Myrna, pseudônimo de Nelson Rodrigues, tinha uma coluna no jornal Diário da noite (1949) que servia de consultório sentimental para mulheres. Recebia cartas das leitoras e lhes dava conselhos, que variavam de ‘conquiste seu marido todos os dias’, ‘fuja de homem bonito’ a ‘a mulher perdoa sempre’. No texto brilhante do autor da ‘vida como ela é’, as mulheres liam algo diferente do que se via publicado por aí. Uma realidade que até hoje não se está acostumado a lidar.
No amor, Myrna acha que devemos ser "escravos espontâneos", a ponto de, se necessário, perder a personalidade, pois "a personalidade serve para várias coisas, até para se anular" (do site deniseescreve.wordpress.com).
"No princípio do mundo, o homem e a mulher eram um só. Portanto, cada criatura bastava-se a si mesma, cada criatura significava um casal. Depois, houve uma catástrofe qualquer. E se separaram e perderam a metade masculina e a metade feminina. E o destino de cada homem ou de cada mulher passou a ser o de procurar sua outra metade, para completar-se". É dessa forma, usando o mito da "unidade primitiva do homem", uma parte deliciosamente cômica do Banquete de Platão, que Nelson responde a carta de uma leitora (Patrícia Melo, comentário no livro Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo).
Infelizmente todo mundo busca uma solução pronta e produzida em série, que se pode comprar no mercado da esquina. Porcarias reproduzidas por comédias românticas, personagens de novelas e reforçada pelas revistas femininas. Falta um tanto de Myrna nas publicações hoje em dia. Um olhar masculino, menos fantasioso, mais ‘pé no chão’ e realista possível. Um bom relacionamento não se faz da noite pro dia e construir leva tempo e paciência. Ah, quanta paciência. E do feminino, o que devia se destacar, na minha opinião, devia ser a intuição. Só ela, tão sincera e tão pessoal, que pode nos ajudar nas questões do amor e da vida a dois.
ps: O título do livro é fantástico, embora eu acredite, de verdade, que dá pra amar e ser feliz ao mesmo tempo. hehe". (deniseescreve.wordpress.com).
O homem brilha pela ausência
Creio que, das cartas que tenho recebido, a de Jandira é uma das mais interessantes. Ela explica, às primeiras palavras, a natureza do seu drama: 'Acontece comigo uma coisa interessante. Brigo muito com Adalberto. E só acho, verdadeiramente, graça nele na sua ausência.' Aparentemente, o caso de Jandira é extraordinário. Uma mulher que prefere o bem-amado longe! Uma mulher que não deseja vê-lo! E, no entanto, este é um caso bastante comum. Direi mais: - a maioria das mulheres acha mais encanto no ausência que na presença do seu namorado, noivo ou esposo. Absurdo? Paradoxo? Não nada disso. Pura e simples evidência de todos os dias. E o fenômeno me parece lógico e natural. Senão, vejamos. Nós sabemos que todos os homens amam, inclusive os esquimáus. Portanto, milhões e milhões de homens. Dentro dessa quantidade tremenda - quantos homens cultos, inteligentes, interessantes? Uma minoria ínfima, irrisória. No caso da população brasileira, por exemplo. Digamos que tenhamos, no Brasil, vinte milhões de homens. Seria pedir muito querer vinte milhões de galãs de fitas de cinema. Impossível, absolutamente impossível. Se todo mundo fosse interessante, haveria uma valorização súbita e irresistível do homem desinteressante. E, por um motivo muito simples: é que ele se tornaria raro, excepcional, ultracotado. Mas, por enquanto, o que existe, multiplicado por não sei quanto, é o namorado ou noivo ou esposo desinteressante. Chegamos, então, a um ponto crucial: que deve fazer a mulher de um cidadão nessas condições? Antes de mais nada, não nos cabe nem mesmo direito de desejar que o chamado homem desinteressante desapareça. Porque assistiríamos a um espetáculo tenebroso; ou seja: o súbito despovoamento do mundo. Logo, ele deve sobreviver. E as mulheres são obrigadas a apelar para esse tipo de homem, porque o outro quase não existe. Conheço mulheres que nascem, criam-se, envelhecem e morrem, sem, jamais, terem visto um indivíduo que, do ponto de vista amoroso, seja ótimo. Muito bem. Digamos que eu me apaixone por um cidadão assim. Não posso achar a mínima graça na sua presença, porque ele é desinteressante. Tenho dois caminhos: ou deixar as coisas como estão, ou romper com ele. Mas romper não resolve nada. Porque deixo um cidadão sem encanto, e vou achar outro, nas mesmas condições (salvo a hipótese, improvável, de uma descoberta sensacional). Que faço eu? Se a presença do meu amado não me empolga, nem nada, apelo para a sua ausência. Recurso infalível! Sob a sua presença, eu o vejo como ele é, na realidade. Quero dizer, limitado, sem espírito, sem inteligência e, às vezes, feiísssimo. Já na ausência, tudo muda. Vejo-o não como ele é, mas como eu o quero, pois o que funciona é a minha livre criadora imaginação. Componho, para mim mesma, para meu regalo especial, a imagem de um homem fabuloso, que nada tem a ver com o meu amado; ou por outra, é o meu amado, mas exaltado, transfigurado, superaperfeiçoado. Eis por quê, na maioria dos casos, os homens ganham tanto com a ausência. O caso de Jandira pode se enquadrar perfeitamente nesses termos. Ela gosta de um homem que, de corpo presente, não a consegue impressionar, não consegue lhe transmitir nenhuma sensação de deslumbramento. Já que ela não deseja acabar com o romance, deve ver o menos possível o seu namorado e procurar valorizá-lo, durante a ausência. É a única solução para o caso."
Do livro Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. São Paulo, Companhia das letras, 2002.
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