terça-feira, 12 de fevereiro de 2019
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019
quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019
Obrigado, doutor - Fernando Sabino
Quando lhe disse que um vago conhecido nosso tinha morrido, vítima de tumor no cérebro, levou as mãos à cabeça:
- Minha Santa Efigênia!
Espantei-me que o atingisse a morte de alguém tão distante de nossa convivência, mas logo ele fez sentir a causa de sua perturbação:
- É o que eu tenho, não há dúvida nenhuma: esta dor de cabeça que não passa! Estou para morrer.
Conheço-o desde menino, e sempre esteve para morrer. Não há doença que passe perto dele e não se detenha, para convencê-lo em iniludíveis sintomas de que está com os dias contados. Empresta dimensões de síndromes terríveis à mais ligeira manifestação de azia ou acidez estomacal:
- Até parece que andei comendo fogo. Estou com pirofagia crônica. Esta cólica é que é o diabo, se eu fosse mulher ainda estava explicado. Histeria gástrica. Úlcera péptica, no duro.
Certa ocasião, durante um mês seguido, tomou injeções diárias de penicilina, por sua conta e risco. A chamada dose cavalar.
- Não adiantou nada – queixa-se ele. – Para mim o médico que me operou esqueceu alguma coisa dentro de minha barriga.
Foi operado de apendicite quando ainda criança e até hoje se vangloria:
- Menino, você precisava de ver o meu apêndice: parecia uma salsicha alemã.
No que dependesse dele, já teria passado por todas as operações jamais registradas nos anais da cirurgia: “Só mesmo entrando na faca para ver o que há comigo”. Os médicos lhe asseguram que não há nada, ele sai maldizendo a medicina: “Não descobrem o que eu tenho, são uns charlatães, quem entende de mim sou eu”. O radiologista, seu amigo particular, já lhe proibiu a entrada no consultório: tirou-lhe radiografia até dos dedos do pé. E ele sempre se apalpando e fazendo caretas: “Meu fígado hoje está que nem uma esponja, encharcada de bílis. Minha vesícula está dura como um lápis, põe só a mão aqui”.
- É lápis mesmo, aí no seu bolso.
- Do lado de cá, sua besta. Não adianta, ninguém me leva a sério.
Vive lendo bulas de remédio: “Este é dos bons” - e seus olhos se iluminam: “justamente o que eu preciso. Dá licença de tomar um, para experimentar? Quando visita alguém e lhe oferecem alguma coisa para tomar, aceita logo um comprimido. Passa todas as noites na farmácia: “alguma novidade da Squibb?”
Acabou num psicanalista: “Doutor, para ser sincero eu nem sei por onde começar – dizem que eu estou doido? O que eu estou é podre”. Desistiu logo: “Minha alma não tem segredos para ninguém arrancar. Estou com vontade é de arrancar todos os dentes”.
E cada vez mais forte, corado, gordo e saudável. “Saudável, eu?” - reage como a um insulto: “Minha Santa Efigênia! Passei a noite que só você vendo: foi aquele bife que comi ontem, não posso comer gordura nenhuma, tem de ser tudo na água e sal”. No restaurante, é o espantalho dos garçons: “Me traga um filé aberto e batido, bem passado na chapa em três gotas de azeite português, lave bem a faca que não posso nem sentir o cheiro do alho, e duas batatinhas cozidas até começaram a desmanchar, só com uma pitadinha de sal, modesta porém sincera”.
De vez em quando um amigo procura agradá-lo: “Você está pálido, o que é que há? “Ele sorri, satisfeito: “Menino, chega aqui que eu vou lhe contar, você é o único que me compreende”. E começa a enumerar suas mazelas – doenças de toda a espécie, da mais requintada patogenia, que conhece na ponta da língua. Da última vez enumerou cento e três. E por falar em língua, vive a mostrá-la como um troféu: “Olha como está grossa, saburrosa. Estou com uma caverna no pulmão, não tem dúvida: essa tosse, essa excitação toda, uma febre capaz de arrebentar o termômetro. Meu pulmão deve estar esburacado como um queijo suíço. Tuberculoso em último grau”. E cospe de lado: “Se um mosquito pousar neste cuspe, morre envenenado”.
Ultimamente os amigos deram para conspirar, sentenciosos: o que ele precisa é casar. Arranjar uma mulherzinha dedicada, que cuidasse dele. “Casar, eu?” – e se abre numa gargalhada: “Vocês querem acabar de liquidar comigo?” Mas sua aversão ao casamento não pode ser tão forte assim, pois consta que de uns dias para cá está de namoro sério com uma jovem, recém-diplomada na Escola de Enfermagem Ana Néri.
In: O homem nu. Rio de Janeiro: Record, 1977.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019
O mundo não está aí pra virar poesia - Ricardo Silvestrin
o mundo não está aí pra virar poesia
embora a árvore parada aguarde em silêncio
pronta pra ser fotografada
o gato de preto e punhos brancos
ande sempre com seu melhor traje
e os pássaros em voo sincronizado
denunciem pela perfeição dos movimentos
que ensaiaram durante horas
o vento orquestra uma sinfonia muda
os panos de chão dançam pendurados nas janelas
as formigas
fingindo trabalhar
desfilam com suas folhas verdes
alegorias de mão
e mesmo as paredes se deixam cobrir de limo
descascam voluntariamente
em permanente exposição
Psicologia sentimental de Nelson Rodrigues
Até uma esposa deve, de vez em quando, RESISTIR. E com muito mais razão uma mulher que tem uma severa autocrítica, que se acha feia (...). A mulher feia precisa jogar, até a última hora, com uma premeditada "dificuldade". Precisa se fazer, por bastante tempo, "inconquistável". E esta será uma maneira simples e eficiente de fazer o homem lhe conferir um alto valor. Conheço um caso típico. O cara que se apaixonou é um homem rico, sadio, bonito e dono de automóvel. Deve estar habituadíssimo a conquistas fáceis. Uma maneira de impressioná-lo é se fazendo de difícil, dificílima, contrariando-o a torto e a direito e insinuado discretas ironias, sugerindo que sem automóvel ele jamais conquistaria uma mulher.
(Do livro "Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo").
sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019
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