quarta-feira, 10 de maio de 2017

Sfot poc - L. F. Verissimo


Chamava-se Odacir e desde pequeno, desde que começara a falar, demonstrara uma estranha peculiaridade. Odacir falava como se escreve. Sua primeira palavra não foi apenas “Gugu”. Foi:
— Gu, hífen, gu.
Os pais se entreolharam, atônitos. O menino era um fenômeno. O pediatra não pôde explicar o que era aquilo. Apenas levantou uma dúvida.
           — Não tenho certeza que “gugu” se escreve com hífen. Acho que é uma palavra só, como todas as expressões desse tipo. “Dadá” etc.
           — Da, hífen, dá – disse o bebê, como que para liquidar com todas as dúvidas.
Um dia, a mãe veio correndo. Ouvira, do berço, o Odacir chamando:
— Mama sfot poc.
E, quando ela chegou perto:
— Mama sfotoim poc.
Só depois de muito tempo os pais se deram conta. “Sfot Poc” era ponto de exclamação e “sfotoim poc”, ponto de interrogação.
Na escola, tentaram corrigir o menino.
— Odacir!
— Presente sfot poc.
— Vá para a sala da diretora!
— Mas o que foi que eu fiz sfotoim poc.
Com o tempo e as leituras, Odacir foi enriquecendo seu repertório de sons. Quando citava um trecho literário, começava e terminava a citaçao com “spt, spt”. Eram as aspas. Aliás, não dizia nada sem antes prefaciar um “zit”. Era o travessão. Foi para a sua primeira namorada que ele disse certa vez, maravilhado com a própria descoberta:
— Zit Marilda plic (vírgula) você já se deu conta que a gente sempre fala diálogo sfotoim poc.
— O quê?
— Zit nós sfot poc. Tudo que a gente diz é diálogo sfot poc.
— Olhe, Odacir. Você tem que parar de falar desse jeito. Eu gosto de você, mas o pessoal fala que você é meio biruta.
— Zit spt spt biruta spt spt sfotoim poc.
— Viu só? Você não pára de fazer esses ruídos. E ainda por cima, quando diz “sfotoim”, cospe no meu olho.
O namoro acabou. Odacir aceitou o fato filosoficamente, aproveitando para citar o poeta.
— Zit spt spt. Que seja eterno enquanto dure poc poc poc spt spt. Poc poc poc eram as reticências. 
Odacir era fascinado por palavras. Tornou-se o orador da turma e até hoje o seu discurso de formatura (em Letras) é lembrado na faculdade. Como os colegas conheciam os hábitos de Odacir, mas os pais e os convidados não, cada novo som do Odacir era interpretado, aos cochichos, na platéia:
— Zit meus senhores e minhas senhoras poc poc.
— Poc, poc?
— Dois-pontos.
— Que rapaz estranho…
— A senhora ainda não viu nada…
Quando lia um texto mais extenso, Odacir acompanhava a leitura com o corpo. As pessoas viam, literalmente, o Odacir mudar de parágrafo.
— Mas ele parece que está diminuindo de tamanho!
— Não, não. É que a cada novo parágrafo ele se abaixa um pouco.
Quando chegava ao fim de uma folha, Odacir estava quase no chão. Levantava-se para começar a ler a folha seguinte.
— Colegas sfot poc Mestres sfot poc Pais sfot poc. No limiar de uma era de grandes transformações sociais plic o que nós plic formandos em Letras plic podemos oferecer ao mundo sfotoim poc.
A grande realização de Odacir foi o trema. Para interpretar o trema, Odacir não queria usar poc, poc, que podia ser confundido com dois pontos. Poc plic era ponto e vírgula. Um spt só era apóstrofe. Como seria trema? Odacir inventou um estalo de língua, algo como tlc, tlc. Difícil de fazer e até perigoso. Ainda bem que tinha poucas oportunidades de usar o trema.
Odacir, apesar de formado em Letras, acabou indo trabalhar no escritório de contabilidade do pai. Levava uma vida normal. Lia muito e sua conversa era entrecortada de spt, spts, citações dos seus autores favoritos. Mesmo assim casou-se – na cerimônia, quando Odacir disse “Aceito sfot poc”, o padre foi visto discretamente enxugando um olho – e teve um filho. E qual não foi o seu horror ao ouvir o primeiro som produzido pelo recém-nascido:
— Zzzwwwwuauwwwuauzzz!
— Zit o que é isso sfotoim e sfot poc?
— Parece – disse a mulher, atônita – o som de uma guitarra elétrica.
O filho de Odacir, desde o berço, fazia a própria trilha sonora. Para a tristeza do pai, produzia até efeitos especiais, como câmara de eco. Cresceu sem dizer uma palavra. Até hoje anda por dentro de casa reverberando como um sintetizador eletrônico. É normal e feliz, mas o único som mais ou menos inteligível – pelo menos para seus pais – que faz é “tump tump”, imitando o contrabaixo elétrico.
— Zit meu filho poc poc poc. Meu próprio filho poc poc poc. – diz Odacir.
Poc, poc, poc.

terça-feira, 9 de maio de 2017

Conhecer-se a si mesmo


"Quem conhece os outros é sábio; quem conhece a si mesmo é iluminado" (provérbio chinês).

"Eu sofro de minfobia
tenho medo de mim mesmo
mas me enfrento todo dia" (Millôr Fernandes).

Caçador de mim - 14 Bis


Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim

Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim

Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura

Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
O que me faz sentir
Eu, caçador de mim

(Sérgio Magrão e Luís Carlos Sá)

Sherwood Anderson - Quem foi este cara?


Em alguma página de "O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio", Bukowski fala desse escritor. Confesso que nada li. Vou em busca de traduções dele nesta semana. Eis um trecho que encontrei no google:

"No princípio quando o mundo era novo havia um grande número de pensamentos, mas não aquilo que se chama uma verdade. O homem fez ele próprio as verdades e cada verdade era um composto de um grande número de pensamentos vagos. As verdades estavam por todo o mundo e todas elas eram bonitas.
O velho tinha enumerado centenas de verdades no seu livro. Não vou tentar contá-las todas. Havia a verdade da virgindade e a verdade da paixão, a verdade da riqueza e da pobreza, da frugalidade e da prodigalidade, da atenção e do abandono. Eram centenas e centenas, as verdades, e todas elas eram bonitas.
E então vieram as pessoas. Cada uma delas assim que aparecia agarrava uma das verdades e algumas que eram mais fortes apoderavam-se de uma dúzia delas.
Foram as verdades que tornaram as pessoas grotescas. O velho tinha uma teoria bastante elaborada a tal propósito. Era ideia dele que no momento em que uma pessoa tomava uma das verdades para si própria, chamando-lhe a sua verdade, e se esforçava por conduzir a sua vida de acordo com essa verdade, a pessoa tornava-se grotesca e a verdade que abraçava tornava-se numa mentira."


- Sherwood Anderson, em "Winesburg, Ohio". [tradução José Lima; posfácio de John Updike]. Lisboa: Ahab Edições, 2011, p. 23-24.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

O amor bate na aorta - Carlos Drummond de Andrade


Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

E tinha a cabeça cheia deles - Marina Colasanti


Todos os dias, ao primeiro sol da manhã, mãe e filha sentavam-se na soleira da porta. E deitada a cabeça da filha no colo da mãe, começava esta a catar-lhe piolhos.
Os dedos ágeis conheciam sua tarefa. Como se vissem, patrulhavam a cabeleira separando mechas, esquadrinhando entre os fios, expondo o claro azulado do couro. E na alternância ritmada de suas pontas macias, procuravam os minúsculos inimigos, levemente arranhando com as unhas, em carícia de cafuné.
Com o rosto metido no escuro pano da saia da mãe, vertidos os cabelos sobre a testa, a filha deixava-se ficar enlanguescida, enquanto a massagem tamborilada daqueles dedos parecia penetrar-lhe a cabeça, e o calor crescente da manhã lhe entrefechava os olhos.
Foi talvez devido à modorra que a invadia, entrega prazerosa de quem se submete a outros dedos, que nada percebeu naquela manhã – a não ser, talvez, uma leve pontada – quando a mãe, devassando gulosa o secreto reduto da nuca, segurou seu achado entre polegar e indicador e, puxando-o ao longo do fio negro e lustroso em gesto de vitória, extraiu-lhe o primeiro pensamento.


https://www.youtube.com/watch?v=yT2WhqZs9iw

domingo, 7 de maio de 2017

Uma luz na neblina


A casa toda é uma bagunça, como o quarto do adolescente. A vida parece descarrilada. Parte é o caos do seu país, e outra parte aceita na sua conta. 
Tudo se repete. Não sabe pra onde vai.
Nessas horas, alguns fios de conversa com amigas ou até conhecidos, uma sugestão, uma lembrança boa, ela vê despontar uma luz. Pelo menos durante uns dois dias. 
Como a chuva rápida que refresca o clima, a angústia empalidece. Corre, reorganiza os livros da estante, empolga-se de novo com trechos soltos que um dia sublinhara com sincera emoção. 
Canta, não apenas no chuveiro, músicas que emergem do fundo de sua alma.
E de novo ela junta as peças, dá-lhes um sentido. Sim, a confusão não se foi de todo, a angústia é um tigre a espreitar. Mas agora ela ri, pouco importa se está sem pai. Filosofa: a falta de sentido também faz parte do jogo. Se há salvação, por que tanta gente depende de um pai, seja um governo, um líder religioso ou educacional? Ou inventaram a "salvação" por causa de sua dependência?
Agora ela ri dos seus limites. E dos outros. Os que precisam de um pai, que seja bússola no horizonte.
A multidão suplica, xinga, grita. De sua janela, não disfarça o semblante cético. Parece que se dissipou a névoa. Em suas mãos eu vejo um cartaz: fuck you

sexta-feira, 5 de maio de 2017

O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio - Charles Bukowski


“Outro dia, fiquei pensando no mundo sem mim. Há o mundo continuando a fazer o que faz. E eu não estou lá. Muito estranho. Penso no caminhão do lixo passando e levando o lixo e eu não estou lá. Ou o jornal jogado no jardim e eu não estou lá para pegá-lo. Impossível.
E, pior, algum tempo depois de estar morto, vou ser verdadeiramente descoberto.
E todos aqueles que tinham medo de mim ou que me odiavam enquanto eu estava vivo vão subitamente me aceitar. Minhas palavras vão estar em todos os lugares. Vão se formar clubes e sociedades. Será nojento. Será feito um filme sobre a minha vida. Me farão muito mais corajoso e talentoso do que sou. Muito mais.
Será suficiente para fazer os deuses vomitarem.
A raça humana exagera tudo: seus heróis, seus inimigos, sua importância.”
***
Todas aquelas pessoas. O que estão fazendo? O que estão pensando? Todos nós vamos morrer, que circo! 
Só isso deveria fazer com que amássemos uns aos outros, mas não faz. Somos aterrorizados e esmagados pelas trivialidades, somos devorados por nada.”

***
Somos feitos de papel. Existimos graças à sorte, no meio de percentagens, temporariamente. E isso é a parte melhor e a parte pior, a questão temporal. E não há nada a fazer. (…) Podemos mudar a nossa aceitação, mas talvez isso também seja errado. Se calhar pensamos demais. É preciso sentir mais, pensar menos.
***
“Não há nada mais para se lamentar a respeito da morte do que se lamenta o crescimento de uma flor. O que é terrível não é a morte, mas as vidas que as pessoas vivem ou não vivem até suas mortes. Elas não honram suas próprias vidas, elas mijam em suas próprias vidas. Elas a jogam fora. Idiotas de merda. Se concentram demais em sexo, filmes, dinheiro, família e sexo. Suas mentes estão cheias de algodão. Engolem Deus sem pensar, engolem o país sem pensar. Logo esquecem como se pensa, deixam os outros pensarem por elas. Seus cérebros estão entulhados de algodão. São feias, falam feio, andam feio. Toque as grandes músicas do século para eles e eles não vão ouvir. A maioria das mortes das pessoas é um engano. Não sobrou nada para morrer”.

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Uma história quase mínima


Quando a vejo brincar com um bebê, dar papinha e emitir aqueles sons de professora de maternal, espanta-se o meu amor.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

Augusto Monterroso - O grilo professor


Será que esta fábula ainda é atual para pensarmos nossas escolas? 
Este autor afirmou: "Os animais se parecem tanto com o homem que às vezes é impossível distingui-los".


quarta-feira, 3 de maio de 2017

Vamos acabar com esta folga - Stanislaw Ponte Preta


O negócio aconteceu num café. Tinha uma porção de sujeitos, sentados nesse café, tomando umas e outras. Havia brasileiros, portugueses, franceses, argelinos, alemães, o diabo.

De repente, um alemão forte pra cachorro levantou e gritou que não via homem pra ele ali dentro. Houve a surpresa inicial, motivada pela provocação e logo um turco, tão forte como o alemão, levantou-se de lá e perguntou:

— Isso é comigo?

— Pode ser com você também — respondeu o alemão.

Aí então o turco avançou para o alemão e levou uma traulitada tão segura que caiu no chão. Vai daí o alemão repetiu que não havia homem ali dentro pra ele. Queimou-se então um português que era maior ainda do que o turco. Queimou-se e não conversou. Partiu para cima do alemão e não teve outra sorte. Levou um murro debaixo dos queixos e caiu sem sentidos.

O alemão limpou as mãos, deu mais um gole no chope e fez ver aos presentes que o que dizia era certo. Não havia homem para ele ali naquele café. Levantou-se então um inglês troncudo pra cachorro e também entrou bem. E depois do inglês foi a vez de um francês, depois de um norueguês etc. etc. Até que, lá do canto do café levantou-se um brasileiro magrinho, cheio de picardia para perguntar, como os outros:

— Isso é comigo?

O alemão voltou a dizer que podia ser. Então o brasileiro deu um sorriso cheio de bossa e veio vindo gingando assim pro lado do alemão. Parou perto, balançou o corpo e... pimba! O alemão deu-lhe uma porrada na cabeça com tanta força que quase desmonta o brasileiro.

Como, minha senhora? Qual é o fim da história? Pois a história termina aí, madame. Termina aí que é pros brasileiros perderem essa mania de pisar macio e pensar que são mais malandros do que os outros.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

o homem no piano - Charles Bukowski


O homem ao piano toca uma música que ele não compôs, canta palavras que não são suas, em um piano que não é seu.
Enquanto as pessoas à mesa comem, bebem e conversam, o homem ao piano termina sem aplausos.
Então começa a tocar uma nova canção que ele não escreveu...
Começa a cantar palavras que não são suas, em uma piano que não é seu...
E como as pessoas às mesas continuam a comer, beber e conversar, quando ele termina sem ser aplaudido, ele anuncia pelo microfone que vai fazer uma pausa de dez minutos.
Ele vai até o banheiro masculino, entra em um reservado, tranca a porta, senta, puxa um baseado e acende, satisfeito de não estar ao piano. E as pessoas às mesas - comendo, bebendo e conversando - satisfeitas por ele também não estar lá.

Assim acontece em quase toda a parte, com todos e com tudo, enquanto ferozmente, no interior, o gueto negro incendeia.

Charles Bukowski "The man at the piano"

Pílulas diárias de fofoca

  – Em Canela, ninguém cumprimenta ninguém! Em Capão, todo mundo diz “bom dia!”, “tudo bem?”. Aqui tu anda de bermuda e chinelos e ningu...