quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Somos uns FDP tão burros que até parecemos ingênuos




Estamos juntos, com nossas bicicletas e esteiras e cacetes e xotas abandonadas num canto.
Estamos juntos, com nossas veias entupidas de tanto transportarem frustrações.
Me identifico com todos, por isso estamos juntos. Flutuo entre uns caras surdos que berram toneladas de amenidades e depositam numa latrina minha sede.
Estamos juntos, com nosso cabelo cada vez mais ralo, nossas olheiras e dentes mal cuidados, nossas orelhas mergulhadas na cera, nossas mulheres que funcionam como babás.
Nossos aluguéis atrasados, nossas mansões e venenos derramados nas plantações e nossos bebês prematuros e seus defeitos, como se recebessem uma tatuagem ou marca, a nossa idolatria ao progresso.
Estamos juntos, com nossos carros econômicos e limpos e brilhantes, como se fossem limusines, com nossas festas de fim de ano, da empresa e da escola e da família, e nossas postagens bonitinhas nas redes sociais com aquela ortografia horrorosa.
Estamos juntos, com nossos chás emagrecedores e frutas que apodrecem na fruteira e legumes mofados na geladeira. Adoramos citar Clarice Lispector e Martha Medeiros e Mario Quintana, aquelas merdas de autoajuda que fingimos não saber que não foram esses caras que escreveram.
Estamos juntos nessa de sermos uns filhos da puta tão burros que parecemos ingênuos.
Estamos juntos com nossa raiva que faz estragos, como se fosse granada explodindo no meio da multidão. Nossas respostas amargas e ríspidas a quem nos contraria revelam imensa fraqueza. É como se abríssemos uma clareira na floresta usando facão sem cabo e sem usar roupa ou qualquer proteção, totalmente nus e expostos às investidas de cobras e insetos.
Estamos juntos nessa de nos considerarmos anjos rodeados de cobras e insetos.
Estamos juntos, com nossos lençóis limpos, sacadas arejadas e amantes discretas e compreensivas, como se existissem apenas no imaginário. Estamos juntos, mulheres perfeitas existem apenas no imaginário. Estamos juntos, homens perfeitos não existem. Me conheço.
Estamos juntos. Se me perguntarem: Pra 2020, escolherei Cristo ou álcool ou drogas? Simplesmente responderei:  Sou todo Lucy, com seus peitos e coxas e bunda musculosa e sacadas espirituosas e sotaque portunhol que bombeia meu sangue até os países baixos e sua personalidade inesquecível que amarei eternamente no ano que vem.
Estamos juntos e sabemos que somos anjos protegidos por nossos deuses e ídolos do esporte e da música e da política, seres reais e imaginários, responsáveis pra dar sentido pra essa vidinha de filhos da puta pra lá de burros, mas tão burros que até parecemos ingênuos.

(B. B. Palermo)
                                                        

sábado, 14 de dezembro de 2019

Nada, nada, nada


A folha em branco, copo d'água e uma cerveja, e nada, nada, nada.
Um velho ansioso pra contar as cagadas que fez na semana, a folha em branco esperando, e nada, nada, nada.
A cerveja pouco gelada, o tímido colarinho, o velhinho que insiste em bater papo, a folha em branco, e nada, nada, nada.
A ressaca que grita mais alto, planos outra vez adiados, o comportamento esquisito do trânsito na noite de sexta, a folha em branco, e nada, nada, nada.
O silêncio dos coerentes, a gritaria dos idiotas, jovens e velhos só falam em negócios e grana, a folha em branco, e nada, nada, nada.
Greves no topo, greves quase estourando, governantes são cocô de cachorro que pisei na calçada, meu coração reclamando, a folha em branco, e nada, nada, nada.
Alarmes disparam, guardas berram salários atrasados, câmeras de segurança estão me vigiando, a folha em branco, e nada, nada, nada.
Mapas estão sobre a mesa, mapas estão nas paredes, mapas estão olhando e rindo de minhas  escolhas, a folha em branco, a caneta fiel e impotente, e nada, nada, nada.
Gostaria de conhecer todas as putas da cidade, gostaria de casar com uma virgem e viver bodas de ouro de fidelidade... hoje estou delirando... a folha em branco, e nada, nada, nada.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Final do campeonato gaúcho de futebol feminino



Quando sentei na arquibancada os dois times estavam aquecendo. Reparei na massa muscular das gurias... Jesus Cristo! Os músculos a mil, vibrando, principalmente as coxas... Aquelas musas derretiam meu olhar, os cabelos amarrados, a pele bronzeada de treinos e jogos no sol a pino.
O suor, a motivação, a vontade de morder a bola. Velho, eu observava tudo aquilo e também queria ser mordido, ser o cara, no caso, A BOLA... isso, queria ser pisado, agarrado, chutado.
Pouco antes de começar o jogo eu via as gurias dos dois times abraçadas, formando dois círculos perto do meio campo... As CAPITAS dando aquela moral e motivação, "Todo mundo ligada..." e "Vamos lá, todo mundo comendo a grama, é o jogo de nossas vidas..."  E então o grito "Inter, Inter, Inter!". A mesma coisa no lado do círculo com as gurias do Grêmio... "Grêmio, Grêmio, Grêmio!".
Cara, aí eu também me motivei. O sangue ferveu e o radiador furou e eu decidi ir pra copa sugar um latão de cerveja, lamber a espuma que ficou nos beiços, olhando e devorando aquelas deusas que começaram a voar no gramado.
Daí a pouco um maluco, cara de chapado, e que se desgarrou de uma torcida organizada, se aproximou com esse papo: Mano, tu viu como elas entram nas divididas... Mano, tu viu como elas se enroscam e se agarram... Mano, olha só como elas se agarram!
A criatura exibiu um punhado de notas de cem reais... e ficou dizendo pra esse Cadelão, Mano, tu é ingênuo... Mano... o que tu vê aí dentro de campo, desde a massagista, a fisioterapeuta, a técnica... as jogadoras... Mano, todas elas são lésbicas... Aí eu falei: Velho, se isso for verdade, eu tô em casa... Eu também sou lésbico.
O cara ficou me encarando e deve ter pensado "Sujeito mais estranho, véio!".
 Dali a pouco falei pra ele: Tá vendo aquele filho da puta grudado na tela do alambrado? O infeliz xinga a árbitra, a técnica adversária, a bandeirinha... Esse retardado está estragando o que o futebol tem de melhor, que é jogar com alegria.
Botei filosofia pra cima dele. Falei, Malandro, pra mim o que vale é a arte dos movimentos... O mais bonito e que me alegra é a estética da coisa...
Foi então que o inteligente veio com uma de comparar a pouca qualidade do futebol das gurias, com relação ao futebol da série A do campeonato brasileiro. "As gurias correm pra todo lado, meio perdidas... quem pensa um pouco e tem qualidade no passe e no chute vira craque".
Falei pro cara: Velho, tu tá acostumado com o futebol que passa na TV... Acorda, meu, 95% do futebol dos machos que rola no país é mais feio do que esse aqui. Além disso, acho muito mais interessante pousar meus lindos olhos nas pernas dessas gurias do que nas pernas dos marmanjos. Sempre vou preferir ver as deusas correndo atrás de uma bola.
O cara foi pro banheiro. Aí o segurança do bar, que observava e ouvia nosso papo, se aproximou e falou: Fica ligado, meu, esse cara é uma "mula".
No segundo tempo foi gol em cima de gol. Putz, a comemoração das gurias me pareceu uma imitação do jeito de comemorar que sempre se vê no futebol masculino. Puta merda, não acredito que elas estão imitando os caras! Elas deviam se agarrar e se abraçar e se beijar daquele seu jeito "lésbico" (kkkkk... Claro que isso só passou pela parte mais "suja" de minha cabeça... Não falei pra ninguém... Imagina ser carimbado como um simpático machista).
Matutei: As gurias não tem que reproduzir o que o futebol tem de pior, que é a violência, a competição... e de valorizar apenas a vitória, ainda mais quando o jogo é feio... Observei as comissões técnicas, suas olheiras, carinhas de pouco sono e muito estresse. É o que se ganha quando se encara o futebol apenas da perspectiva dos resultados, ou seja, quando só interessa a vitória e o lucro. Pensei: Velho, acho que essas criaturas quase não dormem. Caralho, parece que estão se transformando em máquinas!
No final do jogo, não sei por que, fiquei meio triste. Sendo uma decisão de título, enquanto um time de deusas ficou superfeliz, o outro time de deusas ficou hipertriste. Velho, eu me dividia. Não sabia se comemorava o título com as campeãs, ou se abraçava as garotas derrotadas e chorava junto. Como tinha muita gente comemorando, no gramado e arquibancadas, pensei que minha missão era consolar as gurias que perderam. Foi o que fiz. Me dirigi até o seu vestiário. Ao chegar, fui barrado por um segurança, um armário de uns dois metros de altura. Droga... Eita vida cruel. Velho, acho que nasci numa época errada... Só Pode... Ninguém me compreende!
Mas ainda não quis me retirar do estádio. Havia algo guardado para mim, pensei. Observei uma repórter de TV perto da boca do túnel. Era a Kelly Costa. Caramba, como ela é linda! E ela me viu... Gente, Ela trocou olhares comigo! Sim, me pareceu interessada em saber quem eu sou...
É isso aí, velho, com esperança o mundo tem tudo pra dar certo!

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Sempre há motivos para beber mais uma



Na loja de conveniência do posto de combustíveis, observo uma jovem garota comendo salgadinho e bebendo um copão de café preto. 
Convenço-me de que a cena vale outra cerveja.
Jovem, e de medidas desproporcionais. Isso numa cidade repleta de gatas lindas - tanto loiras quanto morenas. 
Meus olhos estão dispostos, encaram o que vier.
Hum... Encontro-me numa distância de uns cinco metros, e percebo que me enganei. Não é café, é refrigerante, Fanta uva. 
Sofregamente, a moça dá conta do salgadinho. 
Agora ela devora um enroladinho. Bom apetite. Mastiga e engole no mesmo ritmo alucinado do trânsito à tardinha. 
Nunca saberá que a flagrei em plena luz do dia do pecado.
Nunca saberá que foi dominada pela gula, uma parte angelical e, ao mesmo tempo, diabólica do seu corpo.

(B. B. Palermo)

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

O sangue de um romântico ingênuo é sugado pelas piriguetes



Experimento hoje um sentimento de solidão e tédio, como quem espera ônibus urbano em dia de feriado. É o mesmo sentimento que experimentei quando passeava com a namo no Monza, tinindo, e lavado, e lustrado. Ela mergulhada no chimarrão com sabor de ervas exóticas, cuia poeticamente enfeitada, e eu gemendo, cheio de tremores dada a  necessidade de umas doses. Ela falando de móveis e imóveis que estruturariam "nosso" futuro, e eu roendo as unhas de tanta vontade de saltar fora, pra poder começar tudo de novo com outra.
Necessito emigrar de uma relação para outra, nada de ficar mais de um ano, no máximo um ano e meio. Isso para escapar de suas críticas e lamúrias e os respingos na minha cara, como saliva de bêbado. Sei que ouvirei e ouvirei, como um sonho que se repete: "Tu me enrolou, me prendeu... por todo esse tempo. Deixei de casar com o Ricardão. Ele me amava tanto! Tu faz ideia de quantos caras vinham atrás? E agora, quem é que eu vou arranjar?".
Enquanto a garota tinha olhos pro futuro, pro companheiro que saltaria feito um tigre pra cima do chamado "amor eterno", eu pensava nos livros que publicaria, nos livros que gostaria de ler, nos contos que desejava escrever... E, claro, nas gatas que me cercariam e bajulariam quando fosse o escritor cuja fama me chamasse.
Ela falava dos mates, do chá de fraldas da amiga, da Black Friday, e eu me distraia com belos rabos que acariciavam meus olhos nas esquinas por aí.
Quando o relacionamento, enquadrado nos padrões usuais, começava a desmoronar, eu sentia uma alegria doente, e notava minha cara-metade com semblante de bunda. Enquanto sentava no vaso sanitário, minhas ideias claras e distintas me beliscavam e diziam que ela merecia um traste melhor do que eu.
Quanto mais ela se afogava no chimarrão e nos sucos detox e chás emagrecedores, eu mais investia em vodca e cerveja e uísque. Reconheço, com frequencia minha alma despertava azeda, tudo porque enchia o cu com cerveja ruim.
Toda vez que ela trazia "nossos" planos na dianteira, como se fosse frase de para-choque de caminhão, eu tinha a impressão de que ela falava alto, muito alto, a ponto de todos os meus amigos e conhecidos estremecerem. Os caras eram testemunhas da fria em que havia me metido. Sabia que com qualquer outro, desfilando nos sábados e domingos à tardinha com o mate e em carros bem melhores do que o meu, sua felicidade fluiria naturalmente. Qualquer sujeitinho com seus papos e músicas bestas a deixaria mais feliz e centrada, encaminhando-a praquilo que sempre sonhou.
Às vezes sou humilde, admito que não sou melhor do que esses galãs, ao contrário, sou um grande bosta, deslocado do que rola no tablado encerrado e lustroso em que a galera desfila.
Estou de saco cheio de ouvir de vocês: "Cadelão, tens à mão, deitada ao teu lado, uma incrível boazuda, tu fode toda  a noite... tu goza e ela goza, e assim empalidecem suas lamentações e noias... Veja bem, todo esse banquete, por que então a necessidade de correr atrás de outros rabos?".
E vocês dirão mais: "Acho que essa necessidade de futricar daqui e dali é o que vai foder com tua vida. Tu fica salivando ao cruzar por essas piriguetes, suas vozes e olhares e cheiros e fragrâncias, e assim não desfruta por inteiro o que está aí bem do teu lado".

Apesar de tudo, eu juro, sou um bom garoto. Sério, não riem, talvez sejam breves recaídas de um bêbado que se deixa afetar por um puto lirismo esperançoso, que se resume em correr atrás de amores impossíveis, como se quisesse ressuscitar o rock nacional dos anos 90.
Juro, não passo de um romântico ingênuo perdido no palco. Um pescador amador que se embrenhou por lagoas e pântanos, mas que esqueceu do repelente de mosquitos, e por isso o sangue que circula nas veias de suas pernas sofre incrível sucção dos borrachudos, que são as piriguetes, a cada dia mais ousadas e agressivas.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Ainda vai chover na minha aorta


O Beiço perguntou:
- Cadelão, por que você não escreve mais?
Não passou trinta segundos, e o veado debochou:
- Cadelão, por que não te matas?
Então respondi:
- Estou igual a um personagem do Hemingway, só juntando material! Sei que, além do sol também se levantar, a qualquer hora vai chover na minha aorta.
(B. B. Palermo) 

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

De mãos dadas com senhor Sombra



Farmácias brotam diante dos olhos
feito tiririca nos gramados.
Bares aguardam bêbados convictos e tímidos
e outros tipos que fazem estágio.
Alguns serão aprovados, outros serão resgatados
por pastores de igrejas.
Entre bares e farmácias, escolho os primeiros.
Em vez de paroxetina e valium e prozac,
prefiro cervejas e canecos de chope.

Estou feliz porque ninguém sabe
do banho enforcado e do sovaco a mil.
O dia começa as 12h e o almoço é as 16h.
Uma voz ensombreada, diz:
- Ainda vou te levar ao céu.

O Sombra, um cara que dizem ser meu eu mais profundo e radical,
um Cadelão do avesso e vesgo e falso,
ri do meu perfil quando juro que sou sincero.
Até hoje não me acostumei com esse sujeito
grudado no meu pé.

Todo dia pessoas sinalizam posturas bem comportadas,
como se fossem pintores envernizando minhas faces,
maquiando o meu perfil.
Coachings me perseguem e tagarelam com mensagens amplificadas.
Falam do meu sucesso, embora sabendo que não passo de uma abelha
se debatendo nesse vespeiro.
Não vejo muitas opções, a não ser farmácias e bares.
Até dou-lhes atenção, porém o estoque de remédios
e de paixões sempre recua.
Estou cheio de ouvir a velha melodia:
- Aproveite e sugue a calmaria das tempestades
que essas drogas propiciam. Viver
é  sair pra chuva e se molhar.

O estetoscópio do médico nunca vai alcançar as moléstias
duma multidão de imbecis.
Sujeitos estranhos dizem:
- O mal se cria na cabeça, meu irmão.
Tenho visto tanta gente deprimida por aí.
A toda hora disparam sirenes dos bombeiros.

Lendo um livro de uma psicanalista
eu me convenci de que sou ressentido.
Tomei conhecimento das opiniões e feitos de uns próximos
e tive gases e refluxo e frieiras e azia.
Culpado disso tudo é o Sombra,
é ele que inveja um amigo, só porque o cara fala 4 línguas.

O dia passou de carona numa tempestade.
Dormi pouco pra não faltar a um encontro.
Possuí-la era o alvo, mas o tempo fez um desvio.
Então estrelas nasceram e outras morreram.
Nada de flores, nada de presentes.
Agora estou no princípio da escada
e tenho uma visão realista do meu ser.
Olho pra cima e sei que não chegarei no topo.
Tudo culpa da delicadeza e doçura e alma leve do Sombra.

Ganhar tempo. Não sei se pago as contas
que pendurei nos botecos da avenida,
ou se torro os 700 pilas no Degrau's.
Janusa - o traveco bruxuleante - ligou,
quer me apresentar uma princesa cheirosa
como angorá que retornou do pet shop.
Janusa é irresistível, de personalidades múltiplas,
e conhece os atalhos do prazer.
Cresceu num lar em que germinaram incesto e pedofilia
e brilho da lâmina da navalha e estampidos de 38
e álcool e drogas em carreiras bem alinhadas.
Ela (ele) sabe que a disputa
entre Cadelão e Sombra é desigual.
Quando o Sombra vence em disparada
e Cadelão entorna os primeiros copos,
Janusa balança a cabeça com cara de alucinada,
como se presenciasse o fim dos tempos
e bota a culpa no destino.

Hoje estou cheio de ontem
e os bares dessa avenida continuarão me esperando
com suas pernas abertas e mesas nas calçadas.
Mas hoje passarei ao longe,
eles não fizeram por merecer minha
ressaca bizarra,
que desfila por aí de mãos dadas
com senhor Sombra.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 29 de outubro de 2019

Leia o Livro, Veja o Filme: Mas Não Se Matam Cavalos? / A Noite dos Desesperados


“Fiquei de pé. Por um momento vi Glória de novo, sentada no banco no píer. A bala acabara de atingir a sua cabeça, de lado, o sangue ainda nem tinha começado a escorrer. O brilho do tiro ainda iluminava seu rosto. Tudo estava claro como o dia. Ela estava completamente relaxada, completamente à vontade. O impacto da bala tinha virado sua cabeça um pouco para o outro lado; eu não tinha uma visão perfeita de seu perfil, mas podia ver seu rosto e seus lábios o bastante para saber que ela sorria. O promotor se enganou quando disse ao júri que ela morreu em agonia, sem amigos, sem outra companhia a não ser a de seu cruel assassino, ali, naquela noite escura, à beira do oceano Pacífico. Ele estava completamente enganado. Ela não morreu em agonia. Ela estava relaxada, confortável e sorria. Foi a primeira vez que a vi sorrir. Como poderia estar em agonia? E não estava sem amigos. Eu era o melhor amigo dela. Eu era o único amigo dela. Como é que ela não tinha amigos?”

“Mas não se matam cavalos?” começa com o parágrafo acima e, a partir do julgamento de Robert, narra em retrospecto a jornada do protagonista, desde seu primeiro encontro com Glória até o trágico desfecho da relação. Era época da Grande Depressão americana. A fome assolava a população e o desespero levava a atitudes insanas.

Robert Glória se conheceram na Melrose Avenue. Ele saía do estúdio da Paramount, aonde tinha ido mais uma vez tentar a sorte, enquanto ela corria ofegante e maldizia o ônibus que tinha acabado de perder. Ele era do Arkansas; ela, do Texas. Ambos haviam deixado seus estados de origem para trás e rumado para a terra das ilusões em busca de um sonho – Robert queria ser roteirista e Glória almejava ser atriz. Depois de um certo tempo sobrevivendo de pequenos papéis, a dupla já não tinha muita esperança. A última cartada dos dois era participar de uma maratona de dança que anunciava um prêmio de 1000 dólares ao casal vencedor.

À primeira vista, uma maratona de dança pode soar estranho e uma saída fácil para Robert e Glória, já que os participantes tinham garantidos abrigo, banho, comida e atendimento médico. Todavia, aos poucos o verdadeiro horror da atração vai ficando evidente: era uma arena na qual os dançarinos chegavam ao limite dos seus corpos, se digladiavam até a exaustão, passavam por tortura psicológica e eram expostos a humilhações e todo tipo de engodo para entreter o público e atrair patrocinadores. Uma mistura assustadora de Jogos Vorazes com reality show de dança.

Glória era uma garota amarga, que sofreu abusos, foi vivendo de favores e pulando de sofá em sofá, apenas tentando sobreviver. Na época em que conheceu Robert, já não tinha mais nenhuma fé na humanidade. A frase que mais pronuncia durante toda a história é ‘Queria estar morta’. Sem dúvida, triste e deprimente, mas não incompreensível. Como julgar as atitudes de alguém que só conheceu o pior da vida e que não tem mais perspectivas de futuro?

Robert ainda mantinha a essência de sonhador. Repreendia constantemente a amiga por seu pessimismo, tentava apontar saídas. Mesmo no salão claustrofóbico, em meio a uma multidão disposta a qualquer coisa para conseguir alguma vantagem, ele ainda buscava os raios de sol e pensava no mar. Ainda que estivesse em um ambiente de ‘vale-tudo’, ele conseguia ser cortês e solidário. Entretanto, os esforços individuais nem sempre bastam para mudar o destino.

Eu sempre achei esse título curioso. Outro dia, estava folheando o “1001 Livros Para Ler Antes de Morrer” e vi a indicação desse livro lá. Como era curtinho, consegui encaixar entre minhas outras leituras programadas e, sinceramente, foi uma ótima escolha. A história da luta pela sobrevivência em uma pista de dança não poderia ser mais intrigante e desoladora. Os personagens são bem reais e o título faz todo sentido.

Para variar, mais um filme adaptado de livro. Sydney Pollack levou a história para as telas em 1969, com Jane Fonda no papel de Glória e Michael Sarrazin encarnando Robert. A produção foi recordista em indicações ao Oscar de 1970 entre os filmes não indicados na categoria de melhor filme.

O diretor faz os protagonistas se encontrarem pela primeira vez já dentro do salão, quando Glória procurava um par e Robert entra no local por acaso. À narrativa da competição são mesclados flashs da infância de Robert, que fazem a ligação do título original com o desfecho fatal da trama.


Em geral, é uma adaptação bastante fiel. As cenas de participantes surtando sob o estresse são angustiantes, e as disputas do derby são ainda mais terríveis e violentas do que aquelas que minha imaginação havia criado. Para compensar, os pequenos solos de Robert banhado pelos raios de sol são um respiro de delicadeza em meio à brutalidade reinante na pista. As explicações do organizador sobre os cálculos e taxas impostos aos vencedores são revoltantes e, mesmo tendo sido inventadas para sustentar uma alteração da história, estão em total conformidade com a ideia de exploração dos miseráveis apresentada no livro.


segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Meu amigo é um especialista em correr atrás de ******

Beiço sempre pergunta: "Cadê os acontecimentos sublimes, que masturbam os sentidos?"
Suponho que isso tem a ver com suas trapalhadas com garotas, as "putas". As coisas andam sintomáticas. Ele se comporta com a seriedade de um pesquisador, cientista social, um especialista em comportamento humano. Pra ele é fundamental saber se uma garota é "fácil" ou "difícil", por que fica com muitos caras ou não...
Nos barezinhos de quinta categoria é farto o material para nossa análise. Ainda mais estando rodeados de uns escrotos, uma corja satisfeita com os papéis que desempenha por aí.
Discursos agudos de operários batendo o ponto e colocando uns jalecos surrados pra iniciar novo turno, e dizendo "graças a Deus que eu tenho um emprego!"
Conversavam, como se tivessem se reencontrado depois de décadas, como se estivessem retornando de uma guerra, como se tivessem nascido de novo.
Suas necessidades são terríveis aos olhos do Beiço, o especialista: desejam adquirir uma arma, como se estivessem diante de inimigos terríveis, como se sua sobrevivência dependesse do extermínio desses "monstros".
Falam ao mesmo tempo, como porcos devorando a última refeição. Suas opiniões políticas e econômicas e morais são perfeitas. Nada que não possa ser reciclado, virar adubo e ser tragado pela natureza.
Um horror. Afastei-me do balcão do bar com uma garrafa de cerveja no colo, cuidando dela como se fosse meu bebê, e uns garotos viciados em coca-cola me fitaram, como se eu desembarcasse de outro planeta.
Tempos estranhos. Belos foram os ataques de espirros no sujeito duma mesa, que discursava sobre suas dívidas aos bancos. Milagre, todos que estão próximos têm dívidas nos bancos. Num momento incrível, eu falei e eles me ouviram. Quase chorando, disse-lhes que devo pra meia dúzia de bancos, e que "ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão".
Esses papos me fazem crer que os vermes não são seres inferiores e desprezíveis, um ato escrotinho da criação. Nessa bagunça, cada bêbado vomitando sua verdade, uma voz, que ficou represada em cada sonho desses nojentos, o que poderia ter sido e não foi, limitou-se a dizer: "O mais importante é você jogar álcool nessa carcaça".
Chegava a noite e eu estava sem rumo, e não sabia e nem queria ir a qualquer lugar, e sugava a segunda cerveja. Como um nevoeiro, a febre baixou sobre meu ser: penso agora em boceta. Claro, sou influenciado pelas teses do Beiço.
Enquanto a fala do meu amigo era abafada pela gritaria dos demais bebuns, observei o trânsito na avenida. No sinal fechado uma motinha fodida aguardava na frente dos carros. Enquanto esperava, o cara tentou engatar a primeira marcha... e nada. Fiquei tenso. O sinal abriu e ele arrancou numa terceira, juro que eu vi! A moto partiu indecisa, toda insegura, como certas mulheres loucas pra dar... Isso, sejam mulheres ou sejam homens, muitas vezes cedemos mais do que planejamos. A maioria não quer se expor, porém posta fotos sensuais na internet. Observo as garotas, muita bunda e peito e poucos olhares interessantes. Mesmo assim, sempre a lengalenga: "Não quero que a sociedade me rotule como veado ou puta!".
Três garotas sentaram noutro canto, cigarros, salgados, celulares e olhares a postos. Maquiagem, roupas sensuais e, influenciado pelo Beiço, imaginei que elas eram do brique. Que merda, eu ali, um coroa carregado de preconceitos e sacolas com queijo e massa e cebola e tomate e uma garrafa de uísque, fazendo hora antes de voltar para casa e me enrolar no cobertor da minha solidão. Encolhi de tamanho ao notar que elas se interessaram pelo garoto frentista, de uns vinte anos. Elas olharam pra ele, eu vi tudo, e eu não existia.
Ah, as minhas garotas. Saco, ou são muito gordas ou são esqueléticas. Amiguinhos, aprendi com o Beiço, não ligo pra alma das mulheres, se têm de fato. A ideia fixa é na roseira, sim, e eu me torturo e tenho prazer de lembrar como foram esses paraísos, as garotas que posaram, paisagens de minha memoria. Relembro como cultivava, quer dizer, conquistava, até desfrutar na cama aquela flor que despetalava com paciência e técnica. Bem-me-quer, malmequer... de início com os dedos e logo depois às beiçadas. Se alguém assistisse a cena, a garota com as pernas totalmente escancaradas e eu com a cabeça ali mergulhada, creio que acharia cômico.
Vou repetir: minhas ideias fixas resultam dos conceitos giratórios que ouço do Beiço. Hoje ele está mais estressado; com o trabalho, o patrão, a vida que leva. Anotei várias coisas no meu bloquinho. A primeira foi ele dizendo que "nós, Cadelão, somos uns operários de bosta, não especializados, uns iludidos e enfeitiçados por um prato de comida. É isso, velho, só pensamos em comer, comer e sobreviver". Não entendi se "comer" era literal ou figurado. E disse mais: "Somos uns cretinos acomodados. Se nos mandarem andar de quatro, nós andamos". De novo não entendi se "andar de quatro" era literal...
Eu dizia Menos, Beiço, menos, enquanto ele acelerava na quinta marcha.
- Cadelão, além de falarem demais, essas criaturinhas trepam contigo uma única vez e já pensam no amor!
Disse a ele Meu amigo, mude o foco, pense no privilégio que é ouvir esses bêbados, saca só o efeito terapêutico disso. Sabe, aqui estou vacinado contra o cheiro e a imagem que fica da estrumeira que todos mergulham no dia a dia, tipo alegrar-se com as tragédias dos outros, ou sofrer por causa do sucesso desses outros. Beiço, agarre essa imagem: uma multidão de sapos coaxa amargamente num pântano de merda.
Senti que ele apertou os olhos... como se a bebida tivesse acelerado seu efeito. Continuei: Estou aqui, carregando caneta e bloco de papel e uns trocados pra beber cerveja. Mergulho nessa atmosfera, mas é como se não fizesse parte do ambiente.
Beiço mexia as mãos, estralava os dedos, parecia impaciente. Saquei que era hora de voltar a ouvi-lo, retomar o assunto verdadeiramente importante: como ter sucesso ao correr atrás de boceta!

(B. B. Palermo)

Ele dá um beijo contido...



Ele dá um beijo contido, parece um coelhinho de longas orelhas rosadas; morde de leve a boca de Lucienne, como se estivesse mordiscando uma folha de repolho. Ao mesmo tempo, seus olhos redondos e brilhantes repousam na bolsa aberta ao lado dela, na cadeira. Espera só o momento de poder dar o fora, está louco para ir embora e se sentar nalgum café sossegado da Rue du Faubourg Montmartre.
Conheço-o, o diabinho inocente, com seus olhos redondos e assustados de coelho. E sei que diabo de rua é aquela, com suas placas de bronze e artigos de borracha, as luzes piscando a noite toda e o sexo correndo por ela como um esgoto. Andar da Rue lafayette até o Boulevard é como passar pelo castigo das varas na caserna, pois as putas grudam em você como cracas, devoram-no como formigas, elas adulam, tentam convencer, prometem, pedem, imploram, experimentam falar alemão, inglês, espanhol, mostram seus corações sofridos, seus sapatos gastos e muito depois de você se livrar dos seus tentáculos, muito depois da agitação e do gemido acabarem, as suas narinas continuam com o cheiro de lavabo impregnado, ou o cheiro do Parfum de Danse, de eficácia garantida à distância de vinte centímetros. Alguém poderia passar a vida inteira naquele pequeno trecho entre o Boulevard e a Rue lafayette. Cada bar é agitado, vibrante, o jogo corre solto, os caixeiros ficam debruçados como abutres em seus bancos altos e o dinheiro que manuseiam tem cheiro de gente. Não há similar no Banque de France para o dinheiro sujo que circula por ali, o dinheiro que brilha com suor humano, que passa como um incêndio florestal de mão em mão e deixa uma fumaça e um mau cheiro. O homem que consegue andar pela Faubourg Montmartre à noite sem ofegar ou transpirar, sem fazer uma prece ou rogar uma praga, um homem assim não tem colhões e, se tem, deveria ser castrado.
Supondo-se que o tímido coelhinho gaste cinquenta francos por noite enquanto espera sua Lucienne. Supondo que ele sinta fome e compre um sanduíche e um copo de cerveja, ou pare e converse com a puta de outro. Você acha que ele deve estar cansado dessa rotina toda noite? Acha que isso pesa, oprime, mata-o de tédio? Você não pensa, espero, que gigolô não é ser humano? O gigolô também tem suas tristezas e misérias pessoais, não se esqueça. Talvez ele ache que não existe coisa melhor do que ficar na esquina toda noite com dois cachorros brancos, olhando-os mijar. Talvez ele gostasse de, ao abrir a porta, vê-la lá lendo o Paris Soir com os olhos já meio pesados de sono. Talvez não seja tão maravilhoso, ao se inclinar sobre sua Lucienne, sentir o cheiro de outro homem. Talvez seja melhor ter apenas três francos no bolso e dois cachorros brancos que urinam na esquina, em vez de sentir aqueles lábios que foram muito roçados. Aposto que, quando ela o abraça apertado, quando pede aquele pouquinho de amor que só ele sabe dar, aposto que ele luta com mil diabos para conseguir que o pau levante, para afastar aquele regimento que marchou no meio das pernas dela. Talvez, quando a pega e cantarola uma nova canção, talvez não seja só paixão e curiosidade o que sente, mas uma luta no escuro, uma luta solitária contra o exército que investiu contra os portões, o exército que passou por cima dela, de tropel, e deixou-a com uma fome tão devoradora que nem um Rodolfo Valentino seria capaz de aplacar. Ao ouvir as acusações que fazem contra uma garota como Lucienne, ao ouvir ser denegrida ou humilhada por ser fria e mercenária, mecânica demais ou ter muita pressa, por isso ou por aquilo, penso: para com isso, cara, devagar com o papo! Lembre-se que você está no fim da fila, lembre-se que um regimento do exército já a sitiou, devastou, saqueou e pilhou. Penso: escuta, cara, não inveje os cinquenta francos que paga a ela, pois sabe que o gigolô dela os está desperdiçando agora no Faubourg Montmartre. O dinheiro é dela, o gigolô é dela. É dinheiro sujo. É dinheiro que jamais sairá de circulação porque o Banque de France não tem como resgatá-lo.

(Henry Miller. Trópico de câncer, pp. 149-150).

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...