontecendo nada. A
trégua. Voltou-se para Leduína.
  - O que o seu filho vai ganhar?
  - Um cavalinho - disse a mulher. A voz suavizou. - Quando ele acordar amanhã, vai encontrar o cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentado que queria um cavalinho, que queria um cavalinho...
  Alonso pegou uma batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.
- Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moços com uns saquinhos debalas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapato, um casaquinho de malhae uma camisa.
  - Por que ela não ficou com você?
  - Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...
  Deixou cair na caçarola a batata já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno a vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas " a madrinha". Intilmente a preocurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de pesentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quando então se reunia aos meninos da capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo!
                            
                                "... O bom jesus é quem nos traz
                                A mensagem de amor e alegria"...

- Também é muita responsabilidade tirar crianças para criar! - disse Leduína desamarrando o avental. - Já chega os que a gente tem...
  Alonso baixou o olhar. E de repente sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo. Riu-se:
  -Eh, Biruta! Está com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!... Sabe, Leduína, Biruta também vai ganhar um presente que está escondido lá debaixo do meu travesseiro. Com aquele dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma beleza de bola! Agora dele não vai precisar mais morder suas coisas, tem a bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nda, sabe, Ledeuína?
  - Hoje cedo ele não esteve no quarto da dona Zulu?
  O menino empalideceu.
  - Só se foi na hora em que fui lavar o automóvel... Por que Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?
  Ela hesitou. E encolheu os ombros.
  - Nada. Perguntei à toa.
  A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela estava sorridente. O menino sorriu também.
- Ainda não foi pra sua festa, Leduína? - perguntou a moça num tom afável. Abotoava os punhos do vestido de renda. - Pensei que você já estivesse saído... - E antes que a empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: - Então? Preparando seu jantarzinho?
  O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava assim mansamente, ele não sabia o que dizer.
  - O Biruta está limpo, não está? - Prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se debaixo do fogão.
  Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:
  - Biruta, Biruta! Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder... - Voltou-se para a patroa. E sorriu desculpando-se: - Até de mim ele se esconde.
  A mulher passou mão no ombro do menino:
  - Vou a uma festa onde tem um menino assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de levar o Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar radiante, o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só por hoje, não emnpresta? O automóvel ja está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.
  O rosto do menino resplandeceu num sorriso. Mas então era isso?!... Dona Zulu pedido o Biruta emprestado, precisando do Biruta!... Abriu a boca para dizer-lhe que sim, que o Biruta estava limpinho, e que ficaria contente de emprestá-lo para o menino doente, estava muito contente com isso... Mas sem dar-lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.
  - Viu, Biruta? Você vai numa festal - exclamou Alonso, beijando repetidas vêzes o focinho do cachorro. - Você vai numa festa, seu sem-vergonha! Numa festa com crianças, com doces. com tudo! Mas pelo amor de Deus, tenha juizo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu sapato ... - acrescentou num sussurro, com a boca encostada na orelha do cachorro. Apertou-lhe a pata. - Te espero acordado, Biru ... Mas não demore muito!
  O patrão já estava na direção do carro. Alonso aproximou-se.
  - O Biruta, doutor...
  O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.
  - Está bem, está bem. Pode deixá-lo ai atrás.
  Alonso ainda beijou furtivamente o focinho do cachorro. Em seguida, fêz·lhe uma última carícia, colocou-o no assento do automóvel e afastou-se correndo.
  - Biruta vai adorar a festa! - exclamou assim que entrou na cozinha. - E lá tem doces, tem crianças, ele não quer outra coisa! - Fez uma pausa. Sentou-se. - Hoje tem festa em teda parte, não, Leduina?
  A mulher já se preparava para sair.
- Decerto.
  Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.
  - Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?
  - Não, menino. Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é
que aquele rei manda prender os três.
  Alonso concentrou-se, apreensivo:
  - Sabe, Leduina, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois!... - Riu-se metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruido do carro que já saia. - Dona Zulu estava linda, não?
  - Estava.
  - E tão boazinha também. Você não achou que hoje ela estava boazinha?
  - Estava, estava muito boazinha, sim... - concordou a empregada. E riu-se.
  - Por que você está rindo?
  - Nada - respondeu ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta. Mas antes, parecia querer dizer qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.
  Alonso observou-a. E julgou adivinhar o que a preocupava.
  - Sabe, Leduína, você não precisa dizer para Dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com ele, já surrei ele, ele não vai fazer mais isso nunca mais, eu prometo que não.
  A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez encarou-o. E após vacilar ainda um instante, decidiu-se:
  - Olha aqui, se êles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu para você, Biruta não vai mais voltar.
  - Não vai o quê? - perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca e levantou-se. - Não vai o quê, Leduína?
  - Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei toda a conversa dela com o doutor: que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu para ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era Natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem para a festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já, o Biruta não vai voltar.
  Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca.
A voz era um sopro quase inaudível:
  - Não? ..
  Ela perturbou-se.
  - Que gente também! - explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino. - Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar...
  Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu­se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz do luar, uma luz branca e fria, chegava até a borda do colchão desmantelado.
  Alonso cravou os olhos brilhantes e secos num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou­se. E estendeu a mão tateante. Tirou debaixo do travesseiro uma bola de borracha.
  - Biruta - chamou baixinho. - Biruta... - repetiu. E desta vez só os lábios se moveram e não saiu som algum.
  Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, imóvel, segurando a bola.
Depois apertou-a fortemente contra o peito, como se quisesse enterrá-la no coração.

Pílulas diárias de fofoca

  – Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém! Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”. Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ningu...