sexta-feira, 7 de maio de 2010

O GATO E A BARATA - Millôr Fernandes


A baratinha velha subiu pelo pé do copo que, ainda com um pouco de vinho, tinha sido largado a um canto da cozinha, desceu pela parte de dentro e começou a lambiscar o vinho. Dada a pequena distância que nas baratas vai da boca ao cérebro, o álcool lhe subiu logo a este. Bêbada, a baratinha caiu dentro do copo. Debateu-se, bebeu mais vinho, ficou mais tonta, debateu-se mais, bebeu mais, tonteou mais e já quase morria quando deparou com o carão do gato doméstico que sorria de sua aflição, do alto do copo.

- Gatinho, meu gatinho - pediu ela - me salva, me salva. Me salva que assim que eu sair daqui eu deixo você me engolir inteirinha, como você gosta. Me salva.

- Você deixa mesmo eu engolir você? - Disse o gato.

- Me saaalva! - implorou a baratinha - Eu prometo.

O gato então virou o copo com uma pata, o líquido escorreu e com ele a baratinha que, assim que se viu no chão, saiu correndo para o buraco mais perto, onde caiu na gargalhada.

- Que é isso - perguntou o gato - Você não vai sair daí e cumprir sua promessa? Você disse que deixaria eu comer você inteira.

- Ah, ah, ah, - riu então a barata, sem poder se conter - E você é tão  imbecil a ponto de acreditar na promessa de uma barata velha e bêbada?  

quarta-feira, 5 de maio de 2010

AS CONVERSAS DE MANÉ BOCÓ

Mané Bocó era o rapaz mais acanhado deste mundo.

Sua mãe fazia muito gosto que ele se casasse com sua prima, moça rica e bonita, no que estavam de acordo os pais dela.

Trataram de aproximar os jovens, e para isto os pais da moça deram um baile.

A mãe de Mané Bocó, ao sair de casa com o filho, disse-lhe:

- Você, rapaz, precisa perder esse acanhamento, e conversar com a sua noiva. Mas não diga tolices. Pense bem no que terá que dizer.

Mané Bocó, em chegando, e apresentado à noiva, sentou-se ao pé dela, sem dizer uma palavra, mas a pensar no que havia de dizer.

A moça encarava-o, sorrindo. E, vai então, apontando os dedos para os olhos dela, exclamou, envergonhado:

- Eu te furo os olhos!...

A moça levantou-se e foi contar à futura sogra o que se havia passado.

A velha chamou o filho de lado e o repreendeu, aconselhando:

- Não é assim, Mané, você precisa dizer para ela palavras delicadas, coisas doces...

Então o rapaz aproximou-se de novo da namorada e, depois de muito pensar, suspirou:

- Açúcar, melado, rapadura...

A moça começou a rir e foi contar à velha o que havia acontecido.

A mãe de Mané Bocó chamou-o outra vez, de lado:

- Você nunca vai deixar de ser tolo! O que você disse à sua noiva são coisas que se dizem?!

- Pois a senhora não mandou que eu falasse em coisas doces!?... Ué!

- Nada. Vá procurá-la de novo e converse com ela em coisas do céu... em estrelas, luar, por exemplo.

Mané Bocó foi ter com a moça e, depois de muito pensar, disse-lhe:

- Raio, corisco, trovão, tempestade!!...

Tinha-lhe dito coisas do céu, pensava ele, conforme sua mãe lhe havia recomendado, estava muito contente. Mas a moça soltou uma gargalhada... E ficou desfeito o projeto de casamento.

Por isso não fui à festa do casório e assim não pude trazer para vocês um isto de doces. E acabou-se a história.

Do livro Contos populares brasileiros, de Lindolfo Gomes.

sábado, 1 de maio de 2010

ENCONTROS


As unhas do vento na janela
são carruagens que trazem
lembranças do amor.


Ecos distantes
ensaiam encontros
com tardes gloriosas.


Acreditei nas palavras da cartomante.
Nos bilhetes escritos
em guardanapos
da mesa do bar.


Os deuses esqueceram
de incendiar nossa alma
e desejar nossos desejos...


Os deuses nos abandonaram
quando viemos ao mundo.

terça-feira, 27 de abril de 2010

O REFORMADOR DO MUNDO - Monteiro Lobato




Américo Pisca-pisca tinha o hábito de por defeito em todas as coisas.

O mundo para ele estava errado e a natureza só fazia asneiras.

- Asneiras, Américo?

- Pois então?!... Aqui mesmo, neste pomar, você tem a prova disso. Ali está uma jabuticabeira enorme sustentando frutas pequeninas, e lá adiante vejo uma colossal abóbora presa ao caule duma planta rasteira. Não era lógico que fosse justamente o contrário? Se as coisas tivessem de ser reorganizadas por mim, eu trocaria as bolas, passando as jabuticabas para a aboboreira e as abóboras para a jabuticabeira. Não tenho razão?

Assim discorrendo, Américo provou que tudo estava errado e só ele era capaz de dispor com inteligência o mundo.

- Mas o melhor - concluiu - é não pensar nisto e tirar uma soneca à sombra destas árvores, não acha? E Pisca-pisca, pisca-piscando que não acabava mais, estirou-se de papo para cima à sombra da jabuticabeira.

Dormiu. Dormiu e sonhou. Sonhou com o mundo novo, reformado inteirinho pelas suas mãos. Uma beleza!

De repente, no melhor da festa, plaf! uma jabuticaba cai do galho e lhe acerta em cheio no nariz.

Américo desperta de um pulo; pisca, pisca; medita sobre o caso e reconhece, afinal, que o mundo não era tão mal feito assim.

E segue para casa refletindo:

- Que espiga!... Pois não é que se o mundo fosse arrumado por mim a primeira vítima teria sido eu? Eu, Américo Pisca-pisca, morto pela abóbora por mim posta no lugar da jabuticaba? Hum! Deixemo-nos de reformas. Fique tudo como está, que está tudo muito bem.

E Pisca-pisca continuou a piscar pela vida em fora, mas já sem a cisma de corrigir a natureza. 

sexta-feira, 23 de abril de 2010

AULA DE LITERATURA - Charles Kiefer

- O romance epistolar de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, criou, na Europa, uma impressionante onda de suicídios: centenas de rapazes, depois de sua leitura, seguiram os passos do herói romântico - explicou o professor de literatura, que ilustrava as suas aulas com exemplos semelhantes, para que se tornassem menos enfadonhas.
- O livro era tão ruim assim? - perguntou a aluna.

do livro de crônicas O guardião da floresta.

terça-feira, 20 de abril de 2010

COPA DO MUNDO



Está chegando a Copa do Mundo e não resisto aos convites do meu vício. Adquiro o álbum da Copa para me acompanhar por onde eu for. São figuras repetidas e trocadas com meus amigos, e me envolvo de tal forma no negócio que até pareço “figura”.

Mas não deixei de notar o ridículo dos jogadores quando pousam pra foto. Os franceses, ah os franceses, parecem os mais exibidos. Basta observar como ajeitaram o que lhes serve de pano de fundo do cenário.

Como aeroporto interditado, a Copa retém a minha vida, não importa se a TV mostra os jogos às três da madrugada.

Montei meu altar na sala pra saudar cada Nação que entrar em campo.

Meu coração vai sobrevoar o mapa-múndi, e vai demarcar Capital por Capital com pontos coloridos. Meus sentidos vão tocar cada invenção de meus irmãos que dividem comigo este mundo.

Para não perder a hora terei à mão despertadores e celulares.

Vai ser uma força-tarefa como os trabalhos voluntários em períodos de tragédia.

A memória vai estar afiada para que os craques e heróis jamais sejam esquecidos. Vou lembrar tintim por tintim no bar e corrigir o primeiro mentiroso, não importa se for meu amigo.

Vai começar o jogo, quero todo mundo por perto. Vou ser igual a Jesus, vou dividir e brindar emoções como na Santa Ceia.

INTERVALO

Sou o intervalo



entre um plano


e outro.


Marcador de página


abandonado


no meio


do livro.



Frase sublinhada


num livro qualquer


há muitos anos.



Sou o intervalo


entre um amor que quase veio


e outro que poderia


ter sido.


Intervalo


que não foi combinado


antes de começar o jogo.

domingo, 18 de abril de 2010

desamparados do mundo, uni-vos - Abrão Slavutzky

Alguns artigos que, repentinamente, se oferecem ao nosso olhar e coração, nos depertam de um "sono dogmático" que pode durar dias, meses ou até anos. Foi o que aconteceu comigo ao ler o texto que segue. Por isso, me faço valer do "copiar" + "colar" para reproduzi-lo neste espaço.


Se tivesse que definir os tempos atuais, diria que são tempos de desamparo. Tempos em que crescem a solidão, o vazio, a depressão e diminuem os ideais sociais. É verdade que o desamparo do Homo sapiens, gerado diante das forças de natureza e de enigmas como a morte, foi o motor da construção da civilização. No indivíduo, os desamparos constituem a realidade psíquica, e cada um aprende a enfrentá-los, pois só assim se transforma. Entretanto, tudo indica que nesta modernidade líquida atual, o desamparo cresceu. Diminuiu a solidez das instituições e aumentou a desconfiança e a insegurança. E, ainda, não se pode esquecer do desamparo assustador vivido pela população que está abaixo da linha de pobreza.

O desamparo gera angústia que pode ser traumática. Estar desamparado é se sentir assustado, perdido, é perder o norte. Várias são as situações que geram desamparo: a morte, a separação amorosa, o sentimento de fracasso, a doença, a velhice, a violência. O desamparado, quando não sabe o que fazer de sua vida, pode desenvolver a síndrome do pânico; ou seguir o caminho das drogas, dos vícios em geral, que surgem como salvação ao desamparo. Há também os que buscam a segurança nos diferentes fanatismos, bem como os sofredores crônicos, que suportam a dependência, para não enfrentar o desamparo da liberdade. Os sintomas psíquicos seriam, portanto, uma reação e uma proteção ao desamparo.

Mas o que fazer para aliviar o desamparo? Desconfie das respostas fáceis, mas primeiro é preciso buscar algum tipo de ajuda, de apoio, e esta decisão é, com certeza, meio caminho andado. A criança, por exemplo, enfrenta seu desamparo brincando, pois ao brincar ela reproduz suas experiências aflitivas para, então, dominá-las; as crianças passam, portanto, de situações passivas de sofrimento para sentimentos ativos de domínio. Em minha infância, numa fase difícil de desamparo, tive a felicidade de conhecer Charles Chaplin, que vinha todos os domingos ao bairro Bom Fim. Lembro como ficava espantado e feliz ao ver o incrível Vagabundo, pobre e pequeno, vencendo todos os desafios contra os poderosos. Saía do cinema animado e sabia que voltaria a vê-lo. A arte não cura o desamparo, porque nada cura na verdade, mas alivia, e muito. O mesmo ocorre com o bom humor, que, sendo um sorriso entre lágrimas, diminui o drama da existência trágica do ser.
 Quando um castelo de areia desaba, muitos choram, mas outros juntam a areia para construir outro castelo. Fiz parte do sonho de um mundo com igualdade e sem guerras, guiado pelo famoso lema: “Trabalhadores do mundo inteiro, uni-vos”, que desconhecia a face sombria da humanidade, como a crueldade e a vaidade do poder. O castelo do paraíso ruiu, e outros são erguidos, lentamente, das mais variadas formas, na busca de reinventar o cotidiano junto aos demais. A propósito, há um provérbio em zulu: Umuntu ngumuntu ngabantu – Uma pessoa é uma pessoa por meio das outras pessoas.

* Psicanalista (Zero Hora, 17/04/2010)

terça-feira, 13 de abril de 2010

PEQUENA MISS SUNSHINE

Este filme é surpreendente. Se analisarmos cada personagem em separado, vamos perceber a excentricidade de cada um. Os personagens pertencem a uma família que, visto pelo seu conjunto, é comicamente maluca.

O pai, Richard, esforça-se para vender seu programa motivacional (ironia para com o discurso da auto-ajuda?) para atingir o sucesso. Mas ele fracassa.

Sheryl, a mãe, procura "entrosar" a família. Nesse sentido, acolhe seu irmão junto à casa, um gay deprimido.

Olive, com sete anos de idade, deseja ser rainha de um concurso de beleza para crianças.

Dwayne é um adolescente que gosta de ler Nietzsche, e que fez voto de silêncio até atingir 18 anos e conseguir ingressar na aeronáutica, para ser piloto.

Finalmente, temos o avô, outro maluco que foi expulso de um asilo para idosos, que decide, já na velhice, usar drogas.

A ação do filme se desencadeia quando Olive, a menina, é convidada a participar de um concurso de beleza "Litttle Miss Sunshine" na Califórnia, e toda família embarca numa velha kombi para torcer por ela.

No embalo do mote da auto-ajuda: "O verdadeiro fracassado não é alguém que não vence. O verdadeiro fracassado é aquele que tem tanto medo de não vencer que não chega a tentar", o filme não é previsível nem linear. Mostra os limites do discurso que tanto enfeitiça as pessoas: "Você pode, você consegue!".

É que a auto-ajuda não pode esquecer o contexto onde cada um de nós está inserido, sua cultura, hábitos, medos, desejos, etc., etc.

O sucesso não depende só de nós. Talvez o problema maior sejam os outros, que também desejam vencer.

Nesse sentido, a vida, de um modo geral, não passa de um concurso de beleza, ou de uma grande competição. O problema é que cada um tem que se adaptar às regras desse concurso. E nem sempre elas são justas.

Eis um dos problemas que tornam frágeis as relações. Por isso, é necessária a compreensão e cooperação de cada um de nós, para facilitar e possibilitar o "existir" coletivo.

De qualquer maneira o filme, vencedor do Oscar em 2007, é daqueles que faz rir e pensar. Ou melhor: seu riso é filosófico porque é irônico.

domingo, 11 de abril de 2010

REENCONTRO

Seu olhar
foi suficiente
para o pára-quedas
abrir

e abrandar
a queda livre

bastou seu olhar
para que o pouso
- e o reencontro -
fosse perfeito.

terça-feira, 6 de abril de 2010

O suicídio do amor


A cerca limitava-se a tudo



e o sol espreitava


com a cabeça nas nuvens.






Era final de expediente


e o caminho da tarde


embriagou-se


de chuva.






Apressado


o amor avançava


a cada dois


lances de escada


mas quando chegava no topo


ruía ao chão






ninguém duvidava:


era o suicídio do amor.

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...