AS FORMAS BÁRBARAS DE PALERMO CHUTAR PEDRAS - A prosa poética de Américo Piovesan no livro Chutando as pedras da calçada
* Marco André Cadoná
O lugar da poesia encontra-se na poesia do lugar. Nos corredores do cotidiano, possibilidades de um movimento inspirador, de uma palavra desencaixada, de um olhar inquieto, de um suspiro que desalenta, de uma bebida que encoraja o vazio da expressão. Talvez sejam esses os caminhos que Palermo persegue, manifestando suas angústias diante do esperado, cobrando inesperados, provocando motivos para a ironia. Mas apenas talvez. A curiosidade pela caixa de uma loja de conveniência, o bêbado cujo trago é curto e o desejo de vida é longo, as lembranças dos quartinhos de “motéis de quinta”, os espíritos dos poetas quietos que são assombrados pelas lembranças agitadas, traçam os caminhos de quem quer ser beijado apenas quando chamar.
Palermo é o personagem que, através de Américo Piovesan, o seu criador, gentiliza a criação poética, convidando para rituais de profanização de nossa existência. Não há desprezo pelo que significamos ou deixamos de significar em nossas nem sempre alegres experiências de vida. Essas são convidadas ao desencaixe, às perdas dos encaixes, aos distanciamentos daquilo que nos amarra aos sentidos que conseguem ser comuns diante do próprio comum. A criação de Palermo, o Américo Piovesan, nasceu em meios cujos sinais convidativos a uma vida quieta eram fartos, mas ainda cedo encontrou nas palavras, escutadas e escritas, espaços que não se permitiam àquela condição existencial. As esquinas da vida, nas quais fincam-se os nomes que empedramos (os Nietzsches, os Leminskis, os Dostoéviskis, os Drummonds, os Rauls, os Belchiores) e aqueles que ainda não foram empedrados (as recepcionistas de hotéis, as Rosinhas, as Lucys, as Dollys, os donos de bares, o bêbado do bar), mostraram ao Américo o verdadeiro significado da experiência de encontrar uma “mosca na sopa”. Palermo não. Palermo foi prenhado pela própria mosca que, iludindo toda a vigilância e depois de ter se ensopado da sopa, transou com aqueles que não se interessavam pelos romances astrais.
O que esperar das palavras afiadas de Palermo, esse errante que frequenta lugares enxovalhados pela promiscuidade circundante dos sentimentos que mais sacralizamos? Os dados ainda estão em movimento e não me é dado apontar respostas precisas. Desconfio, no entanto, que os convites oferecidos por Palermo, com datas impactantes de chegada, sugerem pistas para que possamos catar - nas palavras largadas ao vento - percepções fugidias do que significa a loucura: alcançar o que não se costuma alcançar, ver o que não nos é dado frequentemente ver; ou ver o que nos é dado ver, mas de uma forma ainda não tocada, não sentida. Pode parecer inadequado o que estou para dizer, mas não é impossível que, nos porões das intenções de Palermo, exista um querer pedagógico: despertar, através de seus devaneios, aquilo que dorme ou está num estado de germinação em nós.
Mas há o que não esperar dessa que, talvez, seja a mais inocente das ocupações humanas de Palermo? Os dados ainda não se acomodaram. Mas não se busque, nos espaços de imagens que ele nos convida a habitar, uma preocupação com um sentido dos lugares perigosos que nos são entregues para que possamos testemunhar aquilo que nos é dado ser. Talvez aí more o perigo da construção poética de Palermo: não há um sentido a ser dado, mas provocações que nos colocam em nossos lugares, abrindo coisas, com todos os riscos que nelas podem existir. É também por isso que Palermo se acusa “bárbaro”, pois não consegue mais ter culpa, corrompido que foi por Bárbara, aquela que aparece para lembrar que somos “bípedes e mamíferos, não sabemos nada: nem de ações de bolsa, nem de ética e valores”; não sabemos “nada de futuro” e estamos condenados, Bárbara e nós, ao momento. Há perigo se apostarmos que os dados se ajustarão de acordo com nossas intuições. Mas o perigo maior é não apostarmos.
Eu preciso terminar com um aviso ao leitor. Eu me encontro numa condição de quem apenas se abre à experiência poética que Palermo nos provoca. Não reclamo autoridade de quem pode terminar essa experiência com as condições embebidas pelos espíritos dos juízos. Minha curiosidade, inacabada, com as palavras sentidas por Palermo me colocam num lugar que não permite conclusão. Que essa fique para os incautos. Como em algum lugar Paulo Leminski colocou: “tudo dito, nada feito, fito e deito".
* Doutor em Sociologia Política e professor na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC/RS).
Editora CRV, Curitiba, 2023. https://www.editoracrv.com.br/produtos/detalhes/38005-chutando-as-pedras-da-calcada
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