sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Apelo - Dalton Trevisan


Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.


Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.


Sentia falta da pequena briga pelo sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.

2 comentários:

  1. Texto triste, texto que nos remete a uma saudade incontrolável,um medo de solidão quase doloroso ... "toda a casa um corredor deserto, até o canário ficou mudo... a briga pelo sal _ meu jeito de querer bem. Seria saudade?"


    Lindo de mais...

    Parabéns!
    Julia

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  2. Texto maravilhoso como todos do Dalton Tresivan, mostra principalmente o quão esse homem é machista, pois ele ñ sente falta dela e sim das coisas que ela fazia como pegar os jornais, regar as flores essa escrita simples, sarcástica, irônica, com problemas sociais, faz jus ao escritor brilhante que Dalton Tresivan é.

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