quinta-feira, 25 de novembro de 2010

O que teu pai faz melhor do que o meu? - Ignácio de Loyola Brandão



Ainda não existiam coisas como o "dia dos pais". Todo dia era dia do pai, porque todos os dias tínhamos que nos entender com ele quando chegava do trabalho e a mãe desfiava o rosário de aflições que tínhamos causado: não obedeceu, não fez a lição de casa, fugiu da escola no recreio, brigou com um vizinho, quebrou um vidro com a bola, chupou manga verde, comeu melancia e tomou leite (proibidérrimo), jogou barro na roupa lavada.
Os pais eram sérios, austeros, distantes, carrancudos, temíveis, não conversavam com a gente sobre nenhum assunto, não acariciavam o filho. Vivíamos vidas em separado. Em casa, uma coisa. Na rua, outra. Porque só se brincava na rua.
No entanto, admirávamos aqueles homens, tanto que as disputas eram acirradas. Cada um exibia o pai mais do que o outro. Eu ficava abismado. Como é que aqueles pais eram tão campeões e a gente nem ouvia falar deles no bairro? E olhem que Araraquara era uma cidade pequena, todos se conheciam.
Betão, filho do bananeiro, assegurava, toda segunda-feira: "Ontem, meu pai defendeu 10 bolas impossíveis, o time dele ganhou. Com meu pai no gol, não tem time que ganhe dele". Nunca o jogo era em Araraquara. O lélio Gordo não deixava por menos: "Na luta de sábado, meu pai acertou duas muquetas no Kid Formiga, no primeiro rounde e acabou". O pai desse também só lutava box em outras cidades. Nerevaldo Milho (todos tinham um apelido) garantia que o pai era capaz de ir de bicicleta até São Paulo e voltar no dia seguinte. O pai dele alugava e consertava bicicletas, era uma inveja, um dia apareceu em uma Monark de breque no pedal, foi um deslumbramento.O pai do Sálvio Prego podia comer quarenta sanduíches de queijo quente com banana, apesar de magro, magro.
Carlos Amargo não ficava atrás: "Meu pai vendeu trezentos números de peru na quermesse, ele é batuta como vendedor, espertíssimo, ninguém vende mais do que ele, é capaz de vender sorvete para pinguim, diz minha mãe". Eu ficava assombrado. "Pinguim toma sorvete?" Todos riam:
- Bobo, é maneira de dizer. Igual a vender ovo para galinha, pernil para o porco, leite para  a vaca. Falando nisso, o seu pai é capaz de quê?
Meu pai, meu pai? Nunca tinha esmurrado ninguém. Em um jogo, tinha pisado na bola tantas vezes que foi expulso do time. Era mais fácil ele andar na corda bamba que de bicicleta. Na quermesse, comprava rifas, não ganhava nada, minha mãe reclamava: "Você é um azarado".Mesmo assim, era um homem diferente, legal.
Em casa, perguntei:
- Pai, o senhor é capaz do quê?
- Do quê? Não entendo.
Expliquei, mostrei como cada pai dos meus amigos era batuta, fazia coisas incríveis.
- O que digo sobre você?
- Que sou capaz de trabalhar o dia inteiro, sábado e domingo, sem fins de semana e sem tirar férias!
- Isso não é vantagem pra contar. Tem que ser uma coisa grande!
- Sei... sei viver...
Bem que minha mãe dizia que meu pai tinha respostas estranhas.
- Viver todos sabem.
- Todos vivem! Não sabem. Vivem do jeito que pensam que os outros acham que é bonito viver, mas não do jeito que eles gostariam de viver. Deu para entender?
- Quer dizer que o Betão gostaria que o pai dele fosse goleiro bom, que o Nerevaldo gostaria que o pai fosse para São Paulo de bicicleta?
- Mais ou menos. A gente não precisa fazer coisas espetaculares. Não precisa ser campeão, filho.
- Mas os outros não vão gostar dessa resposta, pai. Eu queria poder dizer uma coisa que deixasse os outros com inveja.
- Para que deixar os outros com inveja? O que importa é: você está contente com o pai que tem? Com o que seu pai sabe fazer? Por exemplo, eles sabem viajar sem sair do lugar?
- Essa não!
- A quantos lugares não vamos? Não voamos de avião, andamos de trem, saímos em tapetes voadores, visitamos castelos, estivemos na lua, criamos um foguete interplanetário, um telefone para macacos, fizemos surf nas costas dos crocodilos, jogamos basquete contra o time dos americanos, conversamos com chineses, salvamos uma mulher dos bandidos, descansamos nas nuvens, abrimos a porta do inferno para as pessoas escaparem?
- Pai, tudo eram histórias que você contava!
- Diga a eles que ninguém inventa como eu.
- Não posso! Tem que ser uma coisa que deixe a turma de queixo caído.
Ele me olhou e pareceu um pouco triste.Coisa difícil ver meu pai triste. Poucas vezes vi. Mesmo quando ele estava doente e ia trabalhar de manhã, nunca faltou no trabalho. Demorou um pouco, abriu o sorriso e o mundo mudou. E ao ver aquilo, entendi. Corri para a beira do rio. A turma estava lá. Gritei:
- Meu pai faz uma coisa incrível que nenhum dos seus faz!
- E o que é essa maravilha?
- O meu pai ri. Vive sorrindo. É engraçado! Divertido. Inventa como ninguém. Ganhei ou não?
Eles me olharam com cara de derrotados.

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