quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

Ainda não éramos zumbis


 

Rapaz, lembra que em 1996 você comprou um 3 em 1
e começou a se interessar por blues,
ouvia CDs do Eric Clapton
e sentia que aquelas músicas
despertavam uma melancolia,
uma angústia boa.

Você não havia casado, nunca fora pai,
nem rabiscara um poema
pra algum hipotético filho
nascido de transas casuais
sem uso de preservativo.

O 3 em 1 rodava Clapton, Santana, Celso Blues Boy
e tantos outros,
e você amava ouvir aquilo
enquanto uma tristeza,
de um jeito estranho,
te ofertava mais e mais vida.

Décadas depois você se sente encurralado,
ou se retrai,
como o atleta que envelhece,
abandona os músculos
e passa a precisar de ajuda
até pra sentar no vaso
e puxar a descarga.

Hoje você pisa fundo no pessimismo
e convence a si e aos outros
de que tudo está perdido,
ainda mais quando alguns bostas perguntam:
“A arte vale mais do que a vida,
mais do que a comida,
mais do que a justiça?”.

Caralho,
como se uma coisa excluísse a outra.

Carros passam.
Pessoas passam.
“Essa vida é inútil, Palermão”.

Criaturas barulhentas,
olhares faiscando como fuzis.
Tudo são quedas-d’água
raivosas
correndo dentro da gente.

Existe algo que nos arrebate
e nos faça ir além
do obscurantismo,
do ódio,
das intrigas
e dos planos frustrados pro amanhã?

Existe, sim.
Mas não vem em forma de luz,
nem de manifesto,
nem de guru com dente branco.

Vem quando, por cinco minutos,
o mundo cala
e um blues antigo escapa
de um rádio ruim,

ou de um 3 em 1 imaginário.

Vem quando você percebe
que ainda sente alguma coisa,
mesmo cansado,
mesmo puto,
mesmo repetindo
que tudo acabou.

Não salva o mundo.
Não paga as contas.
Não ressuscita o garoto de 96.

Mas impede o zumbi.

E, convenhamos,
num planeta de mortos ambulantes,
isso já é quase um milagre.

 

(B. B. Palermo)


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