Obra de Arte

 

- Captar a essência da uva não é milagre, é arte! - declarei, com a taça erguida

como quem segura a auréola de Baco

num dia preguiçoso e um pouco embriagado de si.

Ao meu lado, EtBeto - recém-chegado do setor 9-G de Tersilax,

pançudo, pálido, piadista reincidente - olhava o vinho com desconfiança.

Cheirava o líquido como se visse ali uma ameaça biológica.

- E isso se bebe? - perguntou, franzindo as antenas.

- Claro! É um Merlot 2018: frutas vermelhas, terra molhada

e memórias da infância em cada gole.

Eu quis parecer mais culto do que a taça.

EtBeto girou o líquido como um alquimista aposentado.

Deu um gole.

Franziu a testa (ou algo parecido).

Cuspiu de volta com nojo técnico.

- Putz!

- Que que foi?

- Glifosato.

- Hein??

- Glifosato, DDT, traços de microplástico… e, e, e...

Com uma pitadinha de desespero existencial no finalzinho - completou, lambendo os lábios.

- Meu, é vinho orgânico!

- Na Terra, "orgânico" quer dizer "menos cancerígeno", né?

Tentei mudar de assunto.

- Mas tu vai admitir… é uma obra de arte!

Betão deu uma risadinha intergaláctica:

- No meu planeta, isso aqui seria classificado como

“líquido suspeito de ataque cultural”.

Foi então que algo estranho aconteceu.

Na segunda taça, EtBeto parou de reclamar.

Na terceira, começou a rir.

Na quarta, batucava na mesa com as pontas dos dedos:

- Palermo… esse veneno... dá o maior barato.

- Fala sério! Kkkkkk!

- É Sério! Acho que começo a entender o fascínio de vocês

por tudo que destrói aos poucos. É… poético até.

E puxou uma caneta, rabiscando num guardanapo:

"Com glifosato no paladar, vejo estrelas em HD."

Depois, começou a compor um samba...

(B. B. Palermo)