segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Ele dá um beijo contido...



Ele dá um beijo contido, parece um coelhinho de longas orelhas rosadas; morde de leve a boca de Lucienne, como se estivesse mordiscando uma folha de repolho. Ao mesmo tempo, seus olhos redondos e brilhantes repousam na bolsa aberta ao lado dela, na cadeira. Espera só o momento de poder dar o fora, está louco para ir embora e se sentar nalgum café sossegado da Rue du Faubourg Montmartre.
Conheço-o, o diabinho inocente, com seus olhos redondos e assustados de coelho. E sei que diabo de rua é aquela, com suas placas de bronze e artigos de borracha, as luzes piscando a noite toda e o sexo correndo por ela como um esgoto. Andar da Rue lafayette até o Boulevard é como passar pelo castigo das varas na caserna, pois as putas grudam em você como cracas, devoram-no como formigas, elas adulam, tentam convencer, prometem, pedem, imploram, experimentam falar alemão, inglês, espanhol, mostram seus corações sofridos, seus sapatos gastos e muito depois de você se livrar dos seus tentáculos, muito depois da agitação e do gemido acabarem, as suas narinas continuam com o cheiro de lavabo impregnado, ou o cheiro do Parfum de Danse, de eficácia garantida à distância de vinte centímetros. Alguém poderia passar a vida inteira naquele pequeno trecho entre o Boulevard e a Rue lafayette. Cada bar é agitado, vibrante, o jogo corre solto, os caixeiros ficam debruçados como abutres em seus bancos altos e o dinheiro que manuseiam tem cheiro de gente. Não há similar no Banque de France para o dinheiro sujo que circula por ali, o dinheiro que brilha com suor humano, que passa como um incêndio florestal de mão em mão e deixa uma fumaça e um mau cheiro. O homem que consegue andar pela Faubourg Montmartre à noite sem ofegar ou transpirar, sem fazer uma prece ou rogar uma praga, um homem assim não tem colhões e, se tem, deveria ser castrado.
Supondo-se que o tímido coelhinho gaste cinquenta francos por noite enquanto espera sua Lucienne. Supondo que ele sinta fome e compre um sanduíche e um copo de cerveja, ou pare e converse com a puta de outro. Você acha que ele deve estar cansado dessa rotina toda noite? Acha que isso pesa, oprime, mata-o de tédio? Você não pensa, espero, que gigolô não é ser humano? O gigolô também tem suas tristezas e misérias pessoais, não se esqueça. Talvez ele ache que não existe coisa melhor do que ficar na esquina toda noite com dois cachorros brancos, olhando-os mijar. Talvez ele gostasse de, ao abrir a porta, vê-la lá lendo o Paris Soir com os olhos já meio pesados de sono. Talvez não seja tão maravilhoso, ao se inclinar sobre sua Lucienne, sentir o cheiro de outro homem. Talvez seja melhor ter apenas três francos no bolso e dois cachorros brancos que urinam na esquina, em vez de sentir aqueles lábios que foram muito roçados. Aposto que, quando ela o abraça apertado, quando pede aquele pouquinho de amor que só ele sabe dar, aposto que ele luta com mil diabos para conseguir que o pau levante, para afastar aquele regimento que marchou no meio das pernas dela. Talvez, quando a pega e cantarola uma nova canção, talvez não seja só paixão e curiosidade o que sente, mas uma luta no escuro, uma luta solitária contra o exército que investiu contra os portões, o exército que passou por cima dela, de tropel, e deixou-a com uma fome tão devoradora que nem um Rodolfo Valentino seria capaz de aplacar. Ao ouvir as acusações que fazem contra uma garota como Lucienne, ao ouvir ser denegrida ou humilhada por ser fria e mercenária, mecânica demais ou ter muita pressa, por isso ou por aquilo, penso: para com isso, cara, devagar com o papo! Lembre-se que você está no fim da fila, lembre-se que um regimento do exército já a sitiou, devastou, saqueou e pilhou. Penso: escuta, cara, não inveje os cinquenta francos que paga a ela, pois sabe que o gigolô dela os está desperdiçando agora no Faubourg Montmartre. O dinheiro é dela, o gigolô é dela. É dinheiro sujo. É dinheiro que jamais sairá de circulação porque o Banque de France não tem como resgatá-lo.

(Henry Miller. Trópico de câncer, pp. 149-150).

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Gente, esse cara é muito louco!


Trouxemos dois garotos até minha casa, depois de jogarmos sinuca num bar. Eles carregavam razoável estoque de erva. Consegui um papel dos bons, de caixa de tênis, pra um deles fechar alguns. O objetivo da aproximação e da amizade, desde o bar, era pra que nos apresentassem, num futuro próximo, algumas amiguinhas. Ainda mais depois que eles disseram que costumavam fazer suruba com elas. Eram bons no baseado. E isso dava um apetite do caralho. No caminho pra minha casa o Dr. Biza comprou, junto com a dúzia de latões de cerveja, dois quilos de salame. Foi devorado em questão de minutos. Os garotos falavam de umas surubinhas que faziam com suas garotas e o Dr. Biza me fitava, como a dizer, Viu só, Cadelão? Logo eles conseguem umas ninfetas pra gente! Cada um deles enfatizou que sua mãe é louca, e por isso tiveram depressão e por isso tantos remédios e por isso a necessidade das drogas. Cada um de nós teve mãe louca e eu falei da minha que era louca desde que me conheço por gente, e então inventei histórias das loucuras que mamãe fazia e disse pra eles Vocês não fiquem assim deprimidos, isso tudo é passado. Viram só como nós somos os caras? Apesar de crescermos com nossas mães loucas, aqui estamos, com um emprego e fazendo curso superior. Eu dizia isso e pensava Grande bosta, e aí então eles botaram pra tocar Rap e eu pensei Não posso fazer nada, o que me resta é encher a cara e dizer Sim sim. Eles só ouviam esse tipo de música, e era esse cara, e era aquele outro, letras com temáticas sociais até empanturrar. Eu me expiava em silêncio e me dizia Sim, sou um velho sujo e sublime e vazio de tudo. Disse pra eles Interessante o som que vocês curtem, eu pretendo criar um batalhão de fuzilamento pra botar no paredão esses imbecis que gostam de sertanejo universitário. Os garotos me fitaram com aqueles olhões vermelhos apavorados e pensei ter ouvido Tu é dos nossos, pode nos chamar, nos alistaremos no teu exército, o mundo ainda tem salvação. O baseado era dos bons. Aí eles falaram de suas experiências com LSD, e como essa droga agia, e como se sentiam depois da viagem e eu disse Li um bocado sobre, mas nunca usei. Vocês leram "As portas da percepção", do Aldous Huxley? Eles não conheciam, eu disse a eles Nunca usei LSD, estou satisfeito com os vôos que a marijuana me proporciona. Então os garotos atacaram a fruteira. Em minuto os pêssegos e maçãs e bananas foram devorados. Cinco da manhã, Dr. Biza e os garotos se foram e me deixaram com algumas cervejas e um baseado prontinho. Dei umas tragadas e fui pro pátio olhar a lua. Estava um terço de minguante e estava linda e disponível só para mim. Disse pra ela Ó, querida, bem que tu podia me ofertar aquela roseira que tu tem no meio das pernas, quentinha, perfumada... Por favor, me chama Vem vem me come sou todinha tua nessa madrugada inesquecível! A lua me fitava espantada naquele seu brilho afetuoso e murmurava pra suas amigas estrelas Gente, esse cara é muito louco! Voltei pra dentro de casa, Cadê as pernas de salame? Cadê as frutas? Invadi a geladeira, num pote havia bife e arroz meio congelados, devorei aquilo tudo com farofa e fui dormir.

(B. B. Palermo)

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Trópico de câncer - Henry Miller

Germaine era puta. Não esperava o homem se aproximar dela: ia e o agarrava. Lembro bem dos furos nas meias dela, dos sapatos tortos e gastos; lembro também que ficava no bar com uma determinação corajosa e cega, engolia uma bebida forte e saía de novo para a rua. Uma puta! Talvez não fosse tão agradável sentir aquele hálito de bebida, aquele hálito formado por café fraco, cognac, apéritifs, pernods e todas as outras coisas que ela engolia nos intervalos, tanto para aquecer-se quanto para juntar força e coragem; mas o fogo da bebida entrava nela, ardia entre as pernas onde as mulheres deviam arder e formava-se aquele circuito que faz com que se volte a sentir a terra sob os pés. Quando ela se deitava com as pernas abertas e gemendo, mesmo que gemesse daquele jeito para todo e qualquer freguês, era bom, era uma demonstração adequada de sentimento. Não ficava olhando para o teto com olhar vazio ou contando os percevejos no papel de parede, ficava atenta à sua tarefa, falava nas coisas que o homem quer ouvir quando está trepando com uma mulher. Ao passo que Claude, bom, com Claude tinha sempre uma certa delicadeza, mesmo quando ela entrava debaixo dos lençóis com você. E a delicadeza dela agredia. Quem vai querer uma puta delicada! Claude chegava a pedir para você olhar para o outro lado quando se sentava no bidê. Tudo errado! Quando o homem está queimando de paixão, quer ver coisas, quer ver tudo, até mesmo como elas mijam. E, embora seja muito bom saber que a mulher pensa, a última coisa que se quer na cama é literatura vinda do cadáver frio de uma puta. Germaine estava certa: era ignorante e robusta, punha o coração e a alma no ofício. Era uma puta dos pés à cabeça, e essa era a sua virtude!

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Ao sentar no vaso, fez-se a luz



Foi uma alucinada no banheiro que trouxe a luz. Os traços geométricos dos azulejos são ridículos. Os tapetes também. Distraído, ouvia a narração da partida de futebol na TV da sala e meus olhos se encheram de areia ao ouvir o esforço que o narrador e comentaristas faziam pra animar uma quimera de jogo. Teu cu! - pensei - dane-se a obrigação de manter elevado o ibope dessas merdas de programas de televisão.
As coisas rolavam nessa pegada no domingo à tardinha. Saquei, com vontade de dar voadoras nas portas das casas do condomínio, que as coisas funcionam dentro de certa lógica. Sempre a lógica que põe na cabeça da galerinha o que é normal. Nos noticiários, quando abordam a cultura popular, tipo Festa de São João, os filhos da puta apenas enfatizam o incremento na economia, hotéis, gastronomia. Estatísticas e números. Teu cu que isso é normal, teu cu que isso é apenas má-fé! Isso é falta de pauta, meus amigos!
Vocês diriam, Pare de usar em vão o nome de tão magnífico órgão, afinal toda a natureza necessita dessa válvula de dispersão, inclusive árvores têm ânus e blá-blá-blá...
Concordo, pessoinhas, *** são abordados e acariciados e endeusados e, muitas vezes, humilhados... e não apenas pelos sentidos. Há o discurso de gênero, o político e o científico e tals. Observem a importância acadêmica de refletirmos sobre o ** do imaginário, o ** da fantasia, o ** do inconsciente. Beiço direciona seus olhos pálidos pra outra coisa, já que diz que sou meio repetitivo: Cadelão, e o rabo da loirinha, hem? É... aquela que fez a dancinha da garrafa e ficou horas sassaricando no teu colo esses dias, naquele puteiro...
Pelo amor de Deus, deixem o ** seguir seu fluxo, cumprir sua indispensável missão, seja em árvores ou peixes ou insetos ou bichos ou humanos. Um poeta disse que pedras têm cu! Quando li isso tive a sensação de que tudo já foi escrito, rabiscar em folhas em branco agora é uma perda de tempo.
Sei, estou na periferia dos grandes debates, que ditarão os rumos dessa grande merda. Não faço a mínima ideia do que é mais importante, se a denúncia de estupro de um carinha famoso ou a liberação de mais agrotóxicos. Ou se é o desabafo da garotinha descrevendo no Facebook os detalhes dos conflitos com sua mãe, avó de sua cria, ou se é o desaparecimento das abelhas. Ouço gritos de socorro nesses bueiros e aposentos de casarões abandonados. Cada qual superdimensionando suas paranoias. Hora ideal pra um médico entrar em cena e anunciar o temido câncer no ****. Então a garotinha quer que o mundo todo saiba que, entre Ela e sua mãe, os canais afetivos e de comunicação não funcionam? Teu rabo, minha filha!
Esses dias rolou uma campanha pra juntar dinheiro pra um sujeito poder conhecer pessoalmente seu grande amor, que garimpou nas redes sociais. Dinheiro pra passagem, dinheiro pra hospedagem... Então eu devo doar meu dindim pra uma criatura que não conheço poder viajar e conhecer seu grande amor? Ah, tá, grande coisa, teu cu que eu faço isso!

(B. B. Palermo)

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Somos especialistas em coisas e somos felizes

Eu queria te dizer, muitas vezes eu te disse, como você me aguenta, eu queria te ver todos os dias, com essa minha cara ingênua, de quem não tá nem aí pra foder, pra sentir teu cheiro, pra ouvir tua voz e esperar pelo menos um abraço.

Você sabe que estou mentindo, eu queria pular as preliminares, chover de vez no mundo essa porra aprisionada, eu sei, estamos distantes, não falo do espaço, acho que é questão de tempo, sei lá, ganho ou perdido, o tempo é uma senhora chamada morte que me espera implacável em algum lugar. Meu tempo congelou ou derreteu, como os neurônios. Dá medo essa história de só pensar em trepar, deitando tarde e depois largar os tragos e tomar emprestado teus sonhos, aqueles mais ingênuos e infantis.
Sempre aparecem as encruzilhadas e que merda culpar-se pelas escolhas previsíveis, se pintores escalam mansões e serventes de pedreiro despencam de andaimes e o cão da madame está com câncer.
Suporto a ideia de você abraçando e comendo outro e dormindo enroscada e enfim suporto a ideia de você viver o sexo com outro. Aí me vingo comendo umas velhas devassas e suas xerecas reluzentes e fedorentas e coloridas com os mesmos carimbos de carne de açougue. Até quando trepo uma garota com raiva carinhosa fico um touro medieval e não alcanço o orgasmo porque não é você.
Você vai rir se eu te disser que escrevo essas coisas no bar ouvindo dois jovens trabalhadores inclinados na mesa ao lado falando do absurdo que é o preço das peças de suas máquinas, do esforço e do prazer que dá terem o carro rebaixado e pagar carnês e carnês das coisas que investiram nessas ditas cujas. Puta merda, Eles sabem tudo de mecânica e de ofertas no mercado virtual e eu enfio as unhas nas nádegas: meu tempo deve estar dançando bêbado e sozinho num baile de terceira idade.
Você pode rir, mas eu te digo, ando de saco cheio das coisas e dos áudios e vídeos que recebo pelo WhatsApp de crianças com trinta e quarenta e cinquenta e quase sessenta anos, aqueles seus delírios de 38 graus de febre.
Adeus papos filosóficos e metafísicos e literários e científicos, que buscam desviar-se do cotidiano, eis o tempo das coisas em dez suaves parcelas sem juros e acréscimo. Coisas nos depósitos, em ordem e numeradas, nas vitrines, coisas que as pessoas vestem e fotografam e compartilham, com seus piercings e tatuagens e cus sujos e cuecas e calcinhas e bolsas de grife.
Morro de inveja do entusiasmo com que falam das coisas. Queria ter esse entusiasmo pra desvendar o que se passa nos porões desses serzinhos que raptam travecos lindos nas esquinas opacas das madrugadas, seu medo da morte e desejo reprimido, isso pouco importa pois em casa aguardam dúzias de soluções, meia estante de livros de auto-ajuda. Foda-se, quando eu preciso me abster do álcool parto pra Água de Melissa que contém doses generosas de álcool e uma bula alertando pro risco da hepatite no fígado.
Juro que reservo doses ridículas de energia só pra te desvendar, ou conhecer ou, vá lá, pra imaginar outro serzinho pelado contigo enquanto bato minha punheta desesperada, graças a Deus você se libertou do meu bafo e do meu ronco e do meu pessimismo e lirismo careta.
Juro, quis encontrar poesia na academia, entre uma selfie e uma sessão de exercícios pra fortalecer braços e pernas e a mente conectada no pauzinho sofrido.
Tenho vontade de perguntar a esses sujeitos: o que você sonha realmente fazer, como você viveu a infância e suportou a adolescência, onde você se perdeu, onde você se encontrou. E pare de falar dessa bosta, disso que você nunca soube descrever na sua plenitude. Pare de delirar, enquanto coça o saco: "Meu, o que é a felicidade?".
Jesus Cristo! Os cretinos voltaram a falar de amortecedor
de barra de direção
de teto solar
de luz de Led
do tamanho do porta malas
do ponto do opala desregulado
do carburador e da correia dentada
- a correia dentada, meu Deus!
Os caras bebem cerveja de qualidade e devoram chips e a marcha do mundo está fermentando. Todos os mapas estão certos, nós é que estamos errados, estamos fascinados pela trilha das coisas, o caminho do ouro.
Meu bem, todos estão fingindo, a vida é um grande teatro, adeus separação entre palco e plateia, atores chegam de todo canto, de todas as cores, nas ruas e lojas e bares e farmácias
eu estou fingindo
você está fingindo
e assim vamos trotando a vida
eu coloco coisas na tua bebida
você coloca carro e apartamento e profissão nos meus sonhos literários
e até na beira do precipício pensamos que somos sinceros e completos.
Hoje acordamos tarde. Zonzos e dopados e a noite é um presente que nos merecíamos.
Inclusive essa tua visão acadêmica ingênua que às vezes trepa, e eu sei que vou dizer e você finge que vai escutar, eu sei, isso me deixa mais broxa e preenchido de plenas esperanças.
Cerveja ruim, papos ruins, o que importa é que somos papagaios e macacos e especialistas em coisas e temos paus nem sempre normais que nos frustram na hora do vamos ver e somos especialistas em coisas e somos felizes.

(B. B. Palermo)

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Sou feliz, Ela curtiu meu blues


Quando Ela viajou, compartilhamos pelo WhatsApp novidades bem comportadas, sobre literatura e música e poesia e essas "coisas" que tanta gente escreve e publica, mais sujeitos fuçando no teclado do que sujeitos leitores. Não sei se Ela vestia pijama ou apenas calcinha, peitos fartos posando para quadros baratos na parede, ou se estava comendo pipoca ou mascando chiclete ou fodendo com  algum carinha.
Nessa hora me impregnou o verso de uma música: "Eu não consigo ser alegre o tempo inteiro". Me sentia mais ou menos, aquela sensação de impotência ou inutilidade, algo como esbarrar, no supermercado, nuns carinhas de classe media, talvez funcionários públicos, pesquisando, introspectivos, algo imprescindível para a mecânica perfeita do universo: o preço do tomate e da cebola e do brócolis e do pimentão.
Sentia-me impotente e com a sensação de tempo jogado fora, semelhante à cena de uns marmanjos cujos para-choques dos carros beijaram-se de leve no sinal, e isso, puta merda, desencadeou discussões pavorosas e dezenas de telefonemas à polícia e à seguradora. Adoro trocar esse tempo perdido por umas punhetas deitado no sofá na hora da sesta. Está bem, concordo com vocês, não tenho o direito de criticar a maneira como as pessoas jogam fora o seu tempo, quando minha cabeça é refém dos vícios, como as bebidas e sexo.
Basta notar a seriedade Dela carregando uma dúzia de frascos de esmalte, da sala pra sacada e pro banheiro, ou fazendo a limpeza dos pés, ou depilando as axilas ou virilhas, que eu sinto o medo de sempre, como é difícil morar junto e conciliar diferentes paranoias. O que eu mais carrego de um lado pro outro são os fardos de latões de cerveja.
Vocês diriam, Cadelão é um egoísta, não suporta dividir o pão, a carne moída de segunda e às vezes de primeira e a sobremesa, as contas de condomínio, o IPVA, os cartões de crédito e o amor.

Ela fareja bem demais. Encontra-me em qualquer um dos 50 bares dessa cidade careta. Vomita as queixas previstas mas que ainda me emocionam e enchem de culpa. "Cadelão é um poetinha de merda que não suporta viver em bando".

Sofro, porque eu lembro emocionado os dias sem tempestades, quando Ela me aguarda de pijama e meias surradas porém limpas cheirando a amaciante Lírios do campo e de pantufas, ou quando passeamos no Monza e Ela veste o mesmo pijama e casaco por cima porque o inverno é um teimoso e, olha como posso ser feliz, Ela até disse que curte o meu blues.


(B. B. Palermo)

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Um brinde aos cacos desses copos



O cara da moto potente desafiando a solidão
voa pelas avenidas esburacadas dessa cidade pacata
no domingo de manhã.
Um suicídio vagaroso
e doloroso e fiel tal qual o meu
empilhando garrafas vazias.

Dias úteis dos operários cansados
são inúteis.
Um brinde aos cacos
desses copos que enfeitam nossas mãos
como se fossem rosas.

A máquina desesperada
circulou também pela tarde,
talvez estivesse depressiva
ou chapada.
Final de domingo
ônibus das bandas que animam bailões
roncam pra cima e pra baixo.
Os coroas têm opções de contar nos dedos
nos finais de semana:
bailes ou missas ou cultos
ou programas de auditório de TV.
Velhos e velhas fodem pra valer
e o tempo está se esgotando,
danem-se as DSTs
dane-se o HIV.

Familiares, relaxem,
o atestado de óbito não alegrará fofoqueiros desocupados,
dirá apenas que foi "morte por causa indeterminada".

(B. B. Palermo)

domingo, 22 de setembro de 2019

Trechos de Henry Miller


“Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar.”
***
“É exatamente porque as probabilidades são todas contra você, precisamente porque há tão pouca esperança, que a vida aqui é deliciosa.”
***
“Sou um homem livre - e preciso da minha liberdade. Preciso estar sozinho. Preciso meditar na minha vergonha e no meu desespero em retiro; preciso da luz do sol e das pedras do calçamento das ruas sem companhias, sem conversação, frente a frente comigo, apenas com a música do meu coração como companhia.”

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Quente - Bukowski


ela era quente, era tão quente
que eu não queria que ninguém mais a tivesse, 
e se eu não chegasse em casa na hora certa
ela já teria ido, e era uma coisa que eu não podia
suportar -
eu enlouquecia...
era uma idiotice, eu sei, uma infantilidade,
mas eu me deixava levar, eu me deixava levar.

eu entregava todas as correspondências
e então Henderson me colocava na coleta noturna
num velho caminhão do exército,
a porra da lata velha começava a aquecer na metade
do caminho
e a noite seguia
eu pensando na minha Miriam quente
e eu entrando e saindo do caminhão
enchendo sacolas com cartas
o motor prestes a fundir
a agulha do termômetro cravada no vermelho
QUENTE     QUENTE
como Miriam.

eu seguia saltando
mais 3 coletas e então de volta ao posto
eu estaria, meu carro
à espera de me levar até Miriam que estaria sentada em
meu sofá azul
com um uísque com gelo
cruzando as pernas e balançando os tornozelos
como costumava fazer,
duas coletas mais...
o caminhão enguiçou junto a um sinal, era o inferno
dando suas caras
mais uma vez...
eu tinha que chegar em casa até as 8, 8 era o prazo
final de Miriam.

fiz a última coleta e o caminhão enguiçou num sinal
a meia quadra do posto...
não tinha jeito de dar a partida, de jeito nenhum...
tranquei as portas, apanhei a chave e corri até o
posto...
me livrei das chaves... assinei o ponto...
a porra do seu caminhão está enguiçado no sinal,
gritei,
Pico com a Western...

... corri pela entrada, coloquei a chave na porta,
abri... seu copo de bebida estava lá, e um bilhete:

fio da puta:
isperei até 8 e sinco
você não me ama
seu fio da puta
alguém vai me amar
fiquei isperando todo dia

Miriam

servi um drinque e deixei a água encher a banheira
havia 5.000 bares na cidade
e eu percorri 25 deles
atrás de Miriam

seu ursinho púrpuro de pelúcia segurava o bilhete
e ele estava escorado num travesseiro

dei um trago para o urso, outro para mim
e entrei na água
quente

(Do livro "Queimando na água, afogando-se na chama"). 

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Cruzando o sinal vermelho



Mochila nas costas,
cabelo amarrado,
balançando,
da universidade pra casa,
da casa pra universidade.
A vontade ergue edifícios,
investe em negócios milionários,
basta Ela passar por mim e acenar.

Bobo, a dúvida sempre aparece:
Ela ficou vermelha?
Ela me quer?

No trânsito, a maior transgressão de uns serzinhos
é cruzarem o sinal vermelho.
Outros, se masturbarem com parcerias
proibidas à luz do dia.
Não sei qual é a minha transgressão,
diante de sua passagem,
Ela, o retrato nietzschiano da vontade de potência.

Quero transgredir, apesar de ser
um fraco, um tímido,
pisando em ovos ou brasas,
com medo de errar a mão e o pé,
não acertar a descida do degrau
embora sóbrio e à luz do dia.

Diante Dela, tenho medo
de errar no verbo,
ficar vermelho e
despencar no abismo.

Ninguém suporta cair.
Por isso que os bares
e seus estoques e os puteiros
e suas ninfas aguardam...

Na volta da boemia,
de madrugada,
eu cruzo o sinal vermelho.

(B. B. Palermo)



domingo, 8 de setembro de 2019

Pega esse Fernando Pessoa e enfia no rabo



O Ridículo me mandou áudios pelo WhatsApp
declamando poemas do Fernando Pessoa.
Tudo bem, admiro esse grande poeta.
Mas me senti humilhado, vocês sabem, ando travado,
não desenvolvo nem ao menos uns poeminhas escrotos.
E o Beiço dá-lhe poemas do irmão português.
Daí a pouco explodi:
- Pega esse F. P. e enfia no rabo!
Beiço retraiu-se. Veio com essa:
- Maluco, qual é, sei que você curte Fernando Pessoa.            
Principalmente o "Poema em linha reta".
E emendou:
- Cadelão, mandei o áudio desse poema
pros meus grupos de WhatsApp.
Esqueci de colocar sua autoria.
Velho, eles me elogiaram,
disseram que sou um grande poeta.
Meus Deus, uns até são pós-graduados.
O que você acha disso?
- Normal. A arte anda mal
das pernas nesse país.
- Sei que tu está no bar do Geni.
Pega um táxi e vem pra cá.
Estão aqui a minha namorada e o El Cabezón.
Chamei um Uber.
O taxista era um garoto de vinte e poucos
que tinha outro emprego
e que dirigia pelas madrugadas
transportando fantasmas
pra aumentar sua renda.
Falou que conhece todas as zonas da cidade
e disse que tem muita garota linda
então eu falei Que massa, cara,
qualquer dia você me mostra o mapa das minas.
Quando cheguei lá
o Ridículo manteve a tortura.
Era "Tabacaria", era "O guardador de rebanhos",
era "Autopsicografia".
- Cadelão, você não lembra,
esse livro do F. P. foi você quem me emprestou.
Claro que eu nunca mais devolvo hehehe.
- Pega esse F. P. e enfia no rabo!
Pra variar o repertório do sarau,
busquei no Google uns poemas
do Velho Safado.
A cada poema que eu lia
El Cabezón delirava:
- Cara, isso é o Cadelão!
- Capaz, eu nunca vou alcançar esse lirismo
e ceticismo e sangue jorrando
e o cheiro do álcool em cada verso - eu dizia.
Pensei, O que a mistura de vinho e cerveja e pó
não faz na cabeça de uma desgraça dessas.
Na volta para casa, no táxi, bêbado,
estava decidido a não mais me comparar
com os grandes, pra não me sentir
humilhado.
Pouco antes de acordar no início da tarde
do mesmo dia
O Fernando Pessoa
invadiu meu sonho.
Perguntei-lhe à queima roupa:
- Pessoinha, como fazer para escrever
pra caralho, assim como tu? Me diz,
Pessoinha, devo me penitenciar
das bronhas e das fodas com as putas,
canalizando toda minha energia pra criação?
Ele falava e falava.
Pelo menos eu via o movimento dos lábios.
Mas nada escutava.
Logo abandonou meu sonho
e chutou a porta do quarto.
Acordei com essa coisa na cabeça:
- "Se queres te matar, por que não te matas"?

(B. B. Palermo)

Ele já estava lá

  As pessoas por perto pareciam murchas, daquele jeito, de ideias, uns sonâmbulos, e cansei também de trocar confidências com os cães ...