Eu deveria ter uns 11 ou 12 anos quando o acaso – sempre ele – me jogou para dentro do trem da história sem apito prévio. Eram os anos 70, e até as pedras da Praça da Alfândega sabiam que pessoas eram torturadas e mortas pela ditadura militar no Brasil. As pedras sabiam, mas eu ainda não.
Talvez essa breve era da inocência tivesse durado mais algum tempo se em uma viagem da escola eu não tivesse sentado ao lado de uma colega, com quem nunca havia conversado antes, que sabia tudo o que se podia saber aos 12 anos sobre ditadura, presos políticos, tortura. Tinha visto fotos, tinha ouvido conversas.
Enquanto Geisel propunha uma abertura “lenta, gradual e segura”, a descoberta daquilo que, afinal, eles estavam abrindo para mim foi súbita, inesperada e vertiginosa. Havia alguma condescendência naqueles tempos pré-internet em relação à capacidade de engajamento das meninas de 12 anos, mas segundo o vocabulário da época minha inaceitável ignorância política tinha nome: alienação.
No limite, todos somos alienados em relação a alguma coisa: política, ciência, cultura, economia, esportes, religião... A lista de assuntos sobre os quais escolhemos não saber nada é infinita. Segundo a cartilha marxista clássica, porém, alienado é o sujeito que não controla sua atividade essencial (o trabalho), pois a mercadoria que produz existe independentemente do seu poder e de seus interesses. Por extensão, alienadas são as pessoas indiferentes aos problemas políticos e sociais do lugar e da época em que vivem.
Em tempos de superabundância e descentralização da informação, o termo “alienado” ganhou um ar ligeiramente retrô. Ainda será possível ignorar um assunto de interesse público tão redondamente quanto eu ignorava a tortura?
É possível, mas em boa parte dos casos talvez se trate de uma “alienação eletiva”, ou seja, já não é tão fácil culpar os outros (“o sistema”, “a mídia”, “os interésses”...) pela nossa ignorância ou preguiça. Jovens e adultos, operários e seus patrões, a dona de casa e o jogador de futebol, todos escolhemos as causas nas quais não queremos nos engajar, os problemas que não queremos resolver, os pepinos que preferimos varrer para debaixo do tapete.
Na semana passada, quando o último capítulo de Avenida Brasil mobilizou a atenção e o coração de milhões de brasileiros, muitos sacaram da gaveta o velho xingamento de passeata para pespegar nos fãs de Carminha e Tufão. Devagar com o andor. Pode-se, obviamente, gostar ou não de novelas, mas o curioso (assustador seria o termo mais correto) nesses comentários é a dificuldade para compreender e aceitar a ancestral necessidade humana de contar e ouvir histórias – e de fugir da realidade de vez em quando também.
Não é a arte, mesmo uma arte popular ou o mero entretenimento, que aliena as pessoas do que elas deveriam saber/fazer/ser, mas as diferentes escolhas que realizamos todos os dias na vida real: em casa, no trabalho, no espaço público e agora nas redes sociais também. Assistindo novela ou um jogo de futebol, jogando videogame ou namorando, não somos alienados ou politizados. Somos apenas humanos.
Aliás, já ouviu falar dos índios guaranis-kaiowás?
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