sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Chutando a porta de casa


 

Quando me chamam "Palermo!" levo um susto,

tenho a impressão de que meu sabor é de pano encardido,

pendurado num varal e crivado de balas grosso calibre

pelos olhares da comunidade.

Quando me chamam "Cadelão!", sinto-me na mesma condição

do servente de pedreiro ou do encanador ou do catador de lixo.

Uma e pouco da manhã, liguei a TV e sintonizei

um programa de entrevistas.

Três convidados debatem sobre a importância medicinal

e a liberação da Cannabis, e então meus olhos brilham

e eu me lembro das toneladas de baseado,

as bobagens que pronunciei, chapado,

as milhares de canções que ouvi

e o êxtase que experimentei,

muito mais do que um cidadão bem situado

consiga idealizar.

Fico arrepiado só de pensar nos perigos a que esses heróis –

selados como de classe média – estão submetidos.

As drogas e o álcool, os juros dos cartões de crédito,

todas e nenhuma ideologia, o formato da terra e as mudanças ambientais,

a pressão das furiosas bolhas direitistas e esquerdistas,

o sertanejo universitário e tals e tals.

Nem me falem dos conflitos familiares ou do bullying nas escolas.

Pressionado por tantas informações que se digladiam –  

asnos versus raposas, porcos versus bois e vacas etcétera e tal –  

sou surpreendido por crises de ansiedade e de suor

e de choro e uma vontade louca de encher a cara,

e o motivo, ó lindos e queridos escrotinhos,

o motivo é o de estar boiando na água fétida desse mundinho que desfrutais.

Os babacas colocam em risco minha condição social,

a de poder comprar uma TV de 50 polegadas em quinze prestações,

e isso vale pro carrinho popular,

que lavo e deixo brilhando e suas rodas tinindo

todo o sábado de tarde.

 Sonho de consumo.

Ainda vou ter uma gorda conta bancária e uma pança enorme,

só pra me estressar e correr pra academia 5 vezes por semana,

a cada verão,

e postar selfies caprichadas para impressionar as garotas.

Sonho de consumo.

Queimar fatias do meu salário nas farmácias,

ter um prazer sádico ao ouvir os vendedores gargantearem lançamentos

de complementos e vitaminas para isso e para aquilo.

Ainda vou ter uma dúzia de notas de 200 na carteira

e sentir uma alegria incomum ao ouvir a balconista dizer

que os produtos tais são bons porque vendem bem.

Ao cair a noite deixo o celular no silencioso,

pois grupos de conhecidos do WhatsApp,

a que fui encarecidamente convidado a participar,

desfilam mensagens de fé, de oração, Deus e Jesus e Virgem Maria

e mais isso e aquilo.

Imagens e caricaturas como se fossem uma parelha de cavalos

e sua carruagem me conduzindo pela escuridão da Idade Média

em direção à prometida luz que vem do alto.

E de novo estou fulo e com desejo de botar meu exército de um homem só nas ruas,

chutando e cuspindo e dividindo olhares raivosos com as donas de casa

fazendo compras em dias de preços estourando.

Que m**da, eu não precisava sofrer ao dar de cara

com os clichês de sempre.

Devo me acostumar com essa gente

que vive agarrada em muletas

e bengalas e andadores.

Sou cara de pau.

Sei que os outros estão compartilhando lixo,

também faço isso e finjo que considero tais dejetos

edificantes para a vida desses boçais.

Cinismo e cara de pau.

Não me afasto desses grupos.

Tenho esperança.

Quem sabe amanhã alguém se inspire pra além da superfície

e compartilhe algo que me entorte o queixo.

Ó meus irmãos, companheiros de longos ensaios de imbecilidade,

tudo o que espero é que algum de vocês me surpreenda

com novidade e intensidade,

como se me visitasse chutando a porta.

Eu podia estar transando sem camisinha,

pegando e espalhando por aí o HIV,

ou bamboleando pelas calçadas podre de bêbado.

Porém, aqui estou com minhas pantufas e lareira em brasa e TV moderninha,

vendo programas de quinta e bebericando cerveja.

Sou cara útil, um pateta que todo dia se esforça

para ser promovido e classificado pelo IBGE

como de classe média.

Um sujeito que sabe, como todos vocês, que tem prazer bovino

e visão mediana das coisas.

 

(B. B. Palermo)


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