quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A metamorfose - L. F. Veríssimo


A barata acordou um dia e viu que tinha se transformado num ser humano. Começou a mexer suas patas e descobriu que só tinha quatro, que eram grandes e pesadas e de articulação difícil. Acionou suas antenas e não tinha mais antenas. Quis emitir um pequeno som de surpresa e, sem querer, deu um grunhido. As outras baratas fugiram aterrorizadas para trás do móvel. Ela quis segui-las, mas não coube atrás do móvel. O seu primeiro pensamento humano foi: que vergonha, estou nua! O seu segundo pensamento humano foi: que horror! Preciso me livrar dessas baratas!


Pensar, para a ex-barata, era uma novidade. Antigamente ela seguia o seu instinto. Agora precisava racionar. Fez uma espécie de manto da cortina da sala para cobrir sua nudez. Saiu pela casa, caminhando junto à parede, porque os hábitos morrem devagar. Encontrou um quarto, um armário, roupas de baixo, um vestido. Olhou-se no espelho e achou-se bonita. Para um ex-barata. Maquilou-se. Todas as baratas são iguais, mas uma mulher precisa realçar a sua personalidade. Adotou um nome: Vandirene. Mais tarde descobriu que só um nome não bastava. A que classe pertencia? Tinha educação? Referência ? Conseguiu, a muito custo um emprego como faxineira. Sua experiência de barata lhe dava acesso à sujeiras mal suspeitadas, era uma boa faxineira.

Difícil era ser gente. As baratas comem o que encontram pela frente. Vandirene precisava comprar sua comida e o dinheiro não chegava. As baratas se acasalam num roçar de antenas, mas os seres humanos não. Se conhecem, namoram, brigam, fazem as pazes, resolvem se casar, hesitam. Será que o dinheiro vai dar? Conseguir casa, móveis, eletrodomésticos, roupa de cama, mesa e banho. A primeira noite. Vandirene e seu torneiro mecânico. Difícil. Você não sabe nada, bem? Como dizer que a virgindade é desconhecida entre as baratas? As preliminares, o nervosismo. Foi bom? Eu sei que não foi. Você não me ama. Se eu fosse alguém você me amaria. Vocês falam demais, disse Vandirene. Queria dizer vocês, os humanos, mas o marido não entendeu; pensou que era vocês os homens. Vandirene apanhou. O marido a ameaçou de morte. Vandirene não entendeu. O conceito de morte não existe entre as baratas. Vandirene não acreditou. Como é que alguém pode viver sabendo que ia morrer?

Vandirene teve filhos. Lutou muito. Filas do INPS. Creches. Pouco leite. O marido desempregado. Finalmente, acertou na esportiva. Quase quatro milhões. Entre as baratas, ter ou não ter quatro milhões não faria diferença. A barata continuaria a ter o mesmo aspecto e a andar com o mesmo grupo. Mas Vandirene mudou. Empregou o dinheiro. Trocou de bairro. Comprou casa. Passou a se vestir bem, a comer e dar de comer de tudo, a cuidar onde colocava o pronome. Subiu de classe. (Entre as baratas, não existe o conceito de classe). Contratou babás e entrou na PUC. Começou a ler tudo o que podia. Sua maior preocupação era a morte. Ela ia morrer. Os filhos iam morrer. O marido ia morrer – não que ele fizesse falta. O mundo inteiro, um dia, ia desaparecer. O sol. O Universo. Tudo. Se espaço é o que existe entre a matéria, o que é que fica quando não há mais matéria? Como se chama a ausência do vazio? E o que será de mim quando não houver mais nem o nada? A angústia é desconhecida entre as baratas.

Vandirene acordou um dia e viu que tinha se transformado de novo numa barata. Seu penúltimo pensamento humano foi, meu Deus, a casa foi dedetizada há dois dias! Seu último pensamento humano foi para o seu dinheiro rendendo na financeira e o que o safado do marido, seu herdeiro legal, faria com tudo. Depois desceu pelo pé da cama e correu para trás de um móvel. Não pensava mais em nada. Era puro instinto. Morreu em cinco minutos, mas foram os cinco minutos mais felizes da sua vida. Kafka não significa nada para as baratas.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

CARNAVAL



Faces rosadas sobem as escadas.
É carnaval, e ela pode ser gata siamesa,
ou cobra fantasiada de ursinho de pelúcia.
Descubro a cobra com assombro.
Recuo, baixo a guarda, como fez Adão.
Furo os olhos, e meu mundo
se ilumina dos escombros.
Meu filme, finalmente, perdeu a dimensão.
Ela se aproxima e esbofeteia meu rosto,
diz que não tenho vergonha na cara,
devo pagar penitência e me auto-flagelar.
Elegante, desfila na passarela de um novo paraíso,
cheio de ultrajes sem estatística nem qualquer rigor.
De mãos abanando, tateio outra tribo,
não volto pra casa sozinho, seja lá
o que o paraíso for.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

TIRANDO O CHAPÉU PRA DEUS



Espantado, o pai escuta do filho a seguinte revelação:
- Não quero ser escritor, quero ser engenheiro! Adoro fazer cálculos, plantas-baixas de casas, e até já comprei uma calculadora!

Mas era só o que faltava, dias atrás o piá disse que não gostava de matemática!


É duro não colocar o desejo de pai no lombo do filho. Só resta agora ensaiar um diálogo com a cria:
- Filho, isso não é problema. Há grandes escritores e poetas, até compositores e músicos, que são engenheiros, médicos... Uma coisa não exclui a outra! Tu sabe que, no Brasil, pouquíssimos escritores conseguem viver de seus livros? É, eles têm que ter outra profissão. E vale o mesmo para os músicos, etc. Você conhece o Moacyr Scliar, não? Pois é, a maioria sabe que ele é escritor, e não é por acaso, ele é lido no mundo todo, e faz parte da Academia Brasileira de Letras. Porém, ele é médico também. E sabe que a arte da medicina tem tudo a ver com a literatura? Pensa no que as duas artes fazem, e você vai ver que isso é verdade. Se a literatura toca na alma das pessoas, a medicina toca na alma e no corpo. E o talento numa coisa não exclui o talento para outras.


Coincidência ou não, essa conversa de filho para pai deu-se na semana em que o Bagual nos deixou. Conheci ele, primeiro, como médico. Naqueles exames que nos autorizavam a usar a piscina do clube. A gente dava um basta nas frieiras às vésperas de abertura da temporada. Nosso sobrenome na carteirinha servia de pontapé para uma conversa animada. E ele sempre conhecia alguém da família!


Aos poucos, quando suas composições começaram a habitar nosso universo, desenhamos um grande poeta em nosso imaginário. Aí, à imagem pública do médico Martin Agnoletto estava sobreposta à do poeta Martin Agnoletto. Mas só agora é que eu me pergunto sobre esse talento de transformar as lidas do cotidiano em poesia, trançar a palha dos versos com a mesma desenvoltura de quem maneja um bisturi numa sala de cirurgia.


Bagual, isso é para poucos. A arte da palavra requer muito mais do que conhecimento técnico. Ao escrever lindas canções, deixavas te envolver numa atmosfera que era a de “ouvir a voz do coração”.


É o que eu tento, como pretendente a poeta sonhador. Mas é difícil! Chego a pensar, de vez em quando, que não nasci para isso. Mas é uma tal teimosia (pretensão exagerada?), uma crença de que, nalgum momento, serei visitado pela deusa da criação. E a toda hora me vem à cabeça um poema do Mário Quintana, intitulado Versículo inédito do Gênesis: “E eis que, tendo Deus descansado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da criação”.


Com alguma culpa, constato exatamente essa missão humana, apenas humana, como diz o Quintana, de continuar a criar, sendo essa a maior razão de nossa vida. Não, não estou descartando outras lidas do nosso dia-a-dia. Mas confesso que a eternidade em que acredito, com certeza absoluta, está na nossa capacidade de sermos criativos. Acho que era esse também o ideal de Fernando Pessoa, quando ele disse que “Viver não é necessário; o que é necessário é criar”.


A culpa por ter estado indiferente ao que se passava contigo, com a desculpa de ter andado muito ocupado, tem me levado a tentar decifrar (só agora?) o quanto você teria para nos dizer sobre a vida, o amor, a bondade, ou a maldade dos homens. Uma parte disso será revelado pela narrativa que vai nascer da memória de teus amigos e familiares. Mas a outra (grande) parte vou encontrar ouvindo as músicas e prestando atenção nas letras que você compôs. E uma certeza, a grande certeza, eu já tenho: tua eternidade está garantida, ao lado dos grandes criadores! Qual a importância disso, agora que vivemos a dor da tua falta entre nós? Só o tempo vai nos acalmar nessa hora, e a eternização de tua obra vai se solidificar com o passar do tempo.


Mas uma lição que aprendi do pouco convívio que tive contigo, acima de tudo, e que gostaria de confessar aos leitores, é o seguinte: de nada serve nossa inteligência, se ela não andar de mãos dadas com o nosso coração! Foi do convívio dessas duas partes de teu ser que nos presenteou com versos do tipo: “Na xucra bailanta” “no fundo dos céus” “tirando o chapéu pra Deus”!

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A FORMIGA LARANJINHA



A formiga laranjinha
mordeu, mordeu,
até formigar
minha mão.

Não é o fim

da picada

ser formigado
por laranjinhas
antenadas?

Isso eu sei:
as antenas
conectadas
nas cabeças
das laranjinhas
é que guiam
(seja nos vales
ou ribanceiras)
toda essa legião
de trabalhadeiras.

Um poeta perguntou:
“Qual a forma da formiga?
Se andam sempre juntas,
não devem ter a forma de amiga?”.

Se tem formiga
com a forma de laranjinha,
não tem formiga
com a forma de abóbora,
morango, melancia e melão?

E se eu as devorasse,
não formigariam minha mão?

Ainda bem
que a formiga
laranjinha
formigou
meu coração!

sábado, 6 de fevereiro de 2010

SONETILHO DE VERÃO - Paulo Henriques Brito



Traído pelas palavras.
O mundo não tem conserto.
Meu coração se agonia.
Minha alma se escalavra.
Meu corpo não liga não.
A ideia resiste ao verso,
o verso recusa a rima,
a rima afronta a razão
e a razão desatina.
Desejo manda lembranças.

O poema não deu certo.
A vida não deu em nada.
Não há deus. Não há esperança.
Amanhã deve dar praia.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O AMOR DE MAU HUMOR - Ruy Castro



Gaúcho que é gaúcho não deixa sua mulher mostrar a bunda para ninguém. Nem em baile de carnaval. Gaúcho que é gaúcho não mostra a sua bunda para ninguém. Só no vestiário, para outros homens e, assim mesmo, se olhar por mais de trinta segundos sai briga. (Luis Fernando Veríssimo).


Um homem nunca está completo até que se casa. A partir daí, está acabado. (Zsa Zsa Gabor).


"Conhece-te a ti mesmo"? Se eu me conhecesse, fugiria espavorido. (Johann Wolfgang Goethe).


Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. (Machado de Assis).


Nunca fui capaz de responder à grande pergunta: o que uma mulher quer? (Sigmund Freud).


Como é idiota a civilização! De que serve o corpo se nos obrigam a enclausurá-lo num estojo como se ele fosse um violino raro? (Katherine Mansfield).


Conte-me tudo a seu respeito - suas lutas, seus sonhos, seu número de telefone. (Peter Arno).


A maquiagem nos diz mais do que um rosto. (Oscar Wilde).


Fiz análise de grupo quando era jovem porque não podia pagar uma análise individual. Cheguei a ser capitão do time de vôlei dos Paranóicos Latentes. Todos nós, os neuróticos, tirávamos o domingo de manhã para fazer algum esporte. Era sempre os Roedores de Unhas contra os Mijões na Cama. (Woody Allen).


O problema de resistir a uma tentação é que você pode não ter uma segunda chance. (Laurence J. Peter).


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

ECRITORES E COZINHIROS


Estou guardando as compras que fiz no supermercado e, para minha surpresa, encontro uma caixinha de creme de leite. Mas como o creme de leite veio parar aqui, se eu não o havia anotado na minha lista de compras?


É a lista que me orienta diante das gôndolas, no supermercado. É assim que passo de uma ponta a outra, sessão por sessão, como quem busca encontrar os ingredientes que vão ajudar a preparar a essência da juventude.


Tem gente que detesta ir ao mercado. Eu não. Vou quase todos os dias. Mas estou vacinado contra o impulso de comprar tudo que aparece pela frente. Óbvio que não fui eu que coloquei aquela caixinha de creme de leite dentro de minhas sacolas.


Já que disponho de um misterioso creme de leite para o almoço de domingo, e eu adoro estrogonofe, e como meus amigos reclamam que faz um tempão que não faço um almoço e os convido, por que não aproveitar a oportunidade?...


Alguém já fez estrogonofe para comer sozinho? Deve ser o acúmulo do egoísmo. E eu me sentiria muito mal não dividir um prato feito com um ingrediente que não é meu!


Caprichei no almoço. Sem a pressa de quem come fora, por quilo. Sem a pressa de quem come em restaurante e nunca se deu o trabalho de conhecer a cozinha e os cozinheiros. Muito menos pensou na necessidade que tem, quem cozinha, de saber se a pessoa gostou ou não de comer que ele ofertou.


Os outros vão saborear, ou vão detestar, pratos que nasceram de teu amor, ou da tua indiferença, da tua amizade para com eles. É dura a vida dos cozinheiros. Eles criam uma expectativa a respeito da reação daqueles que se servem da sua criação, seja um pudim, uma feijoada ou um estrogonofe.

Rubem Alves, numa crônica cujo título é Escritores e cozinheiros, diz que “gostaria de ter um restaurante. Mais precisamente: gostaria de ser um cozinheiro (...) É que nas cozinhas se prepara o prazer. Mas para preparar o prazer, o cozinheiro deve ser um adivinho de desejos, conhecedor dos segredos da alma e do corpo. (...) Já que não sei cozinhar, escrevo como quem cozinha. Minha cabeça é uma cozinha. O cozinheiro cozinha pensando no prazer que sua arte irá causar naquele que come. Eu escrevo pensando no prazer que o meu texto poderá produzir naquele que me lê. Há uma relação entre cozinhar e escrever. Nas suas origens, sabor e saber são a mesma coisa. (...) Saber é experimentar o gosto das coisas: comê-las. O sábio é aquele que conhece não só com os olhos, mas especialmente com a boca. Roland Barthes confessa que havia chegado para ele o momento do esquecimento de todos os saberes sedimentados pela tradição e que agora o que lhe interessava era ‘ o máximo possível de sabor’. Ele queria escrever como que cozinha. Ele queria ler como quem come uma comida deliciosa”.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

SÓ ALEGRIA NO SÃO LUIS!






Estou em dúvida sobre cinco coisas: o título desta crônica não deveria ser Alegria, só no São Luis!? Nicolas é jogador tão bom assim? Como se escreve Nicolas? O filhote de gato, que eu adotei, é macho ou fêmea? Com que nome vai ser batizado?

No jogo de quarta-feira, 2 X 1 do São Luis sobre o Novo Hamburgo, observei algumas situações curiosas e engraçadas dentro do estádio. Legal foi notar a grande presença de mulheres e crianças (famílias ou não). E é inevitável perguntar: quem mobiliza tanto a comunidade de Ijuí como o São Luis? Como podem tantos ijuienses permanecerem indiferentes a esse clube que representa toda uma extensão geográfica de nosso estado, ao fazer parte da elite do Gauchão? Dá a impressão de que nosso clube tem que se desculpar a toda hora, por ter tal história, por usar de tais cores, etc. Mas isso é assunto para os experts...

Vamos à parte engraçada. Nem bem havia ocorrido cinco minutos de jogo, alguns torcedores (Pai? Sogro? Sogra? Tios? Namorada? Primos? Fã Clube??) começaram a gritar para o técnico Beto Campos - a distância entre esses torcedores e o técnico não passava de 10 metros:
- Ô, Beto, coloca o Nicolas!
- Vamo tirá o Marreta e colocá o Nicolas!

A primeira reação dos torcedores que estavam por perto foi de estranhamento: afinal, o jogo estava apenas começando, e o nosso time vinha muito bem. Perguntei a um torcedor que estava ali por perto se de fato o Nicolas era tão bom assim, e ele confirmou. O Nicolas era muito bom! Em dois jogos havia marcado dois gols! Os pedidos (com ar de xingamento ao técnico) eram freqüentes e insistentes. Eu e outros torcedores, que não conhecíamos o Nícolas, botamos pra funcionar nossa imaginação: Nicolas deve ser forte e veloz como um puma! Deve driblar e enganar os zagueiros com a agilidade de um gato! Puxa, a Baixada está revelando para o mundo mais um craque!

Foi tanta a insistência do fã clube do Nicolas que, aos quinze minutos do segundo tempo, o técnico tirou o Marreta e o colocou em seu lugar. De fato, o jovem mostrou que conhece! Enquanto teve forças, infernizou a vida dos zagueiros, forçando-os a serem punidos com cartões amarelos.

Na saída do estádio meu filho, o Giovanni, comentou sobre o Nicolas:
- Pai, tu não acha que aqueles torcedores exageraram, pedindo a entrada do Nicolas já no primeiro tempo?
- Concordo, filho. Mas sabe como é o torcedor. É pura emoção! Mas me diga uma coisa, se você for comparar o Nicolas com um bicho, por exemplo, um gato ou um puma, com qual dos dois ele mais se parece?

Aí o Giovanni, com a autoridade de quem treina há três anos em escolinha de futebol, respondeu:
- Pai, ele ainda parece com um filhote de gato.
- Por que, filho?
- Ah, ele é ágil, veloz e tudo o mais, mas ainda não é um puma. Ele precisa aumentar a força para escapar da violência dos zagueiros e chegar diante do goleiro com a gana dos grandes artilheiros.

Pouco depois lembrei de dizer ao meu filho que eu havia adotado um gatinho cinza. Só não lhe disse que ele é muito arisco e que não me deixou agarra-lo pra mim saber se é macho ou fêmea. Como sou democrático em algumas coisas, disse a meu filho que ele poderia escolher um nome para o gato.

Assim que chegamos em casa e o gatinho surgiu diante de seus olhos - todo desconfiado e arredio - o Giovanni falou, com ar de torcedor vitorioso:
- Já sei, pai. O gatinho vai se chamar Nicholas!

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

OS QUERIBUNS



Os moradores do planeta Queribuns
vivem de sonhos.
Os pedreiros sonham que são jogadores de futebol.
Os frentistas sonham que são padeiros,
e os padeiros, confeiteiros.
Os cozinheiros sonham que plantam soja,
ou que são criadores de gado.
Os Queribuns professores
são os maiores sonhadores:
são médicos, políticos e advogados!

Os Queribuns sonham que são crianças
depois que ficam adultos, e, imagina o furdunço:
as crianças não apenas sonham, elas imitam os adultos!

Foram os Querembens, que moram num planeta próximo,
e que são considerados “príncipes da fofoca”, que disseram:
- Os Queribuns não vivem de seus sonhos,
eles se alimentam dos sonhos dos outros!

domingo, 24 de janeiro de 2010

ANOTAÇÕES

para evitar as náuseas
e a sedução do nada
corro me alimentar
de anotações que fiz e escondi
dentro dos livros.

Algumas delas me trazem à superfície
e drenam os pulmões com vida.
Fazem rir de mim
e até sentir uma certa saudade ao descobrir,
nas promessas que fiz em forma de frases,
o quanto me escondi atrás de um menino sonhador.


Hoje acordei com uma música do Raul
martelando na cabeça.
Batem, rebatem,
sempre os mesmos versos:
"Um psiquiatra disse para que eu me esforçasse
e tentasse voltar à vida...
E eu parei de tomar ácido licérgico
e fiquei quieto
lambendo as minhas próprias feridas".

Os bilhetes que rabisquei
e guardei entre as quatro paredes dos livros
são a droga e o remédio
que mandam pra outros lares
o tédio.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

QUEM SABE OUTRO DIA



Não cospe no prato que você comeu. Foi a lição que me veio, límpida, e lúcida. Mas os insensatos, maioria que habita nosso planeta, a desprezam. Pisam, esmagam o território onde se criaram, e as pessoas que cimentaram o chão que lhes serve de apoio.


Almoçou com outro, totalmente insensível, que eu observei. Enquanto comia, ele só reparava nos negócios que ia realizar pela tarde. Fazia sim com a cabeça aos sussurros dela, sem tragar o mínimo do que ela ofertava com a boca. Seus dentes retalhavam o bife e a alface, impacientes com o assunto que ela colocava na sobremesa.


Não importa se eram conversas ensaiadas do dia-a-dia “Será que vai chover?”, “Mas que tempo meio louco!”, ou se eram propostas de uma tarde inesquecível, os dois mergulhados em banheiras e deitados em redes de orgias, de motel em motel, champanhe, espelhos, pelo norte e pelo sul da cidade.


Só que para ele, naquele dia, as conversas eram pasteurizadas, as músicas do sistema de som do restaurante todas se pareciam. O negócio que estava bem atado para aquela tarde era de, pelo menos, cinqüenta mil reais. Já a relação que ele poderia atar com essa jovem estudante, pouco o entusiasmava. Por causa dos negócios? Por que estava separado há pouco, e as feridas não haviam cicatrizado? Por que sua separação havia trazido um rombo em seu capital? Isso eu não sei.

Ela se foi, ele na frente, apressado, pois tempo é dinheiro, ela tentava não perdê-lo de vista, remoendo seus planos, pensados e revistos para aquela tarde. Planejara passar a tarde com ele, seria o máximo, tomar um sorvete num barzinho de vila, bem no meio da tarde, indiferentes aos negócios.


Não queria solucionar os problemas do mundo. Queria apenas estender sua teia, e que ele recebesse, o mínimo que fosse, uma torrente de amor que se desprendia dessa teia. Acreditava que ele soubesse como era importante um cativar o outro, como lera no Pequeno Príncipe. Cativar, cativar era a teia que ela desejava jogar, como um poncho, sobre seus ombros.


Restou a mesa cheia de restos, pratos, talheres, copos. Ela se foi, mas deixou para mim sua boca, emoldurada a batom no guardanapo, com o seguinte recado de seus lábios: “Quem sabe outro dia?”

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...