domingo, 16 de maio de 2010
MEU IDEAL SERIA ESCREVER... Rubem Braga
Busquei no Google a crônica do velho Braga História triste de Tuim, que vou ler para os alunos de quinta a oitava séries do Ensino Fundamental do IMEAB/Ijuí-RS na próxima semana, e tive a grata surpresa de encontrar esta crônica.
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse - e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse - "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago - mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".
E quando todos me perguntassem - "mas de onde é que você tirou essa história?" - eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.
A crônica acima foi extraída do livro "A traição das elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1967, pág. 91.
sexta-feira, 14 de maio de 2010
FÁBULA - Adão Ventura
Engolir sapo seco
ou vestir a camisa
dos camaleões.
Engolir sapo seco
por qualquer traste
ou migalha.
Engolir sapo seco
ao sabor do esterco
e da farsa.
Engolir sapo seco
ou mijar
pelas pernas abaixo.
Engolir sapo seco
ao invés
de sangrar os porcos.
Do livro Costura de nuvens.
ou vestir a camisa
dos camaleões.
Engolir sapo seco
por qualquer traste
ou migalha.
Engolir sapo seco
ao sabor do esterco
e da farsa.
Engolir sapo seco
ou mijar
pelas pernas abaixo.
Engolir sapo seco
ao invés
de sangrar os porcos.
Do livro Costura de nuvens.
quarta-feira, 12 de maio de 2010
AS ESTAÇÕES ENVELHECEM
O velhinho passou vagarosamente. Esforçava-se para amenizar os vacilos que o distraiam de ir em frente.
Na hora emergiu a máxima de Heráclito, do Ser e do Vir a Ser. A constante mudança, nossa e das águas do rio. Não somos os mesmos de ontem, e as águas que agora passam não serão as mesmas que amanhã vão passar.
É inevitável. A máquina complexa do organismo envelhece, e não esconde seu declínio.
Nessas alturas falam-nos de viver com sabedoria. E acho que para isso necessitamos ter consciência de que essa máquina não pode tudo. Os órgãos envelhecem, mesmo que células que morrem dêem lugar a células que nascem, e tudo se renova, como as estações do ano.
Dizem que viver sabiamente é nos resignarmos com a perda da potência que desfrutávamos quando éramos mais jovens. De uma hora para outra diminui a energia e o ritmo.
Saltava aos olhos o esforço daquela criatura ao tentar vencer a força gravitacional. Mas a lei é objetiva, formal e universal. Não se atreva, meu velho, quando "tudo é da lei".
É grave termos esquecido da passagem inexorável do tempo, e as mudanças que ele traz.
Partes de um todo, se envelhecemos, as estações envelhecem. Vamos nos despedir no crepúsculo, antes que a Coruja de Minerva assuma o céu. Estamos a toda hora nos despedindo. mas a cada despedida torcemos para que ela nos guarde o infinito.
O certo, o que nos é permitido fazer, é pedir-lhe para que reserve um lugar para que possamos depositar nossa memória.
Na hora emergiu a máxima de Heráclito, do Ser e do Vir a Ser. A constante mudança, nossa e das águas do rio. Não somos os mesmos de ontem, e as águas que agora passam não serão as mesmas que amanhã vão passar.
É inevitável. A máquina complexa do organismo envelhece, e não esconde seu declínio.
Nessas alturas falam-nos de viver com sabedoria. E acho que para isso necessitamos ter consciência de que essa máquina não pode tudo. Os órgãos envelhecem, mesmo que células que morrem dêem lugar a células que nascem, e tudo se renova, como as estações do ano.
Dizem que viver sabiamente é nos resignarmos com a perda da potência que desfrutávamos quando éramos mais jovens. De uma hora para outra diminui a energia e o ritmo.
Saltava aos olhos o esforço daquela criatura ao tentar vencer a força gravitacional. Mas a lei é objetiva, formal e universal. Não se atreva, meu velho, quando "tudo é da lei".
É grave termos esquecido da passagem inexorável do tempo, e as mudanças que ele traz.
Partes de um todo, se envelhecemos, as estações envelhecem. Vamos nos despedir no crepúsculo, antes que a Coruja de Minerva assuma o céu. Estamos a toda hora nos despedindo. mas a cada despedida torcemos para que ela nos guarde o infinito.
O certo, o que nos é permitido fazer, é pedir-lhe para que reserve um lugar para que possamos depositar nossa memória.
sexta-feira, 7 de maio de 2010
O GATO E A BARATA - Millôr Fernandes
A baratinha velha subiu pelo pé do copo que, ainda com um pouco de vinho, tinha sido largado a um canto da cozinha, desceu pela parte de dentro e começou a lambiscar o vinho. Dada a pequena distância que nas baratas vai da boca ao cérebro, o álcool lhe subiu logo a este. Bêbada, a baratinha caiu dentro do copo. Debateu-se, bebeu mais vinho, ficou mais tonta, debateu-se mais, bebeu mais, tonteou mais e já quase morria quando deparou com o carão do gato doméstico que sorria de sua aflição, do alto do copo.
- Gatinho, meu gatinho - pediu ela - me salva, me salva. Me salva que assim que eu sair daqui eu deixo você me engolir inteirinha, como você gosta. Me salva.
- Você deixa mesmo eu engolir você? - Disse o gato.
- Me saaalva! - implorou a baratinha - Eu prometo.
O gato então virou o copo com uma pata, o líquido escorreu e com ele a baratinha que, assim que se viu no chão, saiu correndo para o buraco mais perto, onde caiu na gargalhada.
- Que é isso - perguntou o gato - Você não vai sair daí e cumprir sua promessa? Você disse que deixaria eu comer você inteira.
- Ah, ah, ah, - riu então a barata, sem poder se conter - E você é tão imbecil a ponto de acreditar na promessa de uma barata velha e bêbada?
quarta-feira, 5 de maio de 2010
AS CONVERSAS DE MANÉ BOCÓ
Mané Bocó era o rapaz mais acanhado deste mundo.
Sua mãe fazia muito gosto que ele se casasse com sua prima, moça rica e bonita, no que estavam de acordo os pais dela.
Trataram de aproximar os jovens, e para isto os pais da moça deram um baile.
A mãe de Mané Bocó, ao sair de casa com o filho, disse-lhe:
- Você, rapaz, precisa perder esse acanhamento, e conversar com a sua noiva. Mas não diga tolices. Pense bem no que terá que dizer.
Mané Bocó, em chegando, e apresentado à noiva, sentou-se ao pé dela, sem dizer uma palavra, mas a pensar no que havia de dizer.
A moça encarava-o, sorrindo. E, vai então, apontando os dedos para os olhos dela, exclamou, envergonhado:
- Eu te furo os olhos!...
A moça levantou-se e foi contar à futura sogra o que se havia passado.
A velha chamou o filho de lado e o repreendeu, aconselhando:
- Não é assim, Mané, você precisa dizer para ela palavras delicadas, coisas doces...
Então o rapaz aproximou-se de novo da namorada e, depois de muito pensar, suspirou:
- Açúcar, melado, rapadura...
A moça começou a rir e foi contar à velha o que havia acontecido.
A mãe de Mané Bocó chamou-o outra vez, de lado:
- Você nunca vai deixar de ser tolo! O que você disse à sua noiva são coisas que se dizem?!
- Pois a senhora não mandou que eu falasse em coisas doces!?... Ué!
- Nada. Vá procurá-la de novo e converse com ela em coisas do céu... em estrelas, luar, por exemplo.
Mané Bocó foi ter com a moça e, depois de muito pensar, disse-lhe:
- Raio, corisco, trovão, tempestade!!...
Tinha-lhe dito coisas do céu, pensava ele, conforme sua mãe lhe havia recomendado, estava muito contente. Mas a moça soltou uma gargalhada... E ficou desfeito o projeto de casamento.
Por isso não fui à festa do casório e assim não pude trazer para vocês um isto de doces. E acabou-se a história.
Do livro Contos populares brasileiros, de Lindolfo Gomes.
Sua mãe fazia muito gosto que ele se casasse com sua prima, moça rica e bonita, no que estavam de acordo os pais dela.
Trataram de aproximar os jovens, e para isto os pais da moça deram um baile.
A mãe de Mané Bocó, ao sair de casa com o filho, disse-lhe:
- Você, rapaz, precisa perder esse acanhamento, e conversar com a sua noiva. Mas não diga tolices. Pense bem no que terá que dizer.
Mané Bocó, em chegando, e apresentado à noiva, sentou-se ao pé dela, sem dizer uma palavra, mas a pensar no que havia de dizer.
A moça encarava-o, sorrindo. E, vai então, apontando os dedos para os olhos dela, exclamou, envergonhado:
- Eu te furo os olhos!...
A moça levantou-se e foi contar à futura sogra o que se havia passado.
A velha chamou o filho de lado e o repreendeu, aconselhando:
- Não é assim, Mané, você precisa dizer para ela palavras delicadas, coisas doces...
Então o rapaz aproximou-se de novo da namorada e, depois de muito pensar, suspirou:
- Açúcar, melado, rapadura...
A moça começou a rir e foi contar à velha o que havia acontecido.
A mãe de Mané Bocó chamou-o outra vez, de lado:
- Você nunca vai deixar de ser tolo! O que você disse à sua noiva são coisas que se dizem?!
- Pois a senhora não mandou que eu falasse em coisas doces!?... Ué!
- Nada. Vá procurá-la de novo e converse com ela em coisas do céu... em estrelas, luar, por exemplo.
Mané Bocó foi ter com a moça e, depois de muito pensar, disse-lhe:
- Raio, corisco, trovão, tempestade!!...
Tinha-lhe dito coisas do céu, pensava ele, conforme sua mãe lhe havia recomendado, estava muito contente. Mas a moça soltou uma gargalhada... E ficou desfeito o projeto de casamento.
Por isso não fui à festa do casório e assim não pude trazer para vocês um isto de doces. E acabou-se a história.
Do livro Contos populares brasileiros, de Lindolfo Gomes.
sábado, 1 de maio de 2010
ENCONTROS
As unhas do vento na janela
são carruagens que trazem
lembranças do amor.
Ecos distantes
ensaiam encontros
com tardes gloriosas.
Acreditei nas palavras da cartomante.
Nos bilhetes escritos
em guardanapos
da mesa do bar.
Os deuses esqueceram
de incendiar nossa alma
e desejar nossos desejos...
Os deuses nos abandonaram
quando viemos ao mundo.
terça-feira, 27 de abril de 2010
O REFORMADOR DO MUNDO - Monteiro Lobato
Américo Pisca-pisca tinha o hábito de por defeito em todas as coisas.
O mundo para ele estava errado e a natureza só fazia asneiras.
- Asneiras, Américo?
- Pois então?!... Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustentando frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?
Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.
- Mas o melhor - concluiu - é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha? E Pisca-pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.
Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!
De repente, no melhor da festa, plaf! uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio no nariz.
Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão mal feito assim.
E segue para casa refletindo:
- Que espiga!... Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-pisca, morto pela abóbora por mim posta no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.
E Pisca-pisca continuou a piscar pela vida em fora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza.
sexta-feira, 23 de abril de 2010
AULA DE LITERATURA - Charles Kiefer
- O romance epistolar de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, criou, na Europa, uma impressionante onda de suicídios: centenas de rapazes, depois de sua leitura, seguiram os passos do herói romântico - explicou o professor de literatura, que ilustrava as suas aulas com exemplos semelhantes, para que se tornassem menos enfadonhas.
- O livro era tão ruim assim? - perguntou a aluna.
do livro de crônicas O guardião da floresta.
- O livro era tão ruim assim? - perguntou a aluna.
do livro de crônicas O guardião da floresta.
terça-feira, 20 de abril de 2010
COPA DO MUNDO
Está chegando a Copa do Mundo e não resisto aos convites do meu vício. Adquiro o álbum da Copa para me acompanhar por onde eu for. São figuras repetidas e trocadas com meus amigos, e me envolvo de tal forma no negócio que até pareço “figura”.
Mas não deixei de notar o ridículo dos jogadores quando pousam pra foto. Os franceses, ah os franceses, parecem os mais exibidos. Basta observar como ajeitaram o que lhes serve de pano de fundo do cenário.
Como aeroporto interditado, a Copa retém a minha vida, não importa se a TV mostra os jogos às três da madrugada.
Montei meu altar na sala pra saudar cada Nação que entrar em campo.
Meu coração vai sobrevoar o mapa-múndi, e vai demarcar Capital por Capital com pontos coloridos. Meus sentidos vão tocar cada invenção de meus irmãos que dividem comigo este mundo.
Para não perder a hora terei à mão despertadores e celulares.
Vai ser uma força-tarefa como os trabalhos voluntários em períodos de tragédia.
A memória vai estar afiada para que os craques e heróis jamais sejam esquecidos. Vou lembrar tintim por tintim no bar e corrigir o primeiro mentiroso, não importa se for meu amigo.
Vai começar o jogo, quero todo mundo por perto. Vou ser igual a Jesus, vou dividir e brindar emoções como na Santa Ceia.
INTERVALO
Sou o intervalo
entre um plano
e outro.
Marcador de página
abandonado
no meio
do livro.
Frase sublinhada
num livro qualquer
há muitos anos.
Sou o intervalo
entre um amor que quase veio
e outro que poderia
ter sido.
Intervalo
que não foi combinado
antes de começar o jogo.
entre um plano
e outro.
Marcador de página
abandonado
no meio
do livro.
Frase sublinhada
num livro qualquer
há muitos anos.
Sou o intervalo
entre um amor que quase veio
e outro que poderia
ter sido.
Intervalo
que não foi combinado
antes de começar o jogo.
domingo, 18 de abril de 2010
desamparados do mundo, uni-vos - Abrão Slavutzky
Alguns artigos que, repentinamente, se oferecem ao nosso olhar e coração, nos depertam de um "sono dogmático" que pode durar dias, meses ou até anos. Foi o que aconteceu comigo ao ler o texto que segue. Por isso, me faço valer do "copiar" + "colar" para reproduzi-lo neste espaço.
Se tivesse que definir os tempos atuais, diria que são tempos de desamparo. Tempos em que crescem a solidão, o vazio, a depressão e diminuem os ideais sociais. É verdade que o desamparo do Homo sapiens, gerado diante das forças de natureza e de enigmas como a morte, foi o motor da construção da civilização. No indivíduo, os desamparos constituem a realidade psíquica, e cada um aprende a enfrentá-los, pois só assim se transforma. Entretanto, tudo indica que nesta modernidade líquida atual, o desamparo cresceu. Diminuiu a solidez das instituições e aumentou a desconfiança e a insegurança. E, ainda, não se pode esquecer do desamparo assustador vivido pela população que está abaixo da linha de pobreza.
O desamparo gera angústia que pode ser traumática. Estar desamparado é se sentir assustado, perdido, é perder o norte. Várias são as situações que geram desamparo: a morte, a separação amorosa, o sentimento de fracasso, a doença, a velhice, a violência. O desamparado, quando não sabe o que fazer de sua vida, pode desenvolver a síndrome do pânico; ou seguir o caminho das drogas, dos vícios em geral, que surgem como salvação ao desamparo. Há também os que buscam a segurança nos diferentes fanatismos, bem como os sofredores crônicos, que suportam a dependência, para não enfrentar o desamparo da liberdade. Os sintomas psíquicos seriam, portanto, uma reação e uma proteção ao desamparo.
Mas o que fazer para aliviar o desamparo? Desconfie das respostas fáceis, mas primeiro é preciso buscar algum tipo de ajuda, de apoio, e esta decisão é, com certeza, meio caminho andado. A criança, por exemplo, enfrenta seu desamparo brincando, pois ao brincar ela reproduz suas experiências aflitivas para, então, dominá-las; as crianças passam, portanto, de situações passivas de sofrimento para sentimentos ativos de domínio. Em minha infância, numa fase difícil de desamparo, tive a felicidade de conhecer Charles Chaplin, que vinha todos os domingos ao bairro Bom Fim. Lembro como ficava espantado e feliz ao ver o incrível Vagabundo, pobre e pequeno, vencendo todos os desafios contra os poderosos. Saía do cinema animado e sabia que voltaria a vê-lo. A arte não cura o desamparo, porque nada cura na verdade, mas alivia, e muito. O mesmo ocorre com o bom humor, que, sendo um sorriso entre lágrimas, diminui o drama da existência trágica do ser.
Quando um castelo de areia desaba, muitos choram, mas outros juntam a areia para construir outro castelo. Fiz parte do sonho de um mundo com igualdade e sem guerras, guiado pelo famoso lema: “Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos”, que desconhecia a face sombria da humanidade, como a crueldade e a vaidade do poder. O castelo do paraíso ruiu, e outros são erguidos, lentamente, das mais variadas formas, na busca de reinventar o cotidiano junto aos demais. A propósito, há um provérbio em zulu: Umuntu ngumuntu ngabantu – Uma pessoa é uma pessoa por meio das outras pessoas.
* Psicanalista (Zero Hora, 17/04/2010)
Se tivesse que definir os tempos atuais, diria que são tempos de desamparo. Tempos em que crescem a solidão, o vazio, a depressão e diminuem os ideais sociais. É verdade que o desamparo do Homo sapiens, gerado diante das forças de natureza e de enigmas como a morte, foi o motor da construção da civilização. No indivíduo, os desamparos constituem a realidade psíquica, e cada um aprende a enfrentá-los, pois só assim se transforma. Entretanto, tudo indica que nesta modernidade líquida atual, o desamparo cresceu. Diminuiu a solidez das instituições e aumentou a desconfiança e a insegurança. E, ainda, não se pode esquecer do desamparo assustador vivido pela população que está abaixo da linha de pobreza.
O desamparo gera angústia que pode ser traumática. Estar desamparado é se sentir assustado, perdido, é perder o norte. Várias são as situações que geram desamparo: a morte, a separação amorosa, o sentimento de fracasso, a doença, a velhice, a violência. O desamparado, quando não sabe o que fazer de sua vida, pode desenvolver a síndrome do pânico; ou seguir o caminho das drogas, dos vícios em geral, que surgem como salvação ao desamparo. Há também os que buscam a segurança nos diferentes fanatismos, bem como os sofredores crônicos, que suportam a dependência, para não enfrentar o desamparo da liberdade. Os sintomas psíquicos seriam, portanto, uma reação e uma proteção ao desamparo.
Mas o que fazer para aliviar o desamparo? Desconfie das respostas fáceis, mas primeiro é preciso buscar algum tipo de ajuda, de apoio, e esta decisão é, com certeza, meio caminho andado. A criança, por exemplo, enfrenta seu desamparo brincando, pois ao brincar ela reproduz suas experiências aflitivas para, então, dominá-las; as crianças passam, portanto, de situações passivas de sofrimento para sentimentos ativos de domínio. Em minha infância, numa fase difícil de desamparo, tive a felicidade de conhecer Charles Chaplin, que vinha todos os domingos ao bairro Bom Fim. Lembro como ficava espantado e feliz ao ver o incrível Vagabundo, pobre e pequeno, vencendo todos os desafios contra os poderosos. Saía do cinema animado e sabia que voltaria a vê-lo. A arte não cura o desamparo, porque nada cura na verdade, mas alivia, e muito. O mesmo ocorre com o bom humor, que, sendo um sorriso entre lágrimas, diminui o drama da existência trágica do ser.
Quando um castelo de areia desaba, muitos choram, mas outros juntam a areia para construir outro castelo. Fiz parte do sonho de um mundo com igualdade e sem guerras, guiado pelo famoso lema: “Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos”, que desconhecia a face sombria da humanidade, como a crueldade e a vaidade do poder. O castelo do paraíso ruiu, e outros são erguidos, lentamente, das mais variadas formas, na busca de reinventar o cotidiano junto aos demais. A propósito, há um provérbio em zulu: Umuntu ngumuntu ngabantu – Uma pessoa é uma pessoa por meio das outras pessoas.
* Psicanalista (Zero Hora, 17/04/2010)
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