segunda-feira, 15 de julho de 2019

Esse é o teu momento



Cada vez mais você se convence de que essas conversas nas paradas de ônibus, nas lancherias, nos bancos de praça e de consultórios e de escritórios, você acredita que elas farão pouca diferença para os rumos do mundo. Também as notícias que sugamos das redes sociais e outras coisas mais que estonteiam nossa alma e ouvidos, no máximo contribuirão para nosso estresse e excessos na comida e bebida e então tome-lhe intestino preso ou flatulência ou enxaqueca.
Gurus, seja de que área for, vomitam suas teses aleatórias, que insistem que são verdade, e o fazem para angariar mais seguidores e engordar sua conta bancária.
O AGORA não passa de um momento qualquer no interior de um caldeirão fervente e borbulhante, com vários ingredientes em conflito, às vezes em fogo alto, às vezes em fogo baixo. Mas você vive ESSE momento. Aproveite-o, então.
Sim, você pode saltar da ponte e rodopiar e ser recolhido num saco com os ossos quebrados, e ser transportado até a perícia, numa frieza e objetividade, como se fosse um saco de adubo para plantas, depois aguardar no necrotério, devidamente numerado e com atestado de óbito para então ser despachado pro cemitério e logo ser esquecido.
A fervura continua, indiferente.
Você pode ir à Marte, armar a barraca, cultivar abobrinhas, e nada mudará, serão apenas notícias passageiras. Porém, esse é o TEU momento. Aproveite.
Não vale à pena sofrer se não chamares atenção. Há tantos egos que se posicionam como se fossem o centro, porém logo tudo vira página de jornal que vai acender o fogo da lareira ou receber o cocô de cães e gatos da família.
Vivamos esse aleatório, embora seja um instante no interior de um processo que se desdobra há bilhões de anos.
Apesar de tudo, esse é o TEU momento. Então, aproveite. Faça algo que dê prazer, como era o BRINCAR, na infância.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 9 de julho de 2019

Se não existissem as mulheres, o dinheiro serviria pra quê?



Dia desses bebia uma cerveja redondinha, acompanhado pelo Beiço, e eis que um conhecido estacionou ali por perto seu carrão importado. Fez de conta que não nos viu. Fingimos que não o vimos.
O cara sempre foi competente em fazer carreira no magistério e sindicatos. Pessoa bem comportada, bom pai e amigo, figura esclarecida, na concepção dos filósofos modernos.
Acima de tudo, um "socialista dinheirista", expressão que o Beiço sempre repete.
- Cadelão, os caras juntam a maior quantidade possível de grana, e muitos acabam gastando com filhos paranóicos ou drogados, que foram criados debaixo de suas asas. Não consigo compreender essa obsessão por acumular, imagine o tempo dedicado a isso.
- Quem sabe esteja certo. Pra ele, é melhor investir em imóveis do que em lazer, arte, literatura e outros prazeres.
- Que nada, está faltando alma, meu amigo, o declínio do planeta está acelerado.
- Eu gostaria de ter grana, só pelo prazer em gastar. Se fosse rico, se estivesse rodeado de luxo, pegaria as putas mais lindas da parada e escreveria porra nenhuma.
- Hehehe... Você desocupado e duro já anda escrevendo nada.
O cretino ergueu o copo, num brinde.
- Aos dinheiristas!
- Diz aí, meu brother, se não existissem as mulheres, dinheiro serviria pra quê?
- Sabe o que eu ouvi de uma garota esses dias? "Nunca tive dinheiro, até que baixei as calcinhas".
- Hehehe... Lembrei de uma frase da atriz Mae West: "Um centavo economizado é uma garota perdida".
- Dinheiro, dinheiro... E tempos difíceis. Confesso que estou com medo, tenho me preocupado com meus irmãos de passagem por esse planetinha.
- Fala sério, Cadelão.
- Até pensei ser voluntário num projeto que apoie os velhinhos aposentados nos abrigos. Ou contar histórias num hospital de câncer infantil.
- Puta que pariu. Toma um porre que amanhã você não se lembra dessa loucura.
- Você tem razão. Meus planos para o futuro não duram uma semana.
- Hehehe... Que eu saiba, persistência você teve foi nunca.
- Mas amanhã poderá nascer um cara novo.
- Jesus, desconfio que você está lendo auto-ajuda! Volta, maluco, seja o que tu és!
- Atitude, meu caro, um dia eu mudo de atitude.
- To sabendo.

(B. B. Palermo)


quarta-feira, 3 de julho de 2019

Carta para Boccaccio



Estou inquieto e solitário, parecendo as roupas expostas como Cristo na cruz, nos cestões das lojas quase vazias. Os olhos vermelhos imploram atenção enquanto o povo passa, indiferente a tudo. Esse sentimento é momentâneo, outras imagens e cenas tomam seu lugar. Comi a magrela que tem uma loja de lingeries e perfumes importados ali, na outra esquina. Duas décadas atrás eu era um jovenzinho disputado pelas garotas. Xotas havia até demais. Eu esnobava. Hoje a empresária finge, ou nem sabe que eu existo.
Tudo é parte do processo.
Meu amigo, sei que o entedio com esses comentários, devia apenas descrever os fatos do jeito como prometi.Tomara que a decadência não me tenha como alvo, ela e sua pressa.
Vida que segue. Logo que cheguei no bar e sugava a primeira metade de uma long neck tentando esquecer a garota da loja de perfumes e a ressaca crônica, apareceu uma madame com seu cachorrinho no colo, com cara de guaxinim, um Spitz Alemão anão. O pet latiu, madame xingou e, impressionante, suas vozes eram semelhantes. Tudo se encaixava.
Coisas estranhas. Velhos resmungando no espaço vazio do bar. Deve ser o mesmo papo que repetem pros médicos nos consultórios e pras enfermeiras e cuidadoras e caixas de supermercado e atendentes de farmácias. Sim, século XXI, longevidade é o que se vê. Caixas e caixas de remédio + qualidade de vida, principalmente nos bairros de classe média e alta da cidade. Preciso espiar o que rola nas periferias. Creio que serão outras as descrições.
Às vezes me culpo por parecer preconceituoso com os velhos. Não sei por que me deixam ansioso. Só pode ser o desperdício de tempo viverem quase cem anos.
Temos todo tipo de velhos: os mansos, os agressivos, os saudosistas, os desmemoriados. Contam as horas para que chegue a noite e finalmente dormir. Amanhã tudo se repete. Tédio. Em sua maioria, parecem autômatos. Se chegar vivo a uma certa idade, vou dar um jeito pra que alguém me faça uma eutanásia, sem culpas a esse camarada, é claro.
Aqui no bar, observo a tia que brinca com o bebê de um casal de jovens, seus amigos.
- Quem vai fazer um aninho? Quem? Quem? Parabéns a você!...
Ninguém liga pra ela, deve ter bebido meia dúzia de garrafas. Ainda é jovem, mas a necessidade de repetir aqueles papos que todos estão por aqui a tornam uma velha chata. Já disse, sou preconceituoso.
Lembranças aleatórias. Minha última foda consumou-se rápida, rápida, não durou mais de três minutos e decepcionou as estatísticas, passou longe de trezentas estocadas e o meu coração saiu pela boca. Era como uma canção adolescente que não suporto ouvir agora. Melosa demais, entorpecedora de rebanhos, como diria Nietzsche. Pena você não ter vivido na época Dele. O cara saiu-se bem demais.
Merda. Já me desgarrei do rebanho? Talvez. Sou agora uma ovelha bebum e mal-humorada.
Outro cara que admiro é o Beethoven. Viver depois dele, desfrutar da Quinta Sinfonia em Dó Menor, é estar no lucro. Sua criação é potente, como uma pimenta que encontrei dia desses no supermercado. Chama-se Naga Morich, a pimenta.
Pra finalizar, estou relendo anotações que fiz por aí, nos bares. Leio e, pra maioria delas, faço um X com caneta tinta vermelha e escrevo HORRÍVEL. Foi o jeito que criei pra ter mais disciplina e reacender o amor próprio.
Inté.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 25 de junho de 2019

Carta para Nadja



Preciso de sossego. Para com essas mensagens no WhatsApp, sei que você está trepando com um plantador de soja, dos graúdos, nem vem, vi tua postagem no Facebook.
Dá um tempo, meu pau sangra e toneladas de pó repousam debaixo da cama, e isso não é pesadelo.
As amizades naquele teu bar são barra pesada, veja bem, sou escritor de meia dúzia de leitores guerreiros e persistentes, um sonhador que bebe vinho de dez reais a garrafa, mas que sabe que vai chegar lá, e tua tara por carne está roubando minha energia.
Foder é bom, eu adoro, mas o tempo está voando e eu tenho uma tonelada de ideias para teclar.
Foder é bom, mas eu sinto que o tesão de cadela no cio está sugando a minha arte.
Nadja, você acredita que me dá bem demais. São orifícios de todo lado e gemidos e gritos que inflam meu ego, mas você nunca vai me dar Nietzsche e Hemingway e Bukowski e John Fante.
Daí que me apaixono quando troco mensagens com jovens universitárias que se especializaram em literatura pós-moderna, onde o sujeito ou a história ou o personagem morreu, ou o filho da puta se metamorfoseou, ou se dividiu e reproduziu em múltiplos EUS... enfim... que se foda.
Meu bem, elas leem o que escrevo e comentam no privado e inclusive criam perfis falsos pra seguir a literatura de um louco dançando no inferno ou sugando o leite das tetas das hienas, elas querem bisbilhotar e devem ter breves orgasmos ao pensarem de onde vem a seiva que Cadelão ejacula no papel.
Está bem, está bem, admito, essas garotinhas torram meu saco, mas você poderia ser mais refinada. O apetite insano, o vocabulário grotesco, os palavrões, a boca que às vezes exala um hálito que lembra velório e vela queimada, então saiba por que evito teu beijo.
Pra não ficar louco, preciso escrever, senão saio pra rua e escalo postes e conserto a iluminação pública e devolvo a luz a essa cidade neurótica.
Preciso algo mais do que sexo. O excesso deixa tudo vulgar e previsível, como uma imensa freeway esperando o entra e sai na calmaria do amanhecer.
Nadja, tudo bem você sugar o litrão de cerveja no bico e se empanturrar de x-burguer e música de sofrência, mas escute, você fala demais, qualquer assunto é como se fosse o fim do mundo, é tanta opinião sem propósito que, ao ouvir essas merdas, dá vontade de ser um torturador de ratos.
O mundo está sem alma e você não dá sinais de que vá acordar, os patins estão empoeirados e você só pensa em unhas e sobrancelhas, enquanto guerras ameaçam estourar.
Compreenda, cansei de você  pagar motel e lotar três vezes o frigobar com cerveja e ice e chocolate. Cansei de assumir o papel de garanhão, cansei de te ver tirando dezenas de fotos nas festas pra se exibir e competir com outras piranhas.
Podes dizer que é neurose, mas na minha cabeça uma história de amor precisa acabar pra outra começar. Sei que não tem lógica, sei que vou sofrer, porém preciso limpar o roupeiro, botar cobertores e travesseiros no sol.
Está bem, está bem, eu volto a abrir a porta, mas vê lá, não quero ser alvejado por uma dúzia de tiros de um plantador de soja ciumento.
A vida se renova, meu bem, eu sou escravo da criação, o que foi já era, morreu, preciso cavalgar outros rabos. Aqui lembro do Bukowski, que diz "não estou morto, preciso ver as xotas. Cada flor é uma nova flor. As outras estão mortas".

(B. B. Palermo)

sábado, 22 de junho de 2019

Onde está a cabeça dos caras




Um maluco foi empinar sua motocicleta importada de mil cilindradas na avenida, a uns trinta metros do bar onde eu conversava com dois amigos. Perdeu o controle, já era noite, a moto rodopiou e voou em frente, acompanhada de faíscas por causa do atrito com o asfalto, e o sujeito rolou uma dúzia de metros e se chocou num carro que vinha no sentido contrário. O voo da motocicleta seguiu na contramão, chocando-se no pneu traseiro de um carro estacionado e foi pro outro lado da rua, uns cinquenta metros adiante.
- Caralho, e se o foguete vem em nossa direção?
- Já era, baby.
Um sujeito que estava numa mesa ao lado correu pra organizar o trânsito. Depois foi ajudar o cara da moto. Por incrível que pareça, o retardado estava consciente e sem qualquer osso quebrado.
- O filho da puta nasceu de novo.
- Já pensou se a máquina alcança as crianças que circulavam de bicicleta pela calçada?
Enchi o copo e observei a bolha se formar no bico da garrafa. Rechacei um pensamento que ganhava forma, "que pena não estar morto nessa hora". Agora que estou vivo, sinto o paladar a cada gole. Um dos meus amigos achou que era momento de dizer "viva bem cada minuto, como se fosse a frase ideal para iniciar um romance".
Com seus smartphones em punho, pessoas tiram fotos, gravam vídeos, antes que a motocicleta seja recolhida e o maluco conduzido ao hospital e antes que cheguem os caras da Brigada.
Como um balão que estoura sem ter alcançado o seu máximo, broxo ao ver toda essa cambada manuseando seus aparelhos. Precisam se ocupar, e eu necessito inventar algo para distraí-las desse hábito ridículo.
- Se a cabeça dos caras não está no aparelho, está no pau - disse outro de meus amigos.
O cretino dedicou muito suor pra cavalgar numa máquina de dar inveja a amigos e conhecidos. Mas pra se exibir na avenida não pode exagerar na bebida nem no pó. De que serve tudo isso?
Penso que ele deveria ser minha plateia, e não o contrário. Mas não levo jeito pra coisa. Não consigo escrever textinhos curtinhos e engraçadinhos pra chamar a atenção desses semiretardados.

(B. B. Palermo) 

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Nem que seja no purgatório



Pra ser sincero, e isso eu só conto pra vocês, não me estresso com as questões políticas e seus desdobramentos. Sei, pela idade e experiência, que a maioria das pessoas se comporta como vira-latas, latem, latem, mas na hora do "vamos ver", arriam o rabo entre as pernas. Ninguém é santo. Muitos podem ser ingênuos, ovelhas obedientes, mas se a corda esticar tornam-se babacas, militantes infantilizados, de um lado e de outro, e de má-fé e lambedores de saco e de botas.
Estava no bar do Maneta me esforçando pra acompanhá-lo no copo, ouvindo repetidas vezes seus planos e ladainhas. A mulher preferia ir à igreja a ter que dar pra ele. Os filhos discordavam de qualquer opinião do pai, sua autoridade já era. Garganteava, pela enésima vez, sua necessidade de acampar e pescar e morar numa chácara. Pensei em dar-lhe uns conselhos, como agradar a mulher, tomar banho mais seguido, ficar cheiroso, vestir uma roupa nova.
O pilantrinha me elegeu seu companheiro, "convidado especial", pra irmos num puteiro de quinta categoria. Se afeiçoou a uma garota que, logo vi, de pouquíssimas virtudes e sensibilidade. Só dava pra ele e aguentava seus papos porque ele metia sem dó a mão no bolso.

faceiro, logo estiquei o olho pra uma garota magérrima e dentinhos ralos e saltados e cabelos curtos, que trabalhava de garçonete. Juro que na hora me pareceu atraente, porém ao encontrá-la no outro dia, sóbrio, saltou aos olhos suas olheiras e cara chapada e voz meio travada e então minha decepção foi enorme.
O dia seguinte é o de menos. Maneta, empolgado, pagava todas, e eu usei meus trocados pra rodar, na máquina, rock dos anos Oitenta.
Quando a dentuça miudinha se aproximou, depois da troca de olhares, brotou o velho e mesmo desejo, o de adotar pets abandonados. Foi o que fiz. Ela se desfez do avental, acariciei seu rosto e cabelos. Apanhou o celular e me mostrou fotos de como era seu cabelo: preto, liso, que alcançava a bunda. Mas estava endividada, ganhou mil reais com a tosa. Foi aí que eu pensei que ela seria a cadela perfeita pra tomar conta do meu canil.
Ela me beijou e disse que gostou de minha pessoa e, do seu canto, agarrado à loira insensível e pouco confiável, o Maneta liberou dúzias de cerveja e rosnou "nada de uísque com energético".
Embora alto, notei as conversas e movimentos estranhos nos fundos do bar, uns caras bêbados quase se pegando e nos espiando desconfiados, e então uma luz me avisou de que eu e meu amigo poderíamos estar em perigo e o melhor a fazer era cair fora. Além do mais, Maneta tinha poucas opções, eram três da manhã, a mulher esperando por ele, e a puta pressionando pra assumir a titularidade e ganhar um bar dele, pra que ela administrasse.
O banheiro era um cubículo ordinário, e ficava do lado de fora. No caminho, olhei pro céu pra me sentir afagado e menos solitário, compartilhando o olhar e a presença das estrelas. Foi quando me deparei com umas luzes despencando do firmamento, explosões estranhas que ribombavam e sacudiam e fizeram tremer portas e janelas do puteiro.
 - Puta que pariu! É hoje, o meteoro tão aguardado acabou de chegar! Eis o momento perfeito: todo mundo, corruptos, fascistas ou comunistas, putas  e escritores fracassados, todos, todos irão pelos ares!
Atônito, retornei pro bar. Maneta acertava a conta, escrevi o número do meu telefone num caderno que a garotinha me alcançou e sussurrei "paciência, hoje o mundo veio abaixo, mas amanhã vou te foder gostoso, nem que seja no purgatório".

(B. B. Palermo)




sábado, 1 de junho de 2019

Um sujeito de classe média



A chuva e o bar me encharcam há três dias. Quando me chamam "Palermo!" levo um susto, tenho a impressão de que sou um pano encardido, pendurado num varal e trespassado pelos olhos da comunidade. Prefiro ser chamado "Cadelão!", aí me sinto na mesma condição do servente de pedreiro ou do encanador ou do catador de lixo.
Liguei a TV, uma da manhã, sintonizei um programa de entrevistas. Três convidados debatem sobre a importância medicinal e a liberação da Cannabis, e então meus olhos brilham e eu me lembro das toneladas de baseado, as bobagens que pronunciei, chapado, as milhares de canções que ouvi e o êxtase que experimentei, muito mais do que um cidadão do bem possa imaginar.
Esforço-me pra me colocar no lugar desses heróis, sejam crianças, adolescentes ou adultos, criaturas classificadas como de classe media. Fico arrepiado só de imaginar os perigos a que esses anjinhos estão submetidos, são as drogas e o álcool, os juros dos cartões de crédito, todas e nenhuma ideologia, o formato da terra, direitistas e esquerdistas furiosos, o sertanejo universitário.
É inevitável o pesadelo. Como um aficionado por armas, desperto rodeado por fantasmas. Nem falo de conflitos familiares ou do bullying nas escolas. Pressionado por tantas informações que se digladiam, fascistas versus comunistas, asnos versus raposas, porcos versus bois e vacas etcétera e tal, sou surpreendido por crises de ansiedade e de suor e de choro e uma vontade louca de encher a cara, e o motivo, ó caros amigos escrotos, o motivo é o de estar boiando na água fria desse mundinho que desfrutais.
Os filhos da puta colocam em risco minha condição social, que é a de poder comprar uma TV de cinquenta polegadas em quinze prestações, e digo o mesmo pro carrinho popular, que lavo e deixo brilhando e suas rodas tinindo todo o sábado de tarde.
 Sonho de consumo. Ter uma gorda conta bancária e uma pança enorme, só pra me estressar e correr pra academia cinco vezes por semana, a cada verão, e postar selfies caprichadas pra impressionar as garotas.
Desejo de consumo. Queimar fatias do meu salário nas farmácias, ter um prazer sádico ao ouvir os vendedores gargantearem lançamentos de complementos e vitaminas para isso e para aquilo.
Sonho de consumo. Ter uma dúzia de notas de cem na carteira e sentir uma alegria incomum ao ouvir a balconista dizer que os produtos tais são bons porque estão vendendo bem. Não comprar nada naquele instante, dizer que vai voando a um compromisso e que retornará logo depois.
Um privilegiado. Ao cair a noite deixo o celular no silencioso, pois grupos de conhecidos do WhatsApp, a que fui encarecidamente convidado a participar, desfilam mensagens de fé, de oração, Deus e Jesus e Virgem Maria e mais isso e aquilo. Imagens e caricaturas, como se fossem uma parelha de cavalos e sua carruagem me conduzindo pela escuridão da Idade Média em direção à prometida luz que vem do céu.
E de novo estou fulo e com desejo de botar meu exército nas ruas, chutando e cuspindo e dividindo olhares raivosos com as donas de casa fazendo compras em dias de preços estourando. 
Que merda, eu não precisava sofrer ao dar de cara com os clichês de sempre. Eu devia me acostumar com essa gente que vive agarrada em muletas e bengalas e andadores.
Cinismo e cara de pau. Saber que os outros estão compartilhando merda, também fazer isso e fingir que considera essas merdas edificantes para a vida desses boçais.
Cinismo e cara de pau. Não me afastar desses grupos. Ter esperança. Quem sabe amanhã alguém se inspire pra além da superfície e compartilhe algo que me entorte o queixo. Ó meus irmãos, companheiros de longos ensaios de imbecilidade, tudo o que espero é que algum de vocês me surpreenda com novidade e intensidade, como se me visitasse chutando a porta.
Eu podia estar transando sem camisinha, pegando e espalhando por aí o HIV, ou bamboleando pelas calçadas podre de bêbado. Porém, aqui estou com minhas pantufas e lareira em brasa e TV moderninha, vendo programas de quinta e bebericando cerveja puro malte porque sou um cara bem informado, cervejas que contêm cereais não maltados não passam de suco de milho, pelo menos foi o que postaram nas redes.
 Eu sou o que se poderia definir de cara útil, um bosta que todo dia se esforça pra ser promovido e classificado pelo IBGE como de classe média. Um sujeito que tem prazer bovino e uma visão mediana das coisas.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 28 de maio de 2019

Monstros



Dez anos depois
batem à porta.
Desejavam resgatar
o seu lugar
no meu álbum
de lembranças.

Dedo em riste 
falei de regras e deveres
que sustentam os pilares
da boa convivência.
Queria convencê-los
de que o amor prescreveu.

(o tempo e Ela
não passam 
de monstros
que me dizem frouxo
enquanto riem
da minha cara!)

Depois que eles se foram
deixei as portas
trancadas.
Sei que alarmes
e cadeados
e câmeras
e sensores
me guardam...
e aguardam
gestos definitivos...

            Hoje quero aprender
a mastigar
essas verdades
                        amargas
e torcer para que as palavras
          que rabisco no diário
  deem as coordenadas.

(Tiradas do Teco, o poeta sonhador)

Festa no brejo - Carlos Drummond de Andrade


A saparia desesperada
coaxa coaxa coaxa.
O brejo vibra que nem caixa
de guerra. Os sapos estão danados.
A lua gorda apareceu
e clareou o brejo todo.
Até à lua sobe o coro
da saparia desesperada.
A saparia toda de Minas
coaxa no brejo humilde.
Hoje tem festa no brejo! 

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Narrativas cansadas


Os movimentos
da dentadura postiça
na boca do velhinho
sentado no bar
sinalizam algo sobre o tempo.
Depois que a companheira morreu,
ele vence o rosário do dia
de bar em bar.
paga um trago pra quem emprestar
ouvidos
às suas histórias.
Lembrei de meu amigo que enfartou
e nada publicou
de centenas de páginas escritas.
Ele quer e não quer
espalhar pelo mundo
seus contos e
romances e poemas.
Quando for ao psiquiatra
desempenharei papel semelhante
ao do velhinho,
entupindo ouvidos alheios,
devidamente pagos,
com minhas narrativas cansadas.
Penso nos objetivos do velhinho,
ao peregrinar pelos bares,
implorando audição.
Penso nos objetivos do meu amigo,
que insiste em escrever e deixar algo,
agora que o tempo respira 
por aparelhos.
Penso nos meus objetivos.
Onde tudo isso vai dar?
Otimistas creem em nossa transformação.
Pessimistas dizem que essa rotina
sinaliza
que tudo está perdido.
Eis a razão de toda a náusea.
Nossas buscas são confusas
parece que uma força estranha nos trapaceia,
e o tempo dá sinais de que encheu o saco
de nossas paranoias.
É utópico acreditar em nossa transformação.
A mudança requer esforço redobrado,
e o fôlego já era.

(B. B. Palermo)



Poetinhas, contenham-se!

  Não caminhava sozinho, estava rodeado de uma legião de capetas, rindo, zombando. Vestiam branco e jogavam pro alto seus cantos vindo...