domingo, 29 de setembro de 2024

Cadê o café?


 

Caminhava pela calçada e bati de frente com um velho solitário, jeito de transtornado. Falava alto e – mesmo que estivesse a poucos metros de distância – não deu por mim.

O final do dia, além de abafado, anda estranho – pensei.

Quando era criança, cenas como essa impressionavam:

– Nossa! Um louco! Cuidado, gurizada!

Mas quem liga pra isso hoje em dia?

Algumas vezes, ao retornar pra casa do bar – meio que levitando – também falo sozinho. Porém, tomo o cuidado de o fazer um pouco tarde da noite, quando a comunidade assiste TV ou está num sono profundo.

Se é noite de luar ou o céu está estrelado, converso animadamente com as estrelas e a via láctea – representantes de Deus aos nossos olhos, dizem.

Aos 18 anos, quando servi o exército – numa cidade que ficava a uns 700 quilômetros de onde morava –, trocava cartas com uma garota adolescente. Depois de despachados pelo correio, os suspiros amorosos demoravam mais de uma semana pra tocarem seu coração.  Recebia a resposta da garota – contida, racional, se comparada aos meus delírios poéticos – mais de 2 semanas depois.

Podia ter escapado de servir o exército, mas disse ao comandante, na entrevista derradeira, que queria ficar. O que fiz aos dezoito anos eu faço até hoje: gosto de sofrer, gosto de sentir saudade – morando longe das pessoas mais próximas. Quanto a isso, psicanalistas e psiquiatras têm o conceito na ponta da língua para "classificar" meu tipo de neurose. Fodam-se!

Ou esses experts diriam que foi uma atitude louvável de minha parte: a busca pelo novo; não me acomodar ou me prender à aldeia em que nasci e cresci.

Se eu não sabia o que queria, parece que já sabia o que NÃO queria. Insistiram para que fizesse carreira no exército – mas, realmente, não nasci pra isso.

E tu nasceu pra que, então, seu bucéfalo? – perguntariam vocês...

Pelo menos durante década e meia, escrevia muitas cartas. Não sei como as garotas suportavam páginas e páginas daquelas "viagens" – será que elas guardaram as cartas ou as rasgaram ou queimaram ou as depositaram numa lixeira?

Acho que esse é o ponto: talvez o exercício da escrita salve, liberte ou evite que o ridículo reboleie pelas ruas falando sozinho.

Ao recordar minha juventude – mais do que fominha ou patético – até acho engraçado. Tinha aspirações literárias. Sonhava me imortalizar como poeta hehehe. Não fazia ideia de que todo esse sonho cairia por terra, bastava me apaixonar por alguma garota. Foram várias paixões. O malukinho amou e a arte evaporou.

Juvenil, não tinha qualquer maturidade e noção de que poderia "reencarnar" almas criativas de outros tempos, que me presenteariam incríveis histórias – e o caminho para isso eram as leituras de muitos (e bons) livros.

Quando a inspiração surgia, o espírito (líquido) se desviava dos caminhos criativos ou insights. Com certeza, não tive um mínimo de "café" para compreender e decifrar essas histórias e desenvolvê-las no papel.

E hoje?

 

(B. B. Palermo)


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