sábado, 13 de dezembro de 2025

Um velho cão também precisa de cuidados


 

O convite pra missa de sétimo dia era de um boêmio qualquer,
catado num jornal de quinta, de uma década
que ninguém mais sabe localizar.
Os pestinhas dos meus amigos acharam aquilo uma pérola.
Um deles assobiou, com aquele riso de quem tá prestes a te foder:
- Manda essa pro Palermo.
Caiu na mesa como sentença.
Vieram gargalhadas, tapas nas costas.
- Ele deve estar por esse caminho, kkkkk.
A mesa inteira virou um curral de hienas.
Aí um terceiro, um pilantrinha graduado, se aproximou
com aquele meio-sorriso que nunca anuncia coisa boa:
- Olha o juízo que fazem de ti, Cadelão.
Respirei. Procurei uma saída digna, ou pelo menos apresentável.
- Gurizada, nasce aqui um novo homem.
Falei como quem tenta convencer os deuses e a si mesmo.
Tenho uma namorada que me arrasta pra academia todo santo dia;
minha pança já desinflou uns sete quilos.
Ela tem braços e coxas que parecem treinados pra derrubar
qualquer desgraçado que respire errado ao lado dela.
Agora só bebo nos finais de semana…
O amor transforma, meus queridos. Inspira. Aleluia.
Foi então que os desgraçados mandaram o golpe final,
aquele chute no focinho já machucado:
- Um velho cão também precisa de cuidados, kkkkk.
E, juro, nesse momento ouvi uma voz rouca,
um cheiro de cigarro barato e uísque ordinário.
Bukowski, o velho safado, sussurrou no meu ouvido:
- Palermo, reage. Contra-ataca.
Não deixa que mijem na tua cabeça.
Vai. Pega pesado.
Tu ainda é o representante oficial dos fodidos -
os que tropeçam, caem, mas seguem escrevendo
como se a vida dependesse disso.
(B. B. Palermo)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

A saudade está sempre por perto

 


Você esbanjou coragem e audácia,

correu atrás de atividades esportivas

e alimentação saudável, está envelhecendo

e percebe que é hora de se cuidar.

Isso vale, dizem, para o amor, os negócios,

planos e desejos.

O poeta Zé levantou voo e transcendeu.

Não sabemos até que ponto desejava partir.

Deixou entre nós um punhado de cinzas:

delicadas, dóceis, embaladas e disponíveis para amigos e familiares,

e punhados de poemas com palavras cheias de reticências

e frases pela metade, que continuam gritando:

- Recolham e publiquem minhas alegrias e lamentos

rabiscados em guardanapos nesses bares da vida.

Eles não podem virar cinzas!

 

O lugar pra onde se mudou deve ser menos sofrido

e, daqui, aguardo suas novidades.

Meio esquisito, cruzo pelo Sabiá, o João-de-barro

e o cachorrinho, na rua, e eles me perguntam:

 

- Por que você anda tão triste?

 

Nenhuma filosofia ou manual do luto - com ou sem prazo de validade -  

vai acalmar as repetidas ondas cósmicas que arrebentam

nas areias do A. Texas, indagando:

 

- Por quê? Por quê?

 

A saudade me acompanha.

Passo diante da casa do poeta e constato: ela também virou pó.

Retiraram janelas, portas, telhado, paredes...  e uma enorme retroescavadeira

e caminhões limparam tudo, deixando apenas um terreno

à espera de um novo lar.

 

Tudo passa, tudo se renova e se transforma, até o esquecimento?

Deixarão de pensar em nós, logo depois que partirmos?

Meu consolo é acreditar que agora o Zé vai ditar seus poemas

para algum pequeno príncipe embriagado, de um planeta qualquer.

“Se a única coisa que levamos é aquilo que vivemos,

vou me esforçar para viver aquilo que quero levar”

(Gabriel Garcia Márques).

 

(Pensamentos & poemas espirituosos)


segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Quem espera sempre alcança


Sem ninguém para compartilhar um papo decente, meu outro eu (cada vez mais sacana e implicante, o Cara!) chamou o velho Bukowski pra tomar umas no bar.
Buk não suporta falar de literatura.
Sempre manteve distância de escritores e críticos literários.
Disse-me, numa voz rouca e pausada:
- Palermo, eu sempre quis ser outsider na literatura. Vá por mim, não te preocupe com um possível fracasso. Trabalhe doido, solto e macio... Não ligue para as multidões, elas são dependentes umas das outras. Tua única dependência é ter mais papel, mais cerveja, mais sorte, uma trepada de vez em quando e tempo bom.
Algumas semanas depois, não foi a imaginação nem a poesia, mas sim a vida real que, espertinha ou solidária, botou a Serena no meu caminho.
Rápido, reuni talento não sei de onde e, embora meio fora de forma, consegui penetrar - feito água lenta e persistente – pelas frestinhas do seu mundo, pra lá de misterioso.
Em duas semanas a paixão nos atropelou.
Fora de forma, meu tesão doido desobedeceu o processo da conquista.
A ansiedade para surpreendê-la nos momentos íntimos expulsou minhas prodigiosas ereções.
Mas o que é de um homem sem o pau duro?
Eis uma questão filosófica para desmembrar. Só que eu não queria filosofar, eu queria era sexo!
Pelos olhos e boca da Serena, a filosofia veio mansa e tomou conta do sofá aberto, almofadas espalhadas. E veio com o filósofo grego Sócrates, dizendo num certo diálogo platônico que o conhecimento não é uma criação humana, mas ele já existe, basta sermos conduzidos por um bom mestre, que assopre nossas lembranças e nos faça rememorar ou relembrar aquilo que já sabíamos e que herdamos não sei de onde.
No embalo, Serena tirou da cartola todos os livros do Kardec, e fez uma baita palestra sobre as novidades do espiritismo.
Agarro a palavra de volta, Serena me escuta (ufa!), e digo que Platão e Sócrates viajaram pra caramba nas ideias, a ponto de inspirar algumas religiões, tipo o cristianismo – colocando nosso corpo e tesão em segundo plano, como se fossem a porta de entrada para o pecado.
Não paro de falar, enquanto mordo de leve os seus lábios, contornando sua boca como quem faz uma rotatória no centro da cidade, a língua patrolando tudo o que vem pela frente e os dedos da mão direita percorrem com força os contornos de sua calcinha preta sob o short...
Mãos de polvo sobem e descem pelas suas costas, ajeitam e agarram sua cabeleira nuns beijos selvagens, minha língua driblando a dela e indo mais e mais fundo, e é o bastante para o meu pau se libertar de sua hibernação.
Eis então que o sacana do Platão me sacode e esbofeteia, dizendo que as paixões são apena sombras, passam bem longe da verdade – esta mora no reino intelectual.
Outra vez minhas ereções e nossos sonhados orgasmos ficaram pra depois. Quem espera sempre alcança. Amém.
(B. B. Palermo)

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Dois pra lá, dois pra cá


 

Eu podia estar num avião rumo a Fernando de Noronha, contemplando o mar azul-cartão-postal.
Mas estou aqui, duelando com a senhoria do meu cafofo, contas atrasadas e aquela sensação de fracasso latindo no calcanhar.
Piso no freio, tento acionar o velho e gasto Foda-se, que falha quase sempre.
Entro e saio do prédio como ladrão de galinha: queimei o aluguel numas aventuras pouco narráveis.
A velha vê tudo - a caninana de olhos treinados - e a filha, ah, a filha… baixinha, com pernas talhadas pra tentação.
Uma pena não tomar mais sol. O bronzeado dela devia ser tombado pelo patrimônio afetivo da vizinhança.
Ensaiava transformar tudo aquilo num bolero barato: eu, ela, a mãe… dois passos pra lá, dois pra cá, a vida nos levando sem autorização.
Elogio as plantas “milagrosas” que cuidam na janela, embora a senhoria afogue as coitadas todo fim de tarde. Aí já penso em decapitações na praia do A. Texas, tráfico, mar gelado - e corro pro bar antes que a imaginação me mate.
Tentei ser um bom homem: nada de brigas, só minhocas disciplinadas cavoucando a fantasia das pernas da filha.
Hoje, pelo menos, o clima tá leve: a senhoria prometeu me ensinar a catar mariscos e fazer pastéis que, segundo ela, são “tudo de bom”. Vou ver se acredito.
Rapaziada, um conselho:
não batam de frente com essas entidades poderosas.
Negociem. Dancem.
Se não souberem o bolero, avancem dois passos e recuem um.
E lembrem-se:
não precisa tocar fogo na casa pra se livrar do cupim.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 11 de novembro de 2025

Ainda tem salvação


 

Uma luz colorida baixou.
pensei: é hoje!
Um sinal, talvez, de que pertenço
a um mundo melhor,
onde ninguém morre antes da hora,
as crianças brincam e riem
e os velhos dançam devagar
com a saúde pingando dos olhos.
Vim caminhando pela avenida,
vislumbrando esse mundo, vasto mundo,
e tive uma alegria danada.
Entrei na primeira academia,
pedi uma matrícula,
falei pra mim mesmo:
preciso malhar,
a salvação começa no bíceps.
Resistência muscular, sono regular,
água, só água -
chega de álcool, chega de caos.
Vai nascer um novo homem,
um homem limpo,
iluminado por dentro.
Mas aí a realidade levantou o vestido,
mostrou as coxas
e me deu um tapa de lucidez.
Uma velha deusa andarilha
riu tanto que se mijou,
gargalhando da minha cara limpa
e do meu projeto de pureza.
No semáforo, uma moleca vendendo bugiganga
me contou, sem contar:
o mundo ainda sangra.
Tem tragédia, tem guerra,
e as crianças morrem por motivos
bem filhos da p*.
Mais tarde, meu amigo chegou de carro,
parou na praça,
tirou a gaitinha do bolso
e começou a tocar “Knockin’ on Heaven’s Door”,
do Bob Dylan.
Eu respirei fundo,
encostei na mureta,
olhei o céu meio sujo de fumaça
e juro -
por um segundo, juro -
achei que esse mundo louco e complicado
ainda tem salvação.
(Pensamentos & poemas espirituosos)

domingo, 2 de novembro de 2025

Nosso amor é feito mel


 

- Como tu tá, meu gatinho?
- Tirando a birra, a preguiça
e o leve alcoolismo de quem sonha demais,
ando ótimo, baby.
Traga tua lanterna -
o dia amor-teceu,
bandos de sabiás celebram
as primaveras que esquecemos,
e gatas no cio,
loucas de luar,
nos olham como deuses desajeitados.
Essas noites de fim de mês
cheiram a cansaço,
e os bares perderam a graça.
Acende tua luz.
O meu farol desperta
e você o beija como quem bebe
a própria eternidade.
Nosso amor é feito mel,
direto da colmeia das constelações -
escorre, lambe, cura,
adoça o que restou de humano.
Descobri o poder de existir,
o prazer e a dor
misturados num mesmo copo,
um presente dos deuses
para que o cérebro não exploda
e o coração não apodreça.
Baby,
um dia ainda pintaremos nossa casa
com as cores que resistem ao tempo,
sabendo - quando o dia virar noite -
que o riso e o delírio
serão nossa rotina,
e que a rotina
jamais
vai nos derrubar.
(B. B. Palermo)

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Um dia normal


 

Seria um dia normal.
Mas a neblina veio do mar às três da tarde.
E quando acordei da sesta, pouco antes das três, não havia café, nem leite, nem açúcar. As paredes descascavam devagar, como lagartas devorando borboletas.
Na tevê, o som chiado de um noticiário distante.
Um vizinho - aquele viciado em crack, TikTok e Coca-Cola - gritava do pátio:
- A professora desaparecida foi encontrada… dentro de um freezer!
O cheiro de morte libertou-se das minhas narinas e tomou conta do quarto.
Abri a janela, acendi um galhinho de alecrim.
A fumaça se misturou à neblina - modesta oferenda contra o invisível.
No celular, mais tragédias.
Uma garota cortou os pulsos e, enquanto o SAMU tentava reanimá-la,
o vídeo dela corria no Instagram -
rostos comentando com emojis e corações.
Na rua, uns malucos me olharam de um jeito torto.
O meu eu paranoico “viu” que apontavam o dedo.
- Você é o culpado!
De repente, o mundo se ergueu contra mim:
fuzis, foices, martelos, chaves de fenda descomunais,
robôs de linha de montagem da Volkswagen marchando em sincronia.
Fechei a janela, fiz as malas
decidido a mudar pra uma praia do Nordeste
no próximo inverno do A. Texas.
Silêncio.
Guardei o jornal.
O cheiro de alecrim persistia.
Na barbearia, o espelho me olhou de volta.
Por um instante, juro que vi outro homem -
mais calmo, mais velho, mais cansado -
tentando parecer normal.
(B. B. Palermo)

terça-feira, 28 de outubro de 2025

A dona me ajuda a atravessar o rio

 


Hoje me preparou um incrível café da manhã
servido na cama.

Cheia de disfarces, talvez vista roupa de enfermeira, cuidadora,
professora de meditação - ou, quem sabe,
seja analgésico, antialérgico, antibiótico ou anti-inflamatório
me bombardeando até afugentar vírus e bactérias que me atacam
nesses becos enredados por boates e bares ferventes.

É necessária e oferece sobrevida a quem for esperto
ao cruzar o seu caminho -
mas com ela nunca se é esperto.
Não no seu tamanho.

Ainda não pirei, apenas saí de mim algumas vezes.
Mas a maturidade penosa
e certas mulheres bem-intencionadas
pedem que eu abandone os maus hábitos.

Fujo das garotinhas dos traficantes,
e a cada manhã juro pra mim mesmo
que vou encarar novas rotinas -,
mas um ciclone desaba em minha alma
quando tele-entregas voam pelas ruas,
e estômagos ansiosos aguardam o xis-bacon e a pizza,
e farmácias de pernas abertas invadem madrugadas,
e ambulâncias chegam rápido,
e tudo o que preciso é manter o controle,
mas tudo o que faço é perdê-lo.

O medo ronda e espreita.

Eis que é chegada a hora:
Dona - aquela que vai apanhar minha mão
e me conduzir até o misterioso barquinho
para atravessar o último rio -
se aproxima cada vez mais,
e já escuto os seus sinais.

Chama-me com labaredas poéticas:

- Deve ser terrível, Palermo,
percorrer as romarias desse teu mundinho,
e teus olhos enxergarem apenas retângulos,
esferas e quadrados, num horizonte povoado por edifícios,
rodas de carros e motos...
Garoto, teu planetinha anda sofrível -
parece um aquário cheio de anúncios!
Vem... Vem comigo!

Dona veste minissaia e, num salto alto,
é a criatura mais linda da cidade.
Metamorfoseia-se do jeito que quiser:
loira, morena, jovem, meia-idade,
bruxa, feiticeira, musa, vilã...

Apresenta-se como se fosse da casa -
e é da casa, como os loucos amores

de outros tempos.

Se é morte ou se é vida,
não sei.
Só sei que me chama pelo nome.

Eis o derradeiro desafio:
decifrá-la, antes que me devore.

Ela ri do meu drama
e pede um último gole.

- Relaxa, Palermo,
ninguém controla nada mesmo.

E eu - meio tonto, meio lúcido -
penso que, se for pra atravessar o rio,
que seja dançando.

(B. B. Palermo)


sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Viagem ao fim da noite

 

O cachorro passa mancando...
não me percebe.
Compreendo a lição:
a vida é busca, é movimento.
Quem prova isso é o motoboy
e sua descarga barulhenta,
nas dezenas de vezes que passou hoje pela rua,
como uma retroescavadeira levantando voo.
O tonto não sabe - ou não quer saber -
da tal “poluição sonora”,
nem de que é responsável
pelas consequências de seus atos.
Alguém aí se importa?
Vou à praia ao entardecer.
A natureza me chama.
Eis que me deparo com um trator
puxando va-ga-ro-sa-men-te uma rede.
E sei lá...
fiquei triste, como a personagem da Clarice Lispector
em A Paixão segundo GH,
que devorou uma barata.
Uma tristeza que ninguém sabe explicar.
Assim que a rede saiu do mar,
fui encarado por um peixe-espada,
e seus olhos me fuzilaram:
- Eu não desejava morrer!
Vieram lembranças de andanças e fiascos
nas noites boêmias,
num tempo em que meus olhos estavam
em melhor estado de conservação
do que o pobre peixe agonizando na areia.
Mais cedo ou mais tarde (e que isso sirva de consolo)
seremos todos arrastados - alegres ou tristes -
pela mesma rede que chamam
de viagem ao fim da noite.
(Pensamentos & poemas espirituosos)

segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Toda Lorena

 


Olhava pro fogo mágico do entardecer,
que mais parecia uma lareira mandando bem
em viagens noutras esferas.
Me encanto ao ver minha musa pela manhã
toda serena,
e na pegada do dia toda Lorena,
ariana sem papas na língua,
fogueiras acesas por todos os poros,
prática e desenrolada - e dúzias de atributos
que me fazem sonhar.
Caminha bem à frente, e eu faço de tudo pra alcançá-la.
Dia após dia ela ri
da minha fúria poética,
e nossos tempos ficam dançando.
Diz que minha chama precisa superar o álcool.
Bom garoto - não nego.
Talvez adore isso. Ou não.
Sou um poeta torto, e sei
que minha desimportância é risível,
mas pra minha teimosia é a coisa mais importante
do mundo.
Fujo das multidões:
O cara que se imagina muito comentado
e pouco compreendido,
como a Bíblia.
É pena nossa rotina
não virar novela.
Queria falar da vida mágica nas ruas do Texas,
areia esbranquiçada, grama verdinha,
a primavera chegando -
mas meu bem me empurra
pro abismo da realidade,
contando moedas
no fim do mês.
Mesmo assim fico doido
pra descrever o entardecer avermelhado,
a lua cheia no cenário,
até ela lembrar que tais cores
vêm das queimadas no Centro-Oeste.
Como não amá-la,
se é ela quem me diz
que poesia não paga as contas,
mas ajuda a esquecê-las?
(B. B. Palermo)

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Pobres

 

Os pobres - dizem - só pensam em grana,
mas o ouro que buscam
é o mesmo que brilha no coração de quem teme a fome.
Talvez sejamos todos mendigos
da própria luz,
pedindo migalhas de sentido
ao grande silêncio do tempo.

Falam que não leem poesia,
mas há verso nas mãos calejadas,
há filosofia no olhar de quem acorda cedo
e enfrenta a tempestade dos dias.
A alma, ainda que adormecida,
pulsará quando o vento disser o seu nome.

Na beira do mar, à entrada da noite,
ouço bandos de pássaros nômades
trazendo recados de outros céus.
Chove no Saara, neva no Nordeste,
e quero-queros dançam valsas sobre a areia,
como se anunciassem um renascimento.

Sou o pão que se reparte,
sou o Maná que desce da nuvem,
mas o som de minha voz
não alcança as janelas fechadas -
moradores da rua
tor-nam-se
sur-dos
de es-pí-ri-to.

E então compreendo:
não há ricos nem pobres,
há apenas os que esquecem
e os que lembram.

Piso fundo na terra
e sinto que o ego é só poeira,
um véu entre nós e o infinito.
E da poeira nasce uma pergunta antiga,
agora suave, como quem reza:
- O que é essencial para você?

(Pensamentos & Poemas Espirituosos)

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

O surdinho noiado



Sentei pra meditar e foi uma doideira.

Tentava não pensar, mas vinha seu rosto lindo
em todos os contornos:
olhos, traços da boca divina, sobrancelhas, o cabelão...
Focava de novo em não pensar
e vinha o calor do seu corpo e abraços
disparando choques de 1500 volts
que me levavam a outras dimensões,
algo bem próximo do paraíso.
Sua voz murmurando coisas que só uma feiticeira
sabe dizer pra encantar um garoto carente de amor,
mas que a vida, pela dor dos afetos, ensinou a enfrentar,
sempre fugindo e dizendo não.
“Prefiro estar sozinho, tenho medo de perder quem amo”.
Enamorado, hoje me finjo de surdo para as suas dicas
de como seduzi-la e ser o cara
pra uma garota de classe.
Eu sei, pelo brilho dos seus olhos,
que o feitiço virou contra a feiticeira,
e ela também se enamorou.
E ficamos nessa:
vivemos com intensidade o momento,
e aí me faço de desentendido,
desejando sempre um novo bis,
e dou gargalhadas deliciosas
quando a ouço dizer:
- Você sempre pede pra que eu repita
as coisas mais divinas que eu tenho pra te dizer...
Assim não dá, meu surdinho noiado!

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Há quanto tempo não te vejo, querido bisavô

 

Num reencontro na vila em que nasci,
abraços acendiam memórias como lâmpadas antigas,
trazendo de volta rostos, causos,
cheiros de cozinha, poeira de campo de futebol.
- Há quanto tempo não te vejo! - diziam,
e cada frase parecia abrir uma gaveta esquecida.
Onde foram parar os troféus do nosso clube?
Anos setenta, oitenta, noventa... Alguém sabe?
E as ferramentas que arrancaram o sustento da terra vermelha?
Será que ainda temperamos a vida com as receitas dos avós?
Museus, livros, histórias puxam nossas orelhas:
lembrar é compromisso, é gratidão,
é não deixar que os jardins da memória
virem terrenos baldios.
Hoje, anos depois, saí com esse pensamento latejando,
neblina nas ruas do A. Texas,
passos contados como quem mede a distância do ontem.
O mercadinho novo me piscou luz de néon invisível:
sardinhas, bananas, maçãs, cerveja...
a economia da aldeia numa sacola plástica.
Segui, só eu e Deus ou, talvez,
também um poema preso no peito.
E então, na névoa,
vi um homem com fones enormes,
cara de quem não aprova sardinha em lata
nem funk pancadão.
Era meu bisavô,
recém-desembarcado de 1889,
sotaque de vinho colonial e olhos que viram oceano, peste,
fome e guerra.
- Cês tão fazendo o quê com o planeta, Palermo?
Inventaram carro sem cavalo,
carne que não sangra,
robô que escreve poesia…
mas ainda jogam gente no mar?
Dei um gole no latão...
talvez a espuma respondesse por mim.
- Vim buscar terra.
Voltei pra ver se sobrou alma. - disse ele,
olhando o céu costurado de satélites.
Ainda vale a pena sonhar?
Apertei as sardinhas na sacola,
senti a umidade da neblina
e respondi, numa tristeza de doer:
- Só se for de olhos fechados.
(B. B. Palermo)

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Adeus, meu rabo de cavalo

 

O chão, de repente, é um cemitério de fios.
Meu rabo de cavalo, breve como promessa de verão,
caiu inteiro no colo do João,
barbeiro rindo como se arrancasse um segredo.
Foi um sonho adolescente que esperei tarde demais,
um ato de rebeldia com prazo de validade.
Eu, enfim livre das opiniões previsíveis,
me convenci de que poderia sustentar
aquele pedaço de vaidade amarrado
atrás da cabeça.
Então veio ela,
a musa alfa, ciclone recente,
dona de todos os meus pensamentos e
dívidas emocionais.
Na praia, o vento penteava meus fios
como se conspirasse comigo.
Ela foi simples, certeira:
- Deixa de ser ridículo, menino levado.
Corta esse cabelo de gente!
A frase ficou tremendo no meu peito
como onda que não quebra.
Dois dias depois, entre navalha e gargalhadas,
o rabo caiu.
Não sei se perdi um cabelo
ou ganhei um mapa
aonde ela guarda
tudo o que ainda não sei de mim.
(B. B. Palermo)

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Amor vira ódio num segundo

 

Nas casas noturnas, se você tem grana
pode escolher a música e as garotas dançam
mesmo que a letra não faça sentido.
Hoje, toca sertanejo universitário e outros ritmos
cheios de promessas partidas e paixões precipitadas
que duram menos que uma cerveja.
Minha música era “Boate azul”, meu hino nos cabarés.
Os caras que escreveram aquilo sabiam da vida,
sabiam desses amantes catando o ouro do afeto
nas sombras da madrugada.
Seu refrão gruda na alma,
fala da solidão como uma velha amiga
que bebe comigo.
No começo, quando a dor vinha,
eu achava que não passava e pensava em ir embora de vez,
mas a cerveja me segurou pela gola, e disse:
- Calma, Cadelão… amanhã pode ser diferente!
A vida, aos poucos, me mostrou
que rir das tragédias é o único jeito
de continuar escrevendo histórias.
Hoje, no Whats, soube de um garoto
que se matou por causa de chifre.
Disseram que ia levar a namorada junto,
mas ela não foi e ele se matou sozinho.
No grupo, alguém disse:
- Essa juventude… caiu no primeiro chifre.
E outro:
- Com o tempo, a gente aprende que chifre não mata,
só ensina a beber melhor...
É…
O amor pode virar ódio num segundo,
mas também pode voltar a ser amor
se a gente der tempo, se não desistir,
se não fechar a porta na cara da madrugada
porque, no fundo, mesmo os cínicos esperam
uma mão quente pra segurar
quando a música parar.
(B. B. Palermo)

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Casamento não é pra qualquer um

 

Sou meio psicólogo e até me esforço pra ouvir as paranoias costumeiras dos malucos que conheço no A. Texas e confesso: não tá moleza.
Imagina, então, ser amigo, ouvir e até “iluminar” um Et que ainda não se acostumou com uns lances bem comuns que rolam entre homens e mulheres numa relação afetiva, nomeada de “casamento”.
Pois é, meu amigo EtBeto baixou por aqui, teve uma curta fase de boemia (depois que me conheceu... hehehe) e aí decidiu testar sua capacidade de adaptação aos costumes desse povo. Resumindo: conheceu a Verinha, se apaixonou e logo partiu pro casamento.
E vocês sabem, numa relação a dois não é só flores, não é só primavera...
Sem mais delongas, vou reproduzir aqui um áudio que o meu amigo, o verdadeiro mochileiro das galáxias, me enviou.
“Cadelão, veja só a minha situação. Eu e a Verinha, depois que a Bella veio... (já faz um ano que ela tá com a gente) nós estamos tentando... como é que vou dizer pra não te chocar...
Copular! Tentamos copular, copular!
Tá... A gente deita na cama, só que cada um dorme em cada lado da cama, né?
Bom, como tu sabe, eu na cama sou fenomenal. Aí, a Verinha começa a gemer... e ela não sabe gemer baixo. Então os cachorros pensam que eu tô brigando com ela e começam a chorar, e a Bella sobe em cima da cama... E aí terminou “o assunto nosso”, a copulação já era.
Ontem eu cheguei e disse ‘Amor, vou tomar um banhinho, vou deitar aqui e tu vem e faz um carinho, bem devagar’...
Bom, eu só botei um pijaminho todo estampado que ela comprou na Renner, fiquei vazio por dentro, e a Verinha, em vez de arrancar fora aquele troço e fazer um carinho no pimpolho, apertou a barriga.
Cadelão, na hora deu um som assim... assim... Isso, o vento começou a soprar e ela fez uma cara de desgosto e indignação... e agora não quer mais copular comigo. Aiaiai, Cadelão, me diz, o que eu faço?”.
(B. B. Palermo)

Um velho cão também precisa de cuidados

  O convite pra missa de sétimo dia era de um boêmio qualquer, catado num jornal de quinta, de uma década que ninguém mais sabe localizar. O...