quinta-feira, 11 de março de 2010

Fernando Sabino - A última crônica



A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.



Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.


Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.


São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.


Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

terça-feira, 9 de março de 2010

RETRATO DE MULHER TRISTE - CECÍLIA MEIRELES

Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Vinicius de Morais - homenagem às mulheres



Uma mulher tem que ter
qualquer coisa além de beleza,
qualquer coisa de triste,
qualquer coisa que chora
qualquer coisa que sente saudade.

Um molejo de amor machucado,
uma beleza que vem da tristeza,
de se saber mulher,
feita apenas para amar,
para sofrer pelo seu amor
e para ser só perdão.

domingo, 7 de março de 2010

DIA INTERNACIONAL DA MULHER


História do 8 de março – dia internacional da mulher

No Dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como, redução na carga diária de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno dentro do ambiente de trabalho.


A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano.


Porém, somente no ano de 1910, durante uma conferência na Dinamarca, ficou decidido que o 8 de março passaria a ser o "Dia Internacional da Mulher", em homenagem as mulheres que morreram na fábrica em 1857. Mas somente no ano de 1975, através de um decreto, a data foi oficializada pela ONU (Organização das Nações Unidas).

Objetivo da Data

Ao ser criada esta data, não se pretendia apenas comemorar. Na maioria dos países, realizam-se conferências, debates e reuniões cujo objetivo é discutir o papel da mulher na sociedade atual. O esforço é para tentar diminuir e, quem sabe um dia terminar, com o preconceito e a desvalorização da mulher. Mesmo com todos os avanços, elas ainda sofrem, em muitos locais, com salários baixos, violência masculina, jornada excessiva de trabalho e desvantagens na carreira profissional. Muito foi conquistado, mas muito ainda há para ser modificado nesta história.


Conquistas das Mulheres Brasileiras

Podemos dizer que o dia 24 de fevereiro de 1932 foi um marco na história da mulher brasileira. Nesta data foi instituído o voto feminino. As mulheres conquistavam, depois de muitos anos de reivindicações e discussões, o direito de votar e serem eleitas para cargos no executivo e legislativo.

Marcos das Conquistas das Mulheres na História
• 1788 - o político e filósofo francês Condorcet reivindica direitos de participação política, emprego e educação para as mulheres.
• 1840 - Lucrécia Mott luta pela igualdade de direitos para mulheres e negros dos Estados Unidos.
• 1859 - surge na Rússia, na cidade de São Petersburgo, um movimento de luta pelos direitos das mulheres.
• 1862 - durante as eleições municipais, as mulheres podem votar pela primeira vez na Suécia.
• 1865 - na Alemanha, Louise Otto, cria a Associação Geral das Mulheres Alemãs.
• 1866 - No Reino Unido, o economista John S. Mill escreve exigindo o direito de voto para as mulheres inglesas
• 1869 - é criada nos Estados Unidos a Associação Nacional para o Sufrágio das Mulheres
• 1870 - Na França, as mulheres passam a ter acesso aos cursos de Medicina.
• 1874 - criada no Japão a primeira escola normal para moças
• 1878 - criada na Rússia uma Universidade Feminina
• 1901 - o deputado francês René Viviani defende o direito de voto das mulheres

Texto de Rita Lee

Eis que chega minha primeira menstruação e com ela leva embora minha infância querida, salve, salve. "Rita, minha filha, agora você já é uma mocinha, precisa mudar seu comportamento. Não pode mais, por exemplo, se sentar com as pernas abertas, nem ficar andando de carrinho rolimã com os moleques da rua. Há certas regras nesta vida que devemos respeitar. Você tem de entender que o nosso mundo feminino é muito diferente do masculino, Deus assim quer".


Não demorei para entender que a partir de então seria deselegante me sentar de pernas abertas, assim como totalmente fora de cabimento continuar andando de carrinho rolimã. Mesmo porque lá em casa todos já achavam meio esquisito eu nunca ter brincado com bonecas e preferir "coisas de meninos". Confesso que sempre odiei bonecas mesmo, aquilo de ficar tirando e pondo vestidinhos, arrumando e desarrumando cabelinhos era no mínimo bocejante. Pelo menos com a molecada eu aprendia ótimos palavrões.

Tudo bem, não custa fazer um esforço, afinal, agora eu sou uma mocinha.

Mas por que cargas d'água o mundo feminino seria assim tão diferente do masculino?

Então lá fui eu buscar respostas através do método da eliminação. Bastava eu saber que algo não era "próprio para uma mulher" para me dar uma coceirinha e ir literalmente tirar a prova dos nove, ou seja, nove entre dez Luluzinhas sequer tentavam saber o motivo de não poder invadir o Clube do Bolinha.

Meu colégio não permitia que meninas jogassem futebol, e a explicação era a de que se podia levar uma bolada no seio (era educado dizer seio). Eu perguntava pro Bolinha: e como sabe que dói se você não tem teta? E onde será que dói mais, na teta ou no saco? Você usa proteção especial para o saco, então eu posso usar uma para as tetas.

Se bem me lembro ainda demorou uns 30 anos até começar a existir futebol feminino pra valer. Quanta perda de tempo.

Alguém aqui pode me dizer por que não posso ir ao meu baile de formatura usando um vestido preto? "Porque vestido preto é para usar em enterro, Rita". Então propus um negócio: ao invés de gastar dinheiro com baile eu pedi uma bateria de presente. Minha mãe deu graças pela troca. Depois se arrependeu com o barulho e me convenceu a trocar a bateria por um violão. Mãe, eu quero aprender a lutar karatê, ontem vi um filme genial do Bruce Lee e tenho certeza de que levo jeito pra coisa. "Mas karatê não é coisa de menina, Rita". Cheguei até a faixa amarela apenas, e minha mãe agradeceu meu dedão do pé ter quebrado. Pulando vários capítulos sobre o mesmo tema, chegou finalmente meu confronto com esse tal de rock and roll. Havia um Bolinha roqueiro que proclamava o lema incontestável "orra meu, pra fazer rock tem que ter culhão!".

Que bálsamo foi aquilo para os meus ouvidos. Ah, quer dizer que não se pode fazer rock com útero e ovários? Então me aguarde. Elementar, minha cara mãe: a senhora certamente nunca deve ter sentado de pernas abertas e muito menos andado num carrinho rolimã, não é mesmo? Então continue lindinha aí na sua casinha, brincando de bonequinha, que sua ovelhinha negra vai atrás de uma boa encrenquinha. Ah, antes que me esqueça, mamãe, eu descobri que lugar de mulher é onde ela quiser!

sexta-feira, 5 de março de 2010

BICHÁRIO poemas - Otoniel S. Pereira


GALO



Se o galo não cantasse

não amanheceria.

Pois é o galo que inventa,

com seu canto, o dia.


Se o galo não batesse

as asas de madrugada,

não espantaria a noite

que cobre as cores da manhã.


Amanhecer é uma orquestra

de galos jograis.

O sol nasce por música

no fundo dos quintais.


É preciso muitos galos

para que o dia aconteça.

Somente os galos conhecem

a partitura secreta.


Por trás da crista vermelha

surge a primeira centelha.

Nos ponteiros das esporas

começam a andar as horas.

A REVOLTA DO GURI



Ficamos sabendo, pela imprensa futebolística da capital gaúcha, que o jogador Walter (20 anos), do Internacional, se rebelou contra o técnico do clube, Fossati. O atacante reclamou das críticas do técnico e faltou aos treinos, desde quinta-feira (25/02) até a outra semana (04/03/2010).


Diz a reportagem de Zero Hora: “Walter se rebela com Fossati”. “Atacante reclama de críticas do técnico e falta aos dois treinos realizados ontem (...). Após brilhar na vitória sobre o Emelec, Walter, 20 anos, foi traído pela própria cabeça. Ontem, faltou aos dois treinos. No fim da tarde, a direção foi informada de que o atacante passou o dia fechado em seu apartamento (...). Walter não permitiu que a assistente social do clube e o seu empresário entrassem. O atacante limitou-se a conversar com eles por telefone. Alegou que estava ‘pensando na vida’”. De acordo com a reportagem, “o técnico o cobra em demasia nos treinos”. “Esperava receber elogios, mas ouviu o chefe dizer que precisava se dedicar mais. – Walter pensa como criança (...) Frustrou-se ao saber o que disse o técnico na entrevista e ‘surtou’”.


O contexto a que nos referimos acima é o do futebol profissional, competitivo, onde muito dinheiro está em jogo. As oportunidades para um jovem no futebol profissional são escassas, dada a competitividade. São milhares de jovens em busca de um lugar ao sol, sendo que poucos terão a oportunidade de fazer um contrato com salário elevado.


Se formos conhecer um pouco a biografia de grandes jogadores, como Pelé e Garrincha, encontramos os motivos para explicar por que Pelé tem se dado tão bem na vida (privada e pública), enquanto o Garrincha não... Todo mundo sabe o que aconteceu com Garrincha...

Muitos fatores contribuem para que a biografia de cada um de nós se modele de um jeito ou de outro, desde a primeira infância. Tenhamos escolhido essa ou aquela profissão.


Tenho a impressão de que, em algum momento da trajetória de muitos sujeitos, alguma peça da engrenagem (que desejamos que funcione perfeitamente) não cumpriu seu papel. Assim, dadas as falhas na educação, ficamos reféns do medo da “crônica de uma tragédia anunciada”. Claro, não se pode isolar e culpar, cada um em separado, família, escola e outras instituições, por esse déficit educacional, que deixa tais lacunas na engrenagem psíquica dos sujeitos.


Para ser mais claro: muitos sujeitos não chegam à maturidade desejada. Já na fase adulta, deixam-se levar por atitudes infantis que os prejudicarão em muito, no presente e no futuro.


Cada instituição tem sua parcela de responsabilidade diante do quadro que se desenha. Parece-me, e é o que constato como professor de Ensino Médio, que há um contingente cada vez maior de adultos meio infantilizados (me perdoem os psicólogos, eles teriam muito mais coisas a falar a esse respeito). Diante da competição desenfreada que vivemos hoje em dia, esse contingente de marmanjos corre o risco de se dar (cada vez mais) mal, no mercado de trabalho.

Confesso que fiquei morrendo de inveja do Walter. Quem de nós, alunos, professores, trabalhadores em geral pode contar com motivador, psicólogo, empresário, assistente social, nutricionista? Já pensou ter todo esse aparato do nosso lado, quando estivermos em dificuldades?


Se deixarmos de ir ao trabalho por uma semana porque, em vez de elogios, fomos criticados pelo patrão (e/ou outros), o que vai acontecer conosco? Quem vai passar a mão em nossa cabeça?

domingo, 28 de fevereiro de 2010

DEUS SEGUNDO LAERTE


Deus tem que rosto para você?

Que personalidade, que fraquezas?

Será que ele fica de mau humor, sente tédio, sonha?

Nas tirinhas do Laerte, Deus é representado como um senhor velho de barbas brancas. Simpático, com características humanas. Alguém que negocia com os novos emigrantes que chegam da Terra. É compreensivo, mesmo que às vezes tenha vontade de “mandar alguns para o diabo!”.

Frei Beto, que prefacia o livro, diz que Laerte “faz um santo humor. Livra-nos daquela imagem de um Deus carrancudo, mal humorado, provedor do inferno, para nos aproximar da imagem evangélica que Jesus nos passa: Deus é amor, mais íntimo a nós do que nós a nós mesmos, como dizia Santo Agostinho. Portanto, se brincamos com tudo que nos é íntimo, por que excluir Deus de nosso bom humor e carinho?”

Parece-me legal dialogar com um Deus tolerante, que às vezes se lamenta, outras vezes ri de nossas bizarrices. Quem de vocês não pediu a Deus para mostrar quais números vão cair na loteria?





Vamos tentar entender o caso da lotérica de Novo Hamburgo. Deus atendeu o pedido daqueles apostadores, deu na mosca os números que eles tinham escolhido apostar, mas a funcionária esqueceu de registrar o jogo. Intriga do Diabo, ou apenas um esquecimento de uma pobre mortal?


Ou Deus estava entediado, e resolveu se divertir um pouco...


Talvez Deus tenha chorado de pena daqueles que jogaram no bolão e, mesmo assim, não receberam o dinheiro! Ou não. Ou, quem sabe, Deus tenha mandado o seguinte recado para nós:


- Mas que diabo! Parem um pouco de pensar em dinheiro!







sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

SAIBA - Sérgio Capparelli



Meu amor por ti,

tem 30 gigabytes

- no mínimo -

nele cabe a Bíblia

o Kama Sutra,

e cabem também

tuas tranças

em pontos de fuga.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

SAGRADO CORAÇÃO



É sagrado o coração
o coração é sagrado
se já criança jovem velho
se já bicho se já homem
analfabeto letrado
branco preto e amarelo.

Basta querer
que a gente pode
levar a vida
com cuidado
e cuidar do nosso
coração sagrado.

Por isso vou repetir
e nas trevas jogar luz:
é Sagrado o Coração
de Jesus!

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

O ORKUT DO NICHOLAS



Deparei-me com a difícil tarefa de traçar o perfil do Nicholas, para fazer seu orkut. Não pensem que estou seguro quanto à necessidade de expor meu gato de estimação na rede virtual. É que, me parece, estamos todos carentes de interatividade. E como nem sempre a relação com visinhos e amigos, pelos meios tradicionais, tem nos deixado satisfeitos, não vejo como fugirmos de novas aventuras, fazendo uso das ferramentas virtuais. Até já vi ser parodiada, em algum lugar, a frase que Fernando Pessoa eternizou: “Navegar na web é preciso, viver não é preciso”.

Não me perguntem por que o Nicholas merece interagir virtualmente. Eu decidi, movido pelas mais profundas convicções, que ele deve ampliar suas formas de convívio, para além dos quintais e telhados dos fundos das casas onde ele se move. Obviamente, fui sensibilizado pela maneira insistente com que ele roça cabeça, tronco e rabo em minhas pernas. E se isso não é um pedido por mais interação, então eu já não sei mais nada.


Tomada a decisão, vamos traçar o seu perfil. Eis um dilema: como diminuir a distância entre o que pensamos que ele é, e a imagem que ele faz de si próprio? Numa rápida pesquisa na internet, constatei que as pessoas colocam em seu perfil traços de sua personalidade considerados os ideais –os melhores. Por exemplo, ninguém admite que é carente de afeto. Vai dizer, simplesmente, “que está à procura de novos amigos”.


Pelo que tenho observado, muitas vezes o Nicholas aparece pra dar uma espiadinha e, passados cinco minutos, ele desaparece. Deduzo que veio saber se está tudo bem aqui por esses lados. Ele se preocupa com o bem-estar dos outros, é um ser altruísta.


Ao dizer essas coisas, percebo que estou me referindo à alma – de bichos e de gente. No caso da alma dos gatos, ela pode ser descrita comparando-a com a alma dos cães. Todo mundo sabe: cachorro é leal, companheiro. Quanto ao gato, dizem que ele “é doméstico só o suficiente aos seus interesses”. A Martha Medeiros (Z. H. de 10/02/2010) disse o seguinte: “Se você quer uma criatura que te siga, idolatre, agrade, atenda imediatamente ao ser chamada, que te convide a passear todos os dias, então não adote um gato”.


Isso é bom ou ruim? Não vem ao caso. O gato é mais “na dele”, é independente.


Por outro lado, se ele vem até minha casa, roça minhas pernas com cabeça e rabo, é porque traz nele traços humanos, ou busca por humanização. Foi por isso que ganhou um nome, data de aniversário, horóscopo, adereços do time a que torço, etc. E é assim que ele embarca, aos poucos, no mesmo barco que o meu, que é interagir numa sociedade de consumo.

Não pensem que não me perguntei a respeito da minha dedicação a um gato, quando tantas crianças estão com fome e desassistidas no R. S. e no Brasil. Claro que poderia me engajar em algum trabalho voluntário. Aliás, todos nós, que a cada dia cultivamos o jardim de nosso orkut, não poderíamos dedicar um pouco de nosso tempo e usar essa ferramenta para ajudar os outros?

Pensando bem, decidi dar um tempo para meu gato, vou deixa-lo passear pelos bosques e subir nos telhados da vizinhança, enquanto uso a internet para pesquisar sobre esses felinos. Vou me dedicar à poesia, ou melhor, ver que poemas foram escritos tendo os gatos como personagens. Essa é ou não é mais uma utilidade da internet? Vejam só este poema do Ferreira Gular, que encontrei num blog:


A fala do gato

O gato siamês tem uns vinte miados:
alguns são suaves, outros exaltados;
há os miados graves e há os engasgados.
É quase um idioma que ainda não entendo
mas o gato bem sabe o que está dizendo.
E até falou comigo em linguagem de gente.
Disse: "meu amigo", assim de repente.
Então eu acordei feliz e contente!
Era sonho, claro.
Mas, como se sabe,
é no sonho que ocorre o que se deseja
e no mundo não cabe.

Viagem ao fim da noite

O cachorro passa mancando... não me percebe. Compreendo: a vida é busca, é movimento. Quem prova isso é o motoboy e sua descarga barul...