Ela
tem cabelos negros e sorriso fácil e muitos planos.
Como Ela é muito jovem,
eu mergulho nos livros oito horas por dia.
Minto. Das oito horas,
duas eu rabisco poemas pensando Nela,
só que no outro dia eu
acho que eles estão muito ruins,
aí pratico basquete na
lixeira.
Que isso fique entre
nós.
Sinto que não a fisguei
por completo.
E talvez nunca seja possível.
Os cabelos e olhos
negros espalham vida
e eu me distraio e
acompanho, ora um, ora outro.
Dou piruetas, ando de
skate, torço fervorosamente pro time do bairro,
compro rifas das
crianças de escolas, dou moedas pros bêbados.
Odeio quando ela
compartilha fotos com os amigos no bar.
Fico na minha, não dou
pistas de que sou fraco.
Não sei explicar a vantagem
de conhecê-la desde a tenra idade,
ter a sorte de saber
seus sonhos, vê-la brilhar e falar dos seus planos.
Em tempos de corrida em
busca de uma especialização, e de juntar dinheiro rápido, Ela não deseja
dedicar-se apenas a uma profissão, quer libertar seus diversos talentos.
Estou vulnerável às opiniões
de familiares e amigos.
Deprimo por saber que
eles dirão que pertencemos a gerações impares.
Eles repetirão, me
conhecem, sabem que logo estarei fissurado por novas conexões.
Eu não darei ouvidos.
Imagino os comentários:
- Ele tem uma
existência torta... Ele anda em zigue-zague.
Centenas espalharão a
fofoca derradeira:
- Ele tinha tudo para dar certo, mas parece que
nasceu torto.
Algo me assusta Nela.
É muito boa, justa e sincera.
O mundo é perigoso e
minhas experiências são um bocado singulares.
Ao andar pelas ruas, acaricio
cães carentes que estão atrás de grades de casas, edifícios, fábricas e
estacionamentos.
Uma sensibilidade que
não me envergonha, muito embora os olhares desconfiados atrás de cortinas e
portas.
Bom, às vezes isso me
intimida, não admito ser confundido com um chinelo.
E se Ela não gostar de
blues?
E se Ela insinuar que
os Mozart e Beethoven que ouço são de cortar os pulsos?
Isso é o de menos. Vou
narrar o roteiro que percorri, com todas as metáforas e neuroses, desde a
infância, para que o apego a certas canções e filmes desenhasse o meu destino.
Estou feliz. Nesse
início de inverno conto com o seu olhar,
e isso impede que eu seja
carente de outros invernos.
(B. B. Palermo)